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Crimes militares de opinião: exigência do princípio democrático

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04/09/2022 às 12:00
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3. A DOUTRINA DA RELAÇÃO DE SUJEIÇÃO ESPECIAL

Quanto maior a distância entre o indivíduo e o Estado, maior será a amplitude dos seus direitos fundamentais, ou seja, haverá mais espaço para ser livre.

Por outro lado, quanto menor for essa distância, menor será o alcance dos seus direitos fundamentais, que poderão sofrer restrições ou, até mesmo, ficarem suspensos, enquanto o indivíduo se manter nessa situação de intensa proximidade com o Estado56.

Essa intensa proximidade com o Estado ocorre, basicamente, em duas situações: a) o sujeito, contratualmente, consentiu com essa relação de sujeição; ou b) o sujeito a isso foi obrigado, por imposição legal ou decisão judicial.

Na primeira hipótese, temos os casos dos agentes públicos, com exceção do mesário, jurado e militar em serviço obrigatório. No segundo caso, as situações dos condenados à pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos, e as exceções anteriores.

Assim, percebe-se que a condição indispensável para a configuração de uma relação especial de sujeição é o pertencimento ou a submissão do indivíduo ao ente estatal - é a situação de pertencimento.

Ora, seja num ou noutra hipótese, a questão é o que o indivíduo passa a se relacionar de forma mais intensa com o Poder Público, e se submete a uma série de deveres que implicam, muitas das vezes, em restrições de direitos fundamentais, pois o Poder Público exigirá que o indivíduo se comporte desta ou daquela maneira, ou que, por um período de tempo, não exerça seus direitos fundamentais, ou, ao menos, não em sua plenitude.

As relações de sujeição especial decorrem da própria concepção institucional da Administração Pública, nos termos que nos ensina Marçal Justen Filho, senão vejamos:

A concepção institucional permite compreender a Administração Pública como um conjunto uniforme de sujeitos. Este conjunto não perde sua identidade em virtude da alteração da identidade de seus componentes e opera de acordo com regras e costumes que nem sempre são aqueles formalmente contemplados no texto da lei.

Por sua natureza institucional, a Administração Pública produz padrões de conduta que se impõem a seus integrantes, gerando uma linha de continuidade vinculada a tradições do passado.[57] (negritei)

Esclareça-se que não se trata de doutrina nova, mas que remonta ao pensamento de Paul Laband (1838-1918), professor da Universidade de Estrasburgo, para quem a relação de vassalagem constituía-se em vínculo do mesmo gênero que a relação de serviço entre o agente e o Estado, ressaltando apenas que esta seria de Direito Público, enquanto aquela de Direito Privado58.

Já a expressão relações especiais de sujeição foi amplamente difundida por Otto Mayer (1846-1924), para quem sujeição significava o vínculo entre duas pessoas desiguais sob o ponto de vista jurídico, cujo conteúdo é definido pela vontade unilateral da pessoa superior no caso, o Estado59.

Otto Mayer distinguiu as obrigações gerais, que vinculam todos os cidadãos, das obrigações especiais de sujeição, que obrigariam apenas determinados súditos[60].

Assim, a peculiaridade de tal relação jurídica no universo das instituições militares e militarizadas se justifica pelo interesse público: segurança dos cidadãos, manutenção da ordem pública e finalidades institucionais, como o cumprimento eficiente da missão constitucional.

Conforme ensina Gilmar Ferreira Mendes, a existência de uma relação desse tipo justifica por si só possíveis limitações dos direitos dos que fazem parte dela61.

Houve momento na história em que se excluíam, por completo, as pessoas nessas condições do âmbito da aplicação dos direitos fundamentais62.

Hodiernamente, porém, as limitações de direitos decorrentes das relações especiais de sujeição devem ser aplicadas na exata medida de sua necessidade, buscando o ponto de equilíbrio, que impeça o completo sacrifício dos direitos fundamentais.

Assim é que tais limitações, além de previsão legal, requerem interpretações cuidadosas e casuísticas, justificadas rigorosamente pela preservação de um bem jurídico maior63.

A doutrina aponta alguns critérios que, se observados, tornam as restrições legítimas e constitucionais64, tais como a referibilidade (a missão da instituição deve justificar a restrição imposta) e a compensação (o sujeito será compensado por ter estabilidade no cargo, ascensão funcional, remuneração digna, certas honrarias etc).

Todos esses critérios podem ser resumidos ao princípio da proporcionalidade.

Estamos certos de que os militares não são os únicos submetidos a uma relação jurídica desse tipo, uma vez que esta alcança também os servidores civis e outros agentes públicos, como os magistrados e membros do Ministério Público, em maior ou menor medida.

Contudo, é fato que os militares encontram-se numa situação bastante peculiar, pois tanto a doutrina das relações de sujeição especial, quanto a doutrina da necessidade militar, exteriorizada por meio dos princípios da hierarquia e da disciplina militar, justificam restrições de direitos ainda maiores.


4. A FUNÇÃO DO DIREITO PENAL MILITAR NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Pode-se dizer que em um Estado Democrático de Direito a principal função do Direito Penal comum - enquanto saber penal - é a limitação ou contenção do poder punitivo dentro de limites racionais e razoáveis65.

Nesse sentido, o Direito Penal se apresenta como um apêndice do Direito Constitucional, na medida em que o respeito aos princípios formulados pela doutrina mais liberal é garantia de segurança jurídica para o status libertatis do cidadão.

Nas palavras de Claus Roxin, o sistema criminal democrático é aquele que protege o cidadão através do Direito Penal e também ante o Direito Penal66.

Assim ocorre desde o momento da criação do tipo penal ou seja, da escolha do bem jurídico a merecer tutela penal e da aprovação de lei pelo Parlamento até o momento de aplicação da lei, no caso concreto, em que o Judiciário opera restritivamente sobre a legislação posta, limitando seu alcance ao considerar, casuisticamente, se houve efetiva lesão ao bem jurídico tutelado.

Dentre os princípios do minimalismo, exsurge, ao lado da legalidade, anterioridade e proporcionalidade, o princípio da intervenção mínima, e de seus corolários: princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, princípio da fragmentariedade, princípio da subsidiariedade e princípio da ofensividade.

Com base nesses princípios, a violência do Direito Penal somente pode ser empregada: a) com a finalidade de proteger bens jurídicos (exclusiva proteção de bens jurídicos); b) quando indispensáveis à manutenção da vida em sociedade (fragmentariedade); c) depois de esgotadas todas as outras possibilidades menos gravosas de proteção jurídica (subsidiariedade); d) contra ataques graves ou seja, se a lesão for efetiva ou potencialmente gravosa (ofensividade)67.

Em decorrência do princípio da ofensividade, por sua vez, seriam atípicas, mesmo que descritas nas leis, as condutas que: a) não afrontam o conceito de justo, lícito e socialmente adequado do corpo social (adequação social); b) produzem lesão insignificante (insignificância); e c) não causam lesão algum a terceiro ou ofendem apenas preceitos de moralidade (alteridade)68.

Resumidamente, essa é a doutrina do Minimalismo penal, inerente ao Estado Democrático de Direito, que defende que o Direito Penal tem por função garantir que o combate ao crime - exercício do poder punitivo - seja realizado com respeito à dignidade humana e aos valores democráticos.

Esses princípios também se aplicam no âmbito do Direito Penal Militar, mas sem esquecer que há forte incidência da doutrina da necessidade militar e da doutrina das relações de sujeição especial.

A própria existência de uma legislação penal especializada de natureza castrense a ser aplicada por órgão do Judiciário igualmente especializado, já demonstra as consequências daquelas doutrinas.

Como já foi dito, os militares estão submetidos a uma série de regramentos, que visa padronizar condutas.

Assim é que no meio militar há uma espécie de expectativa normativa69.

Quando um militar não respeita essa expectativa normativa, há uma mensagem comunicativa negativa para os demais indivíduos do grupo afetado.

Primeiro, de que alguém não aderiu às expectativas do grupo, criando sua própria realidade de expectativas normativas 70, revelando a presença de um elemento desviante.

Segundo, e talvez mais importante, a mensagem leva à indagação se aquela expectativa normativa era de fato correta ou se ainda permanece em vigor, e é aí que se encontra o perigo.

Afinal, se palavras convencem, o exemplo arrasta.

Nesse contexto, a pena aplicada, disciplinar ou criminal, emite um impulso comunicativo contrário, em que se nega a expectativa particular do militar desviante, e, por conseguinte, reafirma-se a expectativa normativa geral71 - ou seja, reafirma-se qual o padrão de conduta considerado adequado pelos membros daquele grupo.

Por isso o Estatuto dos Militares, em seu Art. 42, dispõe que a violação às obrigações e aos deveres militares constituirá crime militar ou transgressão disciplinar, conforme dispuser a lei específica.

Isso, por si só, demonstra a estreita relação entre os delitos militares e as transgressões disciplinares, podendo-se, até mesmo, afirmar que possuem a mesma natureza, diferenciando-se apenas quanto ao grau do desvio ou da negação da expectativa normativa geral pelo militar transgressor ou delinquente72.

O escopo principal da aplicação da pena no Direito Penal Militar é ratificar a vigência da norma, em uma concepção dialética hegeliana, em que a conduta destoante do comando normativo seria a negação da norma jurídica posta e a aplicação da pena significaria a negação da conduta desviante, o que leva à reafirmação da própria norma transgredida73.

Diante disso, pode-se dizer que a finalidade da pena, enquanto prevenção geral positiva, é a própria razão de ser do Direito Penal Militar, ou seja, sua função é reforçar as expectativas normativas gerais no seio da caserna, garantindo-se, em última instância, o desempenho eficiente da missão constitucional da instituição militar, o regime democrático e o princípio da soberania popular.

A consequência lógica a que se chega neste trabalho, ainda que involuntariamente, é que o único destinatário do Direito Penal Militar deveria ser o militar, jamais o civil, uma vez que esses jamais estiveram sujeitos aos mesmos preceitos disciplinares que aqueles.

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Ou seja, toda a expectativa normativa geral esperada de militares - e que é incuntida desde os tempos de adaptação e formação - é completamente ignorada pelos civis.

Como diria, com razão, Eugênio Raul Zaffaroni e Ricardo Juan Cavallero, crimes militares cometidos por civis, são, na verdade, falsos delitos militares.

Afinal, não se pode afirmar que violam deveres militares quem não os tem ao seu cargo.

Para os referidos autores, os delitos cometidos por civis, ainda que afetem as instituições militares, não podem ser considerados delitos militares, mas sim delitos especiais do Direito Penal comum74.

Entendemos que essa lógica deveria ser aplicada ao direito brasileiro, considerando não recepcionados pela atual Constituição os incisos I e III, do Art. 9º do CPM, que admitem a prática de crimes militares por civis75.

Na ADPF 289, a Procuradoria-Geral da República vai nesse mesmo sentido e pede que o artigo 9º, I e III, do Código Penal Militar seja interpretado como define a Constituição de 1988 e seja reconhecida a incompetência da Justiça Militar para julgar civis em tempos de paz.

Já em julgado recente76, o Juiz Federal Substituto da 8ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, Frederico Montedonio Rego, reconheceu a inconstitucionalidade, inconvencionalidade e não recepção dos dispositivos do Código Penal Militar (Art. 9º, I e III) que tipificam crimes militares por civis em tempos de paz e atribuem a competência da Justiça Militar para julgar esses casos, cujo trecho de sua decisão segue abaixo:

Ao contrário do que ocorre em tempos de guerra, nos quais garantias constitucionais podem ser suspensas (CF, art. 138), caso um civil em tempos de paz, e.g., cometa estelionato contra o patrimônio da Marinha, ou desacato contra um soldado, tais condutas não possuem, em tese, gravidade superior a um estelionato cometido contra o INSS ou a um desacato contra policial federal. Tratar civis penalmente como militares, de forma mais gravosa, embora os primeiros não sejam hierarquicamente sujeitos aos segundos, também viola a isonomia. Em sede internacional, é cada vez mais robusto o consenso de que a Justiça Militar não deve julgar civis. Trata-se do princípio da especialidade, que "atribui jurisdição militar aos crimes cometidos em relação com a função militar, o que a limita a crimes militares cometidos por elementos das forças armadas"

Isso porque o julgamento pela Justiça Militar traz ao acusado maior carga restritiva de direitos, acarretando um ônus mais gravoso do que o constrangimento de ser processado pela Justiça Comum77, tal como reconheceu o próprio STF, entendendo, porém, admissível a submissão de civis à Justiça Militar em caráter excepcional78

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Sobre o autor
David Fonseca de Sá

Capitão-Tenente do Quadro Técnico, especialidade Direito, do Corpo Auxiliar da Marinha. Especialista em Direito Marítimo (UERJ) e Direito Criminal (Estácio).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SÁ, David Fonseca. Crimes militares de opinião: exigência do princípio democrático. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7004, 4 set. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/99890. Acesso em: 9 mai. 2024.

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