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Genocídio, políticas públicas e omissão: aportes para um debate inicial

Genocídio, políticas públicas e omissão: aportes para um debate inicial

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As omissões estatais na implementação de políticas públicas podem ser consideradas genocídio, sujeitas a julgamento nacional ou internacional.

Introdução

O presente estudo tem por objetivo promover um debate inicial sobre a forma omissiva do genocídio, um dos crimes mais graves contra a humanidade, e sua relação com as políticas públicas. Quando se fala em genocídio, comumente vem à mente a prática de um ou mais atos para consecução da intenção de destruir no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Entretanto, cogita-se da perpetração do genocídio também na forma omissiva, hipótese consagrada internacionalmente. No caso, especial relevo ganha o tipo de genocídio definido no Artigo II, c, da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, repetido no artigo 1º, c, da Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956 e art. 6º, c, do Estatuto de Roma, considerado o ato mais óbvio de genocídio por omissão. Ainda, e em especial, faz-se aporte no campo de estudo da política pública para registrar o entendimento da existência de políticas públicas de vinculação constitucional que encerram mandado de implementação. Por fim, exemplifica-se a hipótese de genocídio por omissão por meio da não implementação, implementação deficiente ou cessão de política pública de caráter constitucional vinculado.

No que diz respeito à metodologia, predomina a abordagem dada pelo método dedutivo, destacando-se ainda que este trabalho justifica-se pela temática pouquíssima tratada, não tendo sido encontrado nenhum estudo específico sobre o objeto de análise composto pela intersecção genocídio, direito e políticas públicas.


1. O crime de genocídio: conduta omissiva e a submissão intencional de um grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial.

O termo genocídio, inseparavelmente conectado com a história alemã (GROPENGIEßER, 2005, p. 329), foi cunhado pelo jurista judeu-polonês Raphael Lemkin em decorrência de estudos sobre a matança e deportação de armênios promovida pela Turquia, a partir de 1914, e do massacre de cristãos assírios pelo governo do Iraque em 1933, 1 mas que ganhou destaque em razão dos horrores da Segunda Guerra Mundial perpetrados, principalmente, pelos nazistas. Expressa pela composição híbrida dos radicais grego “genos” (tribo, raça, povo) e latino “cædere” (matar),2 a palavra genocídio evoca a barbárie e o desrespeito à toda a humanidade. Foi empregada durante o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg, ao final da Segunda Guerra Mundial, que, todavia, não julgou o crime de genocídio especificamente, mas sim crimes contra a humanidade.

Posteriormente, por meio da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio (CPRCG), de 1948,3 o termo passou a designar a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso.4 Já aqui destacamos que a doutrina enxerga na expressão “intenção de” a exigência do dolo específico de “destruir, no todo ou em parte” (RAMOS, 2019, p. 476). A convenção foi incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 30.822, de 6 de maio de 1952 e, em seu artigo II, fornece a seguinte tradução em língua portuguesa para o crime de genocídio:

ARTIGO II

Na presente Convenção entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:

a) matar membros do grupo;

b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;

c) submeter intencionalmente o grupo a condição de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;

d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio de grupo;

e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.

A Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956, decorrente do compromisso assumido com a ratificação da CPRCG, define e pune o crime de genocídio em terras brasileiras repetindo os termos da Convenção:

Art. 1º Quem, com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso, como tal:

a) matar membros do grupo;

b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo;

c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial;

d) adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;

e) efetuar a transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo; (...) 7

Por sua vez, o genocídio, tanto na forma consumada quanto na tentada, recebeu a rotulagem da hediondez por previsão expressa no artigo 1º, parágrafo único, da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, a “Lei dos Crimes Hediondos”, por inclusão da redação da Lei nº 8.930, de 06 de setembro de 1994.6

Igualmente, há previsão no ordenamento pátrio da punição do genocídio no Direito Penal Militar. Assim, se for considerado o genocídio como crime militar,7 aplica-se, em tempo de paz, a previsão do artigo 208 do Código Penal Militar; se em tempo de guerra, os artigos 401 e 402, também do Código Penal Militar.

No âmbito internacional, o Estatuto de Roma (ER)8 incorporou o genocídio como uma das quatro categorias de crime sujeitas à jurisdição do Tribunal Penal Internacional (TPI).9 Aprovado pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 112, de 6 de junho de 2002, o ER passou a viger em 1º de setembro de 2002, sendo promulgado pelo Decreto Legislativo nº 4.388, de 25 de setembro deste mesmo ano.

Quanto à competência, embora o genocídio tenha origem no direito internacional, importa ressaltar que o ER na verdade afirma a subsidiariedade da jurisdição internacional, da mesma forma que os tribunais de direitos humanos, consagrando o princípio da complementaridade. Assim sendo, o TPI não exerce sua jurisdição se a investigação ou o processo penal já tenha iniciado ou terminado, salvo se o Estado não tiver “capacidade” ou “vontade” de realizar justiça (RAMOS, 2019, p. 474).

Dessa forma, no quadro da competência jurisdicional interna, no que diz respeito à competência de Justiça, tem-se que, se o genocídio não se revestir do caráter de internacionalidade, a competência para o processo e o julgamento, como regra, será da Justiça Estadual. Isso porque “o simples fato de o delito estar previsto em tratado ou convenção internacional assinada pelo Brasil não enseja, por si só, a competência da Justiça Federal” em decorrência do previsto no artigo 109, inciso V, da Constituição Federal (LIMA, 2020 p. 487). No entanto, e em especial por tratar-se o genocídio de crime intrinsecamente grave e violador de direitos humanos, a competência pode ser incidentalmente deslocada para a Justiça Federal por iniciativa do Procurador-Geral da República, conforme artigo 109, § 5º, da Constituição Federal. Ainda, em especial, quando se tratar de genocídio contra povos indígenas, a competência há de ser da Justiça Federal, pois:

(...) como o delito teria o condão de atingir potencialmente a própria existência de uma determinada etnia indígena, inegável tratar-se de crime envolvendo a disputa sobre direitos indígenas, atraindo, por conseguinte, a competência da Justiça Federal, nos termos do art. 109, inciso XI, da Constituição Federal, e afastando a aplicação da súmula n. 140. do STJ ("Compete à Justiça Comum Estadual processar e julgar crime em que o indígena figure como autor ou vítima"). (LIMA, 2020, p. 487)

No que diz respeito à competência do órgão jurisdicional, o crime de genocídio pode ser da competência do juiz singular ou do Tribunal do Júri. O Plenário do STF, no julgamento do RE 351.487,10 em questão envolvendo o assassinato de índios Yanomami da tribo Haximú, por garimpeiros desejosos em explorar incontinente terras férteis para lavra garimpeira, episódio chamado “Massacre de Haximú”, reconheceu a competência para processo e julgamento do crime de genocídio ao juízo monocrático da Justiça Federal, excepcionada a modalidade em que os atos de destruição forem crimes dolosos contra a vida, hipótese que deve ser submetida ao escrutínio de um Tribunal do Júri federal. No caso, se entendeu pela caracterização de concurso formal impróprio entre o crime de genocídio e os atos também tipificados de sua realização (homicídio, lesão corporal, etc.) (RAMOS, 2019, p. 476). Ainda sobre esse aspecto, ensina a doutrina:

Como o delito de genocídio não é crime doloso contra a vida, mas sim contra a existência de grupo nacional, étnico, racial ou religioso, eventual delito de genocídio deve ser processado e julgado, pelo menos em regra, perante um juiz singular. Assim, se o genocídio for praticado por meio da conduta descrita na alínea "d" do art. 1° da Lei n. 2.889/56, o agente deverá ser processado e julgado perante um juiz singular - estadual, pelo menos em regra, ou federal, se cometido em detrimento de índios.

Todavia, esse mesmo delito de genocídio pode ser praticado mediante morte de membros do grupo. Nesse caso, se o agente resolver matar vários integrantes do grupo, em circunstâncias semelhantes de tempo e de lugar, e com o mesmo modus operandi, deverá responder pelos diversos homicídios (em continuidade delitiva) e pelo crime de genocídio, em concurso formal impróprio, não sendo possível a aplicação do princípio da consunção. Nesse caso, os diversos crimes dolosos contra a vida praticados em continuidade delitiva deverão ser processados e julgados perante um Tribunal do Júri - em regra, Estadual; se cometido em detrimento de índios, Tribunal do Júri Federal -, que exercerá força atrativa em relação ao crime conexo de genocídio, tal qual dispõe o art. 78, inciso I, do Código de Processo Penal. (LIMA, 2020, p. 488).

Por seu turno, no âmbito da Justiça Militar da União, compete ao Conselho de Justiça o processo e julgamento da prática de genocídio, crime militar impróprio, quando nas hipóteses dos artigos 208, 401 ou 402, ambos do CPM, observada a competência do Tribunal do Júri apenas em tempo de paz.

Quanto aos demais aspectos do crime de genocídio, para o propósito deste estudo despendemos atenção concentrada no exame da forma de conduta, se positiva (comissiva) ou negativa (omissiva), em especial a análise desta. Ainda, em razão da proposta de identificar, em tese, a conexão entre omissão no campo das políticas públicas direcionada a eliminar no todo ou em parte grupo nacional, étnico, racial ou religioso e sua repercussão penal, foi levada a exame apenas a hipótese de submissão intencional de um grupo à condição de existência capaz de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial.11 Assim, não serão desenvolvidos aqui comentários extensivos no que diz respeito a todos os elementos e modalidades de genocídio, até porque existente doutrina de peso que cumpre esse mister. Destaca-se, no entanto, conforme decidido pelo Plenário do STF no julgamento do RE 351.487, que o bem jurídico tutelado é de caráter supraindividual, plasmado na existência de um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Essa existência do grupo é que se coloca “em risco por ações que podem também ser ofensivas a bens jurídicos individuais, como o direito à vida, à integridade física ou mental, a liberdade de locomoção, etc.” (STF, 2006). Ainda, o crime é comum, ou seja, pode ser cometido por qualquer pessoa, é crime formal, pois não exige resultado material, e pode ter como sujeito ativo apenas uma pessoa.

Nesse jaez, seguimos este trabalho com o estudo da conduta omissiva no crime de genocídio e a submissão intencional de um grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial, pela não implementação, implementação deficiente ou cessação de uma política pública de vinculação constitucional.

O delito de genocídio pode ser cometido tanto por ação quanto por omissão (GIL GIL, 2005, p. 256). No mesmo sentido Schabas (2009, p. 177), que entende serem todas as formas de genocídio enumeradas no artigo II da CPRCG, incluindo o assassinato, passíveis de serem cometidas por ação ou omissão. Entretanto, destaca que o ato mais óbvio de genocídio por omissão é o previsto no artigo II, c, aquele de “submeter intencionalmente o grupo a condição de existência capazes de ocasionarlhe a destruição física total ou parcial”, tendo inclusive tal perspectiva sido utilizada em julgamentos do Tribunal Penal Internacional para Ruanda12 (SCHABAS, 2009, p. 177). A essa hipótese chama-se de “violência negativa” (negative violence) (LACHS apud SCHABAS, 2009. p. 177). A lei penal canadense (Crimes Against Humanity and War Crimes Act), por exemplo, prevê expressamente a forma omissiva para o genocídio.13

Infligir deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para provocar sua destruição física "total ou parcial" é o terceiro ato de genocídio enumerado no artigo II da CPRCG e no artigo 6 do ER, espelhados na legislação brasileira no art. 1º, c, da Lei nº 2.889/1956 e art. 208, II, do Código Penal Militar.14 Entretanto, diversamente das demais hipóteses do art. 1° da Lei nº 2.889/1956, a alínea “c” não encontra perfeita adequação a um tipo penal específico do Código Penal (LIMA, 2020, p. 485). De qualquer maneira, sugere-se

(...) que tal conduta pode se dar "pela privação de alimentos, água, roupas, remédios, ou material de higiene; internação em campos de concentração ou de refugiados, exposição a intempérie, ou a condições de trabalho extenuantes, marchas forçadas, expulsão das casas ou local de moradia, ou outros atos que possam levar à destruição física do grupo. Não há, aqui, uma duração previamente determinada da imposição de tais condições para o reconhecimento do delito que pretende causar a morte lenta dos membros do grupo, ao contrário do homicídio. O delito é permanente e a duração da imposição das condições que pretendem levar à extinção deve ser verificada no caso concreto"; (BALTAZAR JÚNIOR apud LIMA, 2020, p. 485).

Por sua vez, como exemplos de condições capazes de ocasionar destruição física total ou parcial, a doutrina internacional menciona, entre outros atos, a deportação, a colocação de um grupo de pessoas em uma dieta de subsistência, a redução dos serviços médicos necessários abaixo do mínimo e a negação de acomodações suficientes para moradia, mas apenas até o ponto em que tais medidas sejam impostas com a intenção de destruir o grupo no todo ou em parte (SCHABAS, 2016, p. 139).

Estabelecida, pois, a possibilidade da perpetração do genocídio em sua forma omissiva, seguimos para o ponto que diz respeito à política pública como veículo para a submissão de um grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física, total ou parcial.


2. Políticas públicas e direito, vinculação constitucional e omissão de implementação

A relação entre políticas públicas e direito não é pacífica nem uniforme. Percebemos, da mesma forma que Freitas (2015, p. 200), a existência de uma “crença infundada de que as políticas públicas pertenceriam ao reino da discricionariedade insindicável, como se as escolhas políticas (e, por vezes, as omissões), embora manifestamente viciadas, não fossem catalogáveis como inconstitucionais.” Como houvesse uma difamação da lei como um aspecto autônomo, distinto e não processual da política (LOWI, 2003, p. 498).

Entendemos que tal crença tenha origem na preferência, no campo de estudo das políticas públicas, quanto à análise ou avaliação do “ciclo da política pública” em detrimento do seu conteúdo ou elemento substancial. O “ciclo da política pública” é uma tipologia de análise, entre várias, que “vê a política pública como um ciclo deliberativo, formado por vários estágios e constituindo um processo dinâmico e de aprendizado” (SOUZA, 2006, p. 29). O ciclo da política pública é composto pelos estágios de definição de agenda, identificação de alternativas, avaliação de opções, seleção de opções, implementação e avaliação. Ao se referir a esse modelo de análise, DYE (2013, p. 15-16), além de enfatizar o seu caráter processual, alerta que não há competição entre os modelos de análise de políticas públicas, ou seja, não há um melhor do que o outro, já que a maioria das políticas é um combinação de planejamento racional, incrementalismo, atividade de grupos de interesse, preferências de elite, jogos, escolha pública, processo políticos e influências institucionais.

Theodor J. Lowi, importante cientista político estadunidense, ao tratar da relação entre direito e política pública, adverte que ninguém está à margem do direito15 e ele é tão universal e quase tão antigo quanto a própria civilização (LOWI, 2003, p. 493). O motivo do aparente afastamento entre direito e política pública deve-se ao fato de que a política pública somente entrou em cena em meados do século XIX e o fez de forma distanciada do direito, assim permanecendo até o início do século XX, principalmente em razão da influência de Woodrow Wilson, jurista americano que veio a se tornar o vigésimo oitavo presidente dos Estados Unidos da América (LOWI, 2003, p. 494).16 Somente mais tarde, a partir dos anos 1930, com o crescimento do Estado, é que direito e política pública, paulatinamente, tomaram caminho para se conciliar (LOWI, 2003, p. 498). É possível dizer que seriam os dois lados de uma mesma moeda, sendo a lei o formal e a política o real (LOWI, 2003, p. 500). Assim:

Sempre haverá algum grau de distância entre o formal e o real - nas burocracias públicas e privadas, nas famílias e em todas as outras formas de obrigações contratuais, nos esportes e em outras competições, inclusive nas eleições, e em todos os aspectos do governo. Mas em todas essas questões, principalmente em governos democráticos, a distância entre o formal e o real pode ser tomada como uma definição operacional de ilegitimidade. A política é o lado informal do governo, a declaração real do que o governo realmente faz. Mas a política deve ser tolerada, não adotada e, mesmo assim, tolerada apenas enquanto souber seu lugar: como servidora do Estado de direito. (LOWI, 2003, p. 501).17

É razoável supor, nas democracias ocidentais, que o processo de formação de uma política pública envolve os esforços de grupos de interesse concorrentes para influenciar os formuladores de políticas em seu favor (KILPATRICK, 2000). Não obstante, o ambiente no qual ocorre tal concorrência deve ter como limite e parâmetro o direito e seu corpo normativo cujo cume é o texto constitucional. Assim, um aspecto importante da política pública é a lei, que em um sentido geral, inclui legislação específica e disposições mais amplamente definidas de direito constitucional ou internacional (KILPATRICK, 2000).

A maioria das democracias modernas tem uma declaração de direitos que exclui vários tipos de políticas (prisão arbitrária, discriminação, censura e assim por diante), enquanto impõe outras (defesa nacional, educação e seguro social). (CONGLETON; SWEDENBORG, 2006, p. 26). Por sua vez, a política pública pode ser geralmente definida como um sistema de leis, medidas regulatórias, cursos de ação e prioridades de financiamento relativas a um determinado tópico promulgado por uma entidade governamental ou seus representantes (KILPATRICK, 2000). O direito, portanto, “tem importância fundamental para as políticas públicas, fazendo-se presente desde sua concepção até sua implantação, controle e revisão” (SUNDFELD; ROSILHO, 2014, p. 47).

O ente estatal tem como papel a promoção de políticas e ações públicas voltadas a atenuar ou suprimir as contingências que resultam na limitação de direitos humanos dos cidadãos. Como objetivo constitucional, no caso brasileiro, há inúmeras políticas contudo, faltam, em alguns casos, controles e procedimentos de accountability 18 (SEN, 2015, on-line, p. 141), essencial para que a máquina pública se torne eficiente, e suas políticas sejam efetivas, com a aptidão de comportamentos administrativos que provocam os resultados pretendidos (MODESTO, 2000, p. 6).

Percebe-se que as políticas públicas são os vetores de desenvolvimento de liberdades, cujas capacitações poderão ser ampliadas ou não a depender de haver contribuição efetiva do Estado e de outros atores na elaboração e execução de novas políticas.

É possível afirmar, portanto, que existem políticas públicas inseridas no texto constitucional, como é o caso da preservação das comunidades quilombolas, regulamentada por decreto (SUNDFELD; ROSILHO, 2014, p. 70), políticas públicas de vinculação constitucional e que encerram mandamento de implementação, uma vez que “o Estado Constitucional consagra, explícitas e implícitas, prioridades vinculantes a serem observadas, de modo criterioso, na enunciação e na implementação das políticas públicas” (FREITAS, 2015, p. 206). Nesse passo, ainda na voz de Juarez Freitas:

No caso brasileiro, em razão de seu modelo constitucional, as políticas públicas devem ser implementadas e controladas, obrigatoriamente, com base nas prioridades constitucionais vinculantes e no direito fundamental à boa administração.19 .

Sob o espectro jurídico, a legitimidade das políticas públicas, ou seja, sua conformidade com a “tábua axiológica da Constituição e os seus objetivos concomitantes de justiça e desenvolvimento sustentável” acarreta necessariamente, e principalmente, a “observância de obrigações resumidas no direito fundamental à boa administração” (FREITAS, 2015, p. 196)

De fato, no cenário brasileiro, toda política pública deve buscar seu status de validade no texto constitucional. No caso das políticas públicas insertas na constituição, ou seja, expressas, como o direito à saúde, essa vinculação constitucional encerra um dever, uma prestação positiva estatal, cuja implementação deficiente ou omissão merece ser sindicada nos âmbitos da responsabilização administrativa, civil e penal. Neste último caso, extremo e de ultima ratio, é que situamos o estudo corrente, para o exame da hipótese do próximo item.

No entanto, adianta-se, no caso de genocídio, uma abordagem dos crimes de omissão que se baseie na existência de um dever positivo pode limitar indevidamente o alcance da norma, na medida em que é difícil estabelecer a extensão da obrigação de um Estado, ou no caso de um indivíduo, em termos de garantir nutrição, assistência médica e moradia adequadas, por exemplo. O direito internacional dos direitos humanos fez incursões promissoras na proteção dos direitos econômicos e sociais, e suas normas podem fornecer algumas orientações úteis. Onde o genocídio é cometido pela omissão de prover as necessidades da vida, de uma maneira calculada para destruir o grupo no todo ou em parte, essa omissão provavelmente será aparente não por algum padrão abstrato de um mínimo vital, mas porque é discriminatório vis-à-vis em relação a outros grupos (SCHABAS, 2009, p. 196).


3. A omissão de implementação de políticas públicas vinculadas constitucionalmente e responsabilização penal. breve contribuição a partir de um exemplo hipotético.

Assim, para o exercício ao qual se propõe o presente estudo, ficou sedimentado que o genocídio pode ser praticado por meio de omissão e as políticas públicas devem obedecer a parâmetros e vínculos constitucionais. Assim, imagine-se que um governo não implemente, implemente deficientemente ou cesse uma política pública constitucional de caráter vinculado e os destinatários passem a sofrer direta e indiretamente as consequências desse não agir, estando claro o nexo causal e a intenção de causar danos, inclusive a destruição física, mediante a submissão a condições existência precárias.

Com inspiração no caso “Massacre do Haximú”, anteriormente mencionado, desenvolvemos o seguinte exemplo tendo por base a seguinte situação fática: garimpeiros com a intenção de explorar terra indígena habitada por uma pequena etnia, ao invés de partir para o confronto direto, intimidação e até atos contra a vida, utilizam de meios políticos, como o estabelecimento de grupos de interesse, para que a referida etnia seja submetida a condições de existência tais que ocasione, no tempo, a sua natural destruição física.

Assim, toma-se a proteção ao indígena albergada na Constituição Federal Brasileira de 1988. No texto constitucional está anotado, no artigo 231, que aos “índios são reconhecidos sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” Além disso, o § 1º desse mesmo artigo 231 esclarece que as terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas são aquelas “habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.”

Sabendo-se que o direito à saúde é um direito fundamental (artigo 6º da Constituição Federal), houve especial preocupação em estipular que a sua promoção, proteção e recuperação seja garantida por meio de políticas sociais e econômicas destinadas a redução do risco de doença e de outros agravos, bem como o acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde. Ainda, são consideradas de relevância públicas as ações e serviços de saúde (artigo 197 da Constituição Federal).

Por sua vez, a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, com inclusões e alterações dadas pela Lei nº 9.836, de 23 de setembro de 1999, instituiu um Subsistema de Atenção à Saúde Indígena no seu artigo 19 e seguintes, componente e integrado ao Sistema Único de Saúde (SUS), cabendo à União, com recursos próprios, financiar esse subsistema.

Ainda, o parágrafo único do art. 11. do Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011, que regulamenta o artigo 19 da Lei nº 8.080/1990, estabelece que a "população indígena contará com regramentos diferenciados de acesso, compatíveis com suas especificidades e com a necessidade de assistência integral à sua saúde".

Agora imaginemos que em razão dos grupos de pressão formados por garimpeiros e associações correlatas, com forte influência política e ligada a atores de alto poder financeiro, a regulamentação relativa à política pública constitucional de proteção à saúde dos indígenas comece a passar por alterações que retirem e dificultem o acesso ao atendimento à saúde, forçando até mesmo a etnia a abandonar as terras “necessárias a sua reprodução física e cultural” (art. 231, § 1º, Constituição Federal) de forma a colocar em risco mesmo a própria existência do grupo étnico, com vistas a ter acesso a terras tradicionalmente ocupadas por povo indígenas. Estaria configurado o crime de genocídio?

A resposta não é de fácil apresentação. Isso porque, mesmo na sua forma omissiva, o crime de genocídio demanda a prova da intenção, ou seja, da vontade consciente e direcionada à obtenção do resultado desejado pela não implementação, implementação deficiente ou cessação de uma política pública. No caso, a produção de prova do liame subjetivo é de difícil obtenção. Entretanto, tal possibilidade não pode ser perdida de vista. No caso sob apreço, o crime do artigo II, “c”, da CPRCG (artigo 1º, “c”, da Lei nº 2.889/1956; art. 6º, “c”, do ER), não exige resultado material, ou seja, trata-se de crime formal, pelo que a simples submissão intencional de um grupo a condições de existência com capacidade para ocasionar a sua destruição física, total ou parcial, já configura o crime. Havendo o resultado morte, ou seja, a destruição total ou parcial do grupo, o delito se subsume às letras “a” e “b” do artigo II, da CPRCG (artigo 1º, “a” e “b”, da Lei nº 2.889/1956; art. 6º, “a” e “b”, do ER). Assim, no exame do caso concreto, em comparação com o tratamento dispensado a outros grupos (SCHABAS, 2009, p. 196), sopesado o não atendimento à vinculação constitucional da política pública, seja pela sua não implementação, implementação deficiente ou cessação,20 é possível, em ultima ratio, a configuração de genocídio nos termos do artigo II, “c”, da CPRCG (artigo 1º, “c”, da Lei nº 2.889/1956; art. 6º, “c”, do ER), sendo a competência para processo e julgamento, no caso de etnia indígena afetada, atribuída à Justiça Federal, em juízo singular, observada a subsidiariedade da jurisdição internacional em homenagem ao princípio da complementaridade do TPI.


Conclusão

A intersecção genocídio, políticas públicas e direito é complexa, em especial do viés da responsabilização. Embora o mais distante, até por ser a ultima ratio, o enfoque da responsabilidade penal, aqui examinada, não merece ser colocado de lado. Outrossim, considerando que as políticas públicas devem ter como fundamento de validade, e por limite, em todo o seu ciclo, a constituição, não pode haver dissociação entre direito e políticas públicas. Nesse caldo, omissões estatais quanto à não implementação, implementação deficiente e cessamento de políticas públicas de vínculo constitucional, podem, no exame do caso concreto, e caracterizada a intenção exigida, ser consideradas como genocídio, reservado o processo e julgamento ao âmbito doméstico como regra e internacionalmente por subsidiaridade.


Notas

1 LEMKIN HOUSE. Life of Raphael Lemkin. Disponível em: <https://lemkinhouse.org/about-us/life-of-raphaellemkin/>. Acesso em: ago. 2020.

2 Adverte AMBOS (2005, p. 117) que “La denominación alemana ‘Völkermord’ (genocidio) es imprecisa e induce a error, ya que el tipo penal no exige la matanza de un pueblo (Volk) en sentido amplio. El concepto de genocidio (Genozid) – que aqui se utiliza -, compuesto de genos (del griego: raza, linaje) y cide (del latin caedere: matar), es preferible, pues tanto el art. II (a)-(e) de la Convención como el § 220 a I nro. 1-5 del StGB exigen objetivamente um ataque a la existencia física (nro. 1-3) o a la futura existencia (nro. 4-5) de un grupo nacional, racial, religioso o étnico.” Observamos que o § 220a do StGB (Strafgesetzbuch – Código Penal alemão) foi revogado em 26 de junho de 2002 pelo artigo 2 n. 1. da EGVStGB (Gesetz zur Einführung des Völkerstrafgesetzbuches - Lei de Introdução ao Código de Crimes contra o Direito Internacional), ou também mencionado como VStGB (Völkerstrafgesetzbuch – Código de Crimes contra o Direito Internacional). Entretanto, a redação do § 220a do StGB foi transferida, sem alteração significante (GROPENGIEßER, 2005, P. 331), para o artigo 6 do VStGB. BARTH (2006, p. 19) também salienta a imprecisão da tradução para o alemão do termo “genocídio” como Völkermord e seu uso como sinônimo de Genozid, uma vez que o conceito de assassinato em massa (Völkermord) não corresponde exatamente à definição restritiva da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio.

3 Após longa discussão, a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio (CPRCG) foi aprovada unanimemente, em 9 de dezembro de 1948, pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), por meio da Resolução 260 A (III). Passou a vigorar três meses após o depósito do vigésimo instrumento de ratificação ocorrido em 12 de janeiro de 1951. Trata-se do “primeiro tratado multilateral a respeito de um crime internacional a entrar em vigor na História” (CRETELLA NETO, 2008 p. 330). Merece nota a íntima relação entre a CPRCG e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas apenas um dia após, em 10 de dezembro de 1948 (BARTH, 2006, p. 15). A CPRCG foi ratificada pela Alemanha em 1955 e pelos Estados Unidos somente em 1988.

4 Apenas esses quatro grupos foram elencados como possível alvo do crime de genocídio. Apesar das tentativas de alargar o número de grupos humanos merecedores de proteção, todas as propostas foram rejeitadas. A proteção a grupos linguísticos foi considerada redundante. Já os grupos sociais, políticos, ideológicos e econômicos foram intencionalmente excluídos do espectro protetivo (SCHABAS, 2009, p. 117; SCHABAS, 2016, p. 137). A questão voltou a ser debatida nos trabalhos preparatórios do ER, mas o alargamento do âmbito de proteção não obteve sucesso e foi mantido o espírito da CPRCG. Entretanto, a primeira decisão judicial que enfrentou a questão da abrangência protetiva, proferida pelo Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPIR), considerou ejusdem generis a enumeração da norma (CPRCG e ER), entendendo pela proteção de todos os grupos estáveis e constituídos de forma permanente, cuja filiação é determinada pelo nascimento. Todavia, essa interpretação não vingou em sede de apelação, sendo reafirmada a interpretação restritiva. No entanto, em especial no campo doutrinário e inclusive de outras comissões da ONU, há progressivo entendimento no sentido de que a lista de grupos na definição da CPRCG (e por reflexo no ER) deve receber uma interpretação ampla e liberal (SCHABAS, 2016, p. 135-136).

5 O preceito secundário do tipo penal em questão prevê, por remissão ao Código Penal, as seguintes penas: “Será punido: Com as penas do art. 121, § 2º, do Código Penal, no caso da letra a; Com as penas do art. 129, § 2º, no caso da letra b; Com as penas do art. 270, no caso da letra c; Com as penas do art. 125, no caso da letra d; Com as penas do art. 148, no caso da letra e;”.

6 Atualmente o genocídio está previsto como crime hediondo no inciso I do artigo 1º da Lei nº 8.072/1990, por inclusão da Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, alcunhada de “Pacote Anticrime”. Entretanto, o rótulo de hediondo não abarca o genocídio previsto no Código Penal Militar.

7 Para configuração dessa hipótese, deverão estar presentes os critérios legais previstos no artigo 9º do Código Penal Militar.

8 O tratado internacional que criou o Estatuto do Tribunal Penal Internacional foi adotado durante Conferência Intergovernamental em Roma, no ano de 1998. Aberto à assinatura em 17 de julho de 1998, passou a viger internacionalmente a partir de 1º de setembro de 2002.

9 Os crimes submetidos à jurisdição do TPI são considerados os “crimes mais graves que preocupam a comunidade internacional em seu conjunto”, conforme artigo 5.1 do ER. Representam o que se chama de core crimes (crimes nucleares) do atual Direito Internacional Penal (CRETELLA NETO, 2008, p. 325). Além do genocídio, o ER prevê em seu artigo 5.1 a competência do TPI para julgar os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e o crime de agressão.

10 Da leitura do inteiro teor do julgamento extrai-se que, no caso concreto, como houve a condenação apenas pelo crime de genocídio pelo juízo singular, mesmo tendo sido praticado por homicídio, e não houve recurso da acusação, operou a ne reformatio in pejus. Daí a atribuição “em tese” da competência ao Tribunal do Júri, como consta no acórdão.

11 Artigo II, c, da CPRCG; artigo 1º, c, da Lei nº 2.889/1956; art. 6º, c, do ER.

12 V. Caso nº ICTR-96-4 (The Prosecutor vs. Jean-Paul AKAYESU) levado a julgamento no TPIR, disponível: <https://unictr.irmct.org/en/cases/ictr-96-4>. Este processo, o qual ainda estamos examinando, contempla discussões acerca do genocídio por omissão.

133 genocide means an act or omission committed with intent to destroy, in whole or in part, an identifiable group of persons, as such, that, at the time and in the place of its commission, constitutes genocide according to customary international law or conventional international law or by virtue of its being criminal according to the general principles of law recognized by the community of nations, whether or not it constitutes a contravention of the law in force at the time and in the place of its commission.” (CANADA, 2000). Tradução nossa: “3 genocídio significa um ato ou omissão cometido com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo identificável de pessoas, como tal, que, no momento e no local de sua prática, constitui genocídio de acordo com o direito internacional consuetudinário ou o direito internacional convencional ou em virtude de ser (ato) criminoso de acordo com os princípios gerais do direito reconhecidos pela comunidade das nações, quer constitua ou não uma violação da lei em vigor no momento e no local de sua comissão.” Ressalta-se que há intensa e atual discussão no Canadá acerca da omissão estatal em relação à proteção de seus povos indígenas, em especial mulheres e crianças, cujo desaparecimento está sendo considerado como genocídio por estudiosos e parte da imprensa, bem como parte da opinião pública. Debates e controvérsias desta índole também ocorrem na Austrália.

14 Observam-se três situações no que diz respeito ao Código Penal Militar e o tratamento do genocídio: a) o tipo “matar membros de um grupo” recebeu tratamento diferenciado e encabeça o artigo 208, indicando tratar-se do genocídio propriamente dito; b) o parágrafo único do artigo 208 traz a rubrica “casos assimilados”, dando tratamento diverso daquele dos tratados internacionais; c) o inciso II do parágrafo único do artigo 208 em questão agrega um elemento moral ao tipo, elastecendo a concepção nessa hipótese, na medida em que prediz que será punido quem “submete o grupo a condições de existência, físicas ou morais, capazes de ocasionar a eliminação de todos os seus membros ou parte dêles.”

15 A palavra “law” aqui foi utilizada no sentido de “direito”, ou seja, do conjunto de normas que compõem um sistema ou ordenamento jurídico. No original, LOWI (2003), utiliza “law” para indicar “direito” e por vezes “lei”, no sentido da norma escrita instituída pelo legislador.

16 LOWI (2003), apresenta uma interessante percepção histórico-evolutiva da relação entre o direito (lei) e a política pública, mas com detalhamento e inserções que fogem ao escopo do presente estudo, razão pela qual pede-se licença para remeter ao artigo em questão.

17 Tradução nossa.

18 Sobre o tema ver: LEAL, Dionis Janner. Accountability no setor público sobre a perspectiva de Amartya Sen: do estado eficiente ao estado de controle e gestão de riscos. In: LUCAS, Doglas Cesar et al (Orgs.). Direitos Humanos e Democracia em tempos de crise: a proteção jurídica das minorias. Vol. 2. p. 544-558. Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2019.

19 De forma resumida, o direito fundamental à boa administração é o “lídimo plexo de direitos, regras e princípios, encartados numa síntese, ou seja, o somatório de direitos subjetivos públicos" (FREITAS, 2015, p. 198), considerados como "standard mínimo" e, por isso, sem excluir outros direitos, compreendendo: a) o direito à administração pública transparente; b) o direito à administração pública sustentável; c) o direito à administração pública dialógica; d) o direito à administração pública imparcial e o mais desenviesada possível; e) o direito à administração pública proba; f) o direito à administração pública respeitadora da legalidade temperada; g) o direito à administração pública preventiva, precavida e eficaz (FREITAS, 2015, p. 198-199)

20 A inauguração do exame dessa questão sob a ótica do conceito de “dever de proteção” (Schutzpflicht) e dos critérios da “proibição de proteção insuficiente” (Untermaßverbot) e “proibição do excesso” (Übermaßverbot), no estudo dos elementos do princípio da proporcionalidade, merece atenção, aprofundamento e maturação, a qual no momento ainda se carece. Todavia, como anteriormente mencionado, tem-se que onde o genocídio é cometido pela omissão de prover as necessidades da vida, de uma maneira calculada para destruir o grupo no todo ou em parte, essa omissão provavelmente será aparente não por algum padrão abstrato de um mínimo vital, mas porque é discriminatório vis-à-vis em relação a outros grupos (SCHABAS, 2009, p. 196). Seria a revelação dessa desproporcionalidade em sentido estrito um indicativo da omissão genocida?


Referências

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Autores

  • Philippe de Faria Corrêa Grey

    Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Auditor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Farroupilha. Especialista em Direito Público pela IMED/ESMAFERS. Mestre em Políticas Públicas - Ciência Política pela Universidade Federal do Pampa.

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  • Dionis Janner Leal

    Dionis Janner Leal

    Mestrando em Direito do PPGD-IMED, membro do Grupo de Pesquisa CNPq ‘Direito Novas Tecnologias e Desenvolvimento’ e membro do GEDIPI, da Faculdade Meridional de Passo Fundo-RS. Especialista em Direito Público. Advogado.

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Informações sobre o texto

Capítulo de livro publicado em "Dano Social e Democracia", 2020, ISBN: 9786584340852, Editora Fi, Porto Alegre. DOI: 10.22350/9786587340852.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GREY, Philippe de Faria Corrêa; LEAL, Dionis Janner. Genocídio, políticas públicas e omissão: aportes para um debate inicial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 29, n. 7598, 20 abr. 2024. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/89672. Acesso em: 16 maio 2024.