Capa da publicação Genocídio, políticas públicas e omissão
Capa: Alex Pazuello/Prefeitura da Manaus/SUSCONECTA
Artigo Destaque dos editores

Genocídio, políticas públicas e omissão: aportes para um debate inicial

Exibindo página 1 de 3
Leia nesta página:

As omissões estatais na implementação de políticas públicas podem ser consideradas genocídio, sujeitas a julgamento nacional ou internacional.

Introdução

O presente estudo tem por objetivo promover um debate inicial sobre a forma omissiva do genocídio, um dos crimes mais graves contra a humanidade, e sua relação com as políticas públicas. Quando se fala em genocídio, comumente vem à mente a prática de um ou mais atos para consecução da intenção de destruir no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Entretanto, cogita-se da perpetração do genocídio também na forma omissiva, hipótese consagrada internacionalmente. No caso, especial relevo ganha o tipo de genocídio definido no Artigo II, c, da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, repetido no artigo 1º, c, da Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956 e art. 6º, c, do Estatuto de Roma, considerado o ato mais óbvio de genocídio por omissão. Ainda, e em especial, faz-se aporte no campo de estudo da política pública para registrar o entendimento da existência de políticas públicas de vinculação constitucional que encerram mandado de implementação. Por fim, exemplifica-se a hipótese de genocídio por omissão por meio da não implementação, implementação deficiente ou cessão de política pública de caráter constitucional vinculado.

No que diz respeito à metodologia, predomina a abordagem dada pelo método dedutivo, destacando-se ainda que este trabalho justifica-se pela temática pouquíssima tratada, não tendo sido encontrado nenhum estudo específico sobre o objeto de análise composto pela intersecção genocídio, direito e políticas públicas.


1. O crime de genocídio: conduta omissiva e a submissão intencional de um grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial.

O termo genocídio, inseparavelmente conectado com a história alemã (GROPENGIEßER, 2005, p. 329), foi cunhado pelo jurista judeu-polonês Raphael Lemkin em decorrência de estudos sobre a matança e deportação de armênios promovida pela Turquia, a partir de 1914, e do massacre de cristãos assírios pelo governo do Iraque em 1933, 1 mas que ganhou destaque em razão dos horrores da Segunda Guerra Mundial perpetrados, principalmente, pelos nazistas. Expressa pela composição híbrida dos radicais grego “genos” (tribo, raça, povo) e latino “cædere” (matar),2 a palavra genocídio evoca a barbárie e o desrespeito à toda a humanidade. Foi empregada durante o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, ao final da Segunda Guerra Mundial, que, todavia, não julgou o crime de genocídio especificamente, mas sim crimes contra a humanidade.

Posteriormente, por meio da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio (CPRCG), de 1948,3 o termo passou a designar a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso.4 Já aqui destacamos que a doutrina enxerga na expressão “intenção de” a exigência do dolo específico de “destruir, no todo ou em parte” (RAMOS, 2019, p. 476). A convenção foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 30.822, de 6 de maio de 1952 e, em seu artigo II, fornece a seguinte tradução em língua portuguesa para o crime de genocídio:

ARTIGO II

Na presente Convenção entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:

a) matar membros do grupo;

b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;

c) submeter intencionalmente o grupo a condição de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;

d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio de grupo;

e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.

A Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956, decorrente do compromisso assumido com a ratificação da CPRCG, define e pune o crime de genocídio em terras brasileiras repetindo os termos da Convenção:

Art. 1º Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:

a) matar membros do grupo;

b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;

c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;

d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;

e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo; (...) 7

Por sua vez, o genocídio, tanto na forma consumada quanto na tentada, recebeu a rotulagem da hediondez por previsão expressa no artigo 1º, parágrafo único, da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, a “Lei dos Crimes Hediondos”, por inclusão da redação da Lei nº 8.930, de 06 de setembro de 1994.6

Igualmente, há previsão no ordenamento pátrio da punição do genocídio no Direito Penal Militar. Assim, se for considerado o genocídio como crime militar,7 aplica-se, em tempo de paz, a previsão do artigo 208 do Código Penal Militar; se em tempo de guerra, os artigos 401 e 402, também do Código Penal Militar.

No âmbito internacional, o Estatuto de Roma (ER)8 incorporou o genocídio como uma das quatro categorias de crime sujeitas à jurisdição do Tribunal Penal Internacional (TPI).9 Aprovado pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 112, de 6 de junho de 2002, o ER passou a viger em 1º de setembro de 2002, sendo promulgado pelo Decreto Legislativo nº 4.388, de 25 de setembro deste mesmo ano.

Quanto à competência, embora o genocídio tenha origem no direito internacional, importa ressaltar que o ER na verdade afirma a subsidiariedade da jurisdição internacional, da mesma forma que os tribunais de direitos humanos, consagrando o princípio da complementaridade. Assim sendo, o TPI não exerce sua jurisdição se a investigação ou o processo penal já tenha iniciado ou terminado, salvo se o Estado não tiver “capacidade” ou “vontade” de realizar justiça (RAMOS, 2019, p. 474).

Dessa forma, no quadro da competência jurisdicional interna, no que diz respeito à competência de Justiça, tem-se que, se o genocídio não se revestir do caráter de internacionalidade, a competência para o processo e o julgamento, como regra, será da Justiça Estadual. Isso porque “o simples fato de o delito estar previsto em tratado ou convenção internacional assinada pelo Brasil não enseja, por si só, a competência da Justiça Federal” em decorrência do previsto no artigo 109, inciso V, da Constituição Federal (LIMA, 2020 p. 487). No entanto, e em especial por tratar-se o genocídio de crime intrinsecamente grave e violador de direitos humanos, a competência pode ser incidentalmente deslocada para a Justiça Federal por iniciativa do Procurador-Geral da República, conforme artigo 109, § 5º, da Constituição Federal. Ainda, em especial, quando se tratar de genocídio contra povos indígenas, a competência há de ser da Justiça Federal, pois:

(...) como o delito teria o condão de atingir potencialmente a própria existência de uma determinada etnia indígena, inegável tratar-se de crime envolvendo a disputa sobre direitos indígenas, atraindo, por conseguinte, a competência da Justiça Federal, nos termos do art. 109, inciso XI, da Constituição Federal, e afastando a aplicação da súmula n. 140. do STJ ("Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime em que o indígena figure como autor ou vítima"). (LIMA, 2020, p. 487)

No que diz respeito à competência do órgão jurisdicional, o crime de genocídio pode ser da competência do juiz singular ou do Tribunal do Júri. O Plenário do STF, no julgamento do RE 351.487,10 em questão envolvendo o assassinato de índios Yanomami da tribo Haximú, por garimpeiros desejosos em explorar incontinente terras férteis para lavra garimpeira, episódio chamado “Massacre de Haximú”, reconheceu a competência para processo e julgamento do crime de genocídio ao juízo monocrático da Justiça Federal, excepcionada a modalidade em que os atos de destruição forem crimes dolosos contra a vida, hipótese que deve ser submetida ao escrutínio de um Tribunal do Júri federal. No caso, se entendeu pela caracterização de concurso formal impróprio entre o crime de genocídio e os atos também tipificados de sua realização (homicídio, lesão corporal, etc.) (RAMOS, 2019, p. 476). Ainda sobre esse aspecto, ensina a doutrina:

Como o delito de genocídio não é crime doloso contra a vida, mas sim contra a existência de grupo nacional, étnico, racial ou religioso, eventual delito de genocídio deve ser processado e julgado, pelo menos em regra, perante um juiz singular. Assim, se o genocídio for praticado por meio da conduta descrita na alínea "d" do art. 1° da Lei n. 2.889/56, o agente deverá ser processado e julgado perante um juiz singular - estadual, pelo menos em regra, ou federal, se cometido em detrimento de índios.

Todavia, esse mesmo delito de genocídio pode ser praticado mediante morte de membros do grupo. Nesse caso, se o agente resolver matar vários integrantes do grupo, em circunstâncias semelhantes de tempo e de lugar, e com o mesmo modus operandi, deverá responder pelos diversos homicídios (em continuidade delitiva) e pelo crime de genocídio, em concurso formal impróprio, não sendo possível a aplicação do princípio da consunção. Nesse caso, os diversos crimes dolosos contra a vida praticados em continuidade delitiva deverão ser processados e julgados perante um Tribunal do Júri - em regra, Estadual; se cometido em detrimento de índios, Tribunal do Júri Federal -, que exercerá força atrativa em relação ao crime conexo de genocídio, tal qual dispõe o art. 78, inciso I, do Código de Processo Penal. (LIMA, 2020, p. 488).

Por seu turno, no âmbito da Justiça Militar da União, compete ao Conselho de Justiça o processo e julgamento da prática de genocídio, crime militar impróprio, quando nas hipóteses dos artigos 208, 401 ou 402, ambos do CPM, observada a competência do Tribunal do Júri apenas em tempo de paz.

Quanto aos demais aspectos do crime de genocídio, para o propósito deste estudo despendemos atenção concentrada no exame da forma de conduta, se positiva (comissiva) ou negativa (omissiva), em especial a análise desta. Ainda, em razão da proposta de identificar, em tese, a conexão entre omissão no campo das políticas públicas direcionada a eliminar no todo ou em parte grupo nacional, étnico, racial ou religioso e sua repercussão penal, foi levada a exame apenas a hipótese de submissão intencional de um grupo à condição de existência capaz de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial.11 Assim, não serão desenvolvidos aqui comentários extensivos no que diz respeito a todos os elementos e modalidades de genocídio, até porque existente doutrina de peso que cumpre esse mister. Destaca-se, no entanto, conforme decidido pelo Plenário do STF no julgamento do RE 351.487, que o bem jurídico tutelado é de caráter supraindividual, plasmado na existência de um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Essa existência do grupo é que se coloca “em risco por ações que podem também ser ofensivas a bens jurídicos individuais, como o direito à vida, à integridade física ou mental, a liberdade de locomoção, etc.” (STF, 2006). Ainda, o crime é comum, ou seja, pode ser cometido por qualquer pessoa, é crime formal, pois não exige resultado material, e pode ter como sujeito ativo apenas uma pessoa.

Nesse jaez, seguimos este trabalho com o estudo da conduta omissiva no crime de genocídio e a submissão intencional de um grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial, pela não implementação, implementação deficiente ou cessação de uma política pública de vinculação constitucional.

O delito de genocídio pode ser cometido tanto por ação quanto por omissão (GIL GIL, 2005, p. 256). No mesmo sentido Schabas (2009, p. 177), que entende serem todas as formas de genocídio enumeradas no artigo II da CPRCG, incluindo o assassinato, passíveis de serem cometidas por ação ou omissão. Entretanto, destaca que o ato mais óbvio de genocídio por omissão é o previsto no artigo II, c, aquele de “submeter intencionalmente o grupo a condição de existência capazes de ocasionarlhe a destruição física total ou parcial”, tendo inclusive tal perspectiva sido utilizada em julgamentos do Tribunal Penal Internacional para Ruanda12 (SCHABAS, 2009, p. 177). A essa hipótese chama-se de “violência negativa” (negative violence) (LACHS apud SCHABAS, 2009. p. 177). A lei penal canadense (Crimes Against Humanity and War Crimes Act), por exemplo, prevê expressamente a forma omissiva para o genocídio.13

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Infligir deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para provocar sua destruição física "total ou parcial" é o terceiro ato de genocídio enumerado no artigo II da CPRCG e no artigo 6 do ER, espelhados na legislação brasileira no art. 1º, c, da Lei nº 2.889/1956 e art. 208, II, do Código Penal Militar.14 Entretanto, diversamente das demais hipóteses do art. 1° da Lei nº 2.889/1956, a alínea “c” não encontra perfeita adequação a um tipo penal específico do Código Penal (LIMA, 2020, p. 485). De qualquer maneira, sugere-se

(...) que tal conduta pode se dar "pela privação de alimentos, água, roupas, remédios, ou material de higiene; internação em campos de concentração ou de refugiados, exposição a intempérie, ou a condições de trabalho extenuantes, marchas forçadas, expulsão das casas ou local de moradia, ou outros atos que possam levar à destruição física do grupo. Não há, aqui, uma duração previamente determinada da imposição de tais condições para o reconhecimento do delito que pretende causar a morte lenta dos membros do grupo, ao contrário do homicídio. O delito é permanente e a duração da imposição das condições que pretendem levar à extinção deve ser verificada no caso concreto"; (BALTAZAR JÚNIOR apud LIMA, 2020, p. 485).

Por sua vez, como exemplos de condições capazes de ocasionar destruição física total ou parcial, a doutrina internacional menciona, entre outros atos, a deportação, a colocação de um grupo de pessoas em uma dieta de subsistência, a redução dos serviços médicos necessários abaixo do mínimo e a negação de acomodações suficientes para moradia, mas apenas até o ponto em que tais medidas sejam impostas com a intenção de destruir o grupo no todo ou em parte (SCHABAS, 2016, p. 139).

Estabelecida, pois, a possibilidade da perpetração do genocídio em sua forma omissiva, seguimos para o ponto que diz respeito à política pública como veículo para a submissão de um grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física, total ou parcial.


2. Políticas públicas e direito, vinculação constitucional e omissão de implementação

A relação entre políticas públicas e direito não é pacífica nem uniforme. Percebemos, da mesma forma que Freitas (2015, p. 200), a existência de uma “crença infundada de que as políticas públicas pertenceriam ao reino da discricionariedade insindicável, como se as escolhas políticas (e, por vezes, as omissões), embora manifestamente viciadas, não fossem catalogáveis como inconstitucionais.” Como houvesse uma difamação da lei como um aspecto autônomo, distinto e não processual da política (LOWI, 2003, p. 498).

Entendemos que tal crença tenha origem na preferência, no campo de estudo das políticas públicas, quanto à análise ou avaliação do “ciclo da política pública” em detrimento do seu conteúdo ou elemento substancial. O “ciclo da política pública” é uma tipologia de análise, entre várias, que “vê a política pública como um ciclo deliberativo, formado por vários estágios e constituindo um processo dinâmico e de aprendizado” (SOUZA, 2006, p. 29). O ciclo da política pública é composto pelos estágios de definição de agenda, identificação de alternativas, avaliação de opções, seleção de opções, implementação e avaliação. Ao se referir a esse modelo de análise, DYE (2013, p. 15-16), além de enfatizar o seu caráter processual, alerta que não há competição entre os modelos de análise de políticas públicas, ou seja, não há um melhor do que o outro, já que a maioria das políticas é um combinação de planejamento racional, incrementalismo, atividade de grupos de interesse, preferências de elite, jogos, escolha pública, processo políticos e influências institucionais.

Theodor J. Lowi, importante cientista político estadunidense, ao tratar da relação entre direito e política pública, adverte que ninguém está à margem do direito15 e ele é tão universal e quase tão antigo quanto a própria civilização (LOWI, 2003, p. 493). O motivo do aparente afastamento entre direito e política pública deve-se ao fato de que a política pública somente entrou em cena em meados do século XIX e o fez de forma distanciada do direito, assim permanecendo até o início do século XX, principalmente em razão da influência de Woodrow Wilson, jurista americano que veio a se tornar o vigésimo oitavo presidente dos Estados Unidos da América (LOWI, 2003, p. 494).16 Somente mais tarde, a partir dos anos 1930, com o crescimento do Estado, é que direito e política pública, paulatinamente, tomaram caminho para se conciliar (LOWI, 2003, p. 498). É possível dizer que seriam os dois lados de uma mesma moeda, sendo a lei o formal e a política o real (LOWI, 2003, p. 500). Assim:

Sempre haverá algum grau de distância entre o formal e o real - nas burocracias públicas e privadas, nas famílias e em todas as outras formas de obrigações contratuais, nos esportes e em outras competições, inclusive nas eleições, e em todos os aspectos do governo. Mas em todas essas questões, principalmente em governos democráticos, a distância entre o formal e o real pode ser tomada como uma definição operacional de ilegitimidade. A política é o lado informal do governo, a declaração real do que o governo realmente faz. Mas a política deve ser tolerada, não adotada e, mesmo assim, tolerada apenas enquanto souber seu lugar: como servidora do Estado de direito. (LOWI, 2003, p. 501).17

É razoável supor, nas democracias ocidentais, que o processo de formação de uma política pública envolve os esforços de grupos de interesse concorrentes para influenciar os formuladores de políticas em seu favor (KILPATRICK, 2000). Não obstante, o ambiente no qual ocorre tal concorrência deve ter como limite e parâmetro o direito e seu corpo normativo cujo cume é o texto constitucional. Assim, um aspecto importante da política pública é a lei, que em um sentido geral, inclui legislação específica e disposições mais amplamente definidas de direito constitucional ou internacional (KILPATRICK, 2000).

A maioria das democracias modernas tem uma declaração de direitos que exclui vários tipos de políticas (prisão arbitrária, discriminação, censura e assim por diante), enquanto impõe outras (defesa nacional, educação e seguro social). (CONGLETON; SWEDENBORG, 2006, p. 26). Por sua vez, a política pública pode ser geralmente definida como um sistema de leis, medidas regulatórias, cursos de ação e prioridades de financiamento relativas a um determinado tópico promulgado por uma entidade governamental ou seus representantes (KILPATRICK, 2000). O direito, portanto, “tem importância fundamental para as políticas públicas, fazendo-se presente desde sua concepção até sua implantação, controle e revisão” (SUNDFELD; ROSILHO, 2014, p. 47).

O ente estatal tem como papel a promoção de políticas e ações públicas voltadas a atenuar ou suprimir as contingências que resultam na limitação de direitos humanos dos cidadãos. Como objetivo constitucional, no caso brasileiro, há inúmeras políticas contudo, faltam, em alguns casos, controles e procedimentos de accountability 18 (SEN, 2015, on-line, p. 141), essencial para que a máquina pública se torne eficiente, e suas políticas sejam efetivas, com a aptidão de comportamentos administrativos que provocam os resultados pretendidos (MODESTO, 2000, p. 6).

Percebe-se que as políticas públicas são os vetores de desenvolvimento de liberdades, cujas capacitações poderão ser ampliadas ou não a depender de haver contribuição efetiva do Estado e de outros atores na elaboração e execução de novas políticas.

É possível afirmar, portanto, que existem políticas públicas inseridas no texto constitucional, como é o caso da preservação das comunidades quilombolas, regulamentada por decreto (SUNDFELD; ROSILHO, 2014, p. 70), políticas públicas de vinculação constitucional e que encerram mandamento de implementação, uma vez que “o Estado Constitucional consagra, explícitas e implícitas, prioridades vinculantes a serem observadas, de modo criterioso, na enunciação e na implementação das políticas públicas” (FREITAS, 2015, p. 206). Nesse passo, ainda na voz de Juarez Freitas:

No caso brasileiro, em razão de seu modelo constitucional, as políticas públicas devem ser implementadas e controladas, obrigatoriamente, com base nas prioridades constitucionais vinculantes e no direito fundamental à boa administração.19 .

Sob o espectro jurídico, a legitimidade das políticas públicas, ou seja, sua conformidade com a “tábua axiológica da Constituição e os seus objetivos concomitantes de justiça e desenvolvimento sustentável” acarreta necessariamente, e principalmente, a “observância de obrigações resumidas no direito fundamental à boa administração” (FREITAS, 2015, p. 196)

De fato, no cenário brasileiro, toda política pública deve buscar seu status de validade no texto constitucional. No caso das políticas públicas insertas na constituição, ou seja, expressas, como o direito à saúde, essa vinculação constitucional encerra um dever, uma prestação positiva estatal, cuja implementação deficiente ou omissão merece ser sindicada nos âmbitos da responsabilização administrativa, civil e penal. Neste último caso, extremo e de ultima ratio, é que situamos o estudo corrente, para o exame da hipótese do próximo item.

No entanto, adianta-se, no caso de genocídio, uma abordagem dos crimes de omissão que se baseie na existência de um dever positivo pode limitar indevidamente o alcance da norma, na medida em que é difícil estabelecer a extensão da obrigação de um Estado, ou no caso de um indivíduo, em termos de garantir nutrição, assistência médica e moradia adequadas, por exemplo. O direito internacional dos direitos humanos fez incursões promissoras na proteção dos direitos econômicos e sociais, e suas normas podem fornecer algumas orientações úteis. Onde o genocídio é cometido pela omissão de prover as necessidades da vida, de uma maneira calculada para destruir o grupo no todo ou em parte, essa omissão provavelmente será aparente não por algum padrão abstrato de um mínimo vital, mas porque é discriminatório vis-à-vis em relação a outros grupos (SCHABAS, 2009, p. 196).

Assuntos relacionados
Sobre os autores
Philippe de Faria Corrêa Grey

Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Auditor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Farroupilha. Especialista em Direito Público pela IMED/ESMAFERS. Mestre em Políticas Públicas - Ciência Política pela Universidade Federal do Pampa.

Dionis Janner Leal

Mestrando em Direito do PPGD-IMED, membro do Grupo de Pesquisa CNPq ‘Direito Novas Tecnologias e Desenvolvimento’ e membro do GEDIPI, da Faculdade Meridional de Passo Fundo-RS. Especialista em Direito Público. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GREY, Philippe Faria Corrêa ; LEAL, Dionis Janner. Genocídio, políticas públicas e omissão: aportes para um debate inicial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7598, 20 abr. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/89672. Acesso em: 29 abr. 2024.

Mais informações

Capítulo de livro publicado em "Dano Social e Democracia", 2020, ISBN: 9786584340852, Editora Fi, Porto Alegre. DOI: 10.22350/9786587340852.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos