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Anitta, os sertanejos e a Lei Rouanet

11/06/2022 às 12:45
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Qual a diferença entre ser contratado sem licitação para fazer um show e captar incentivos via Lei Rouanet? Qual o impacto desses mecanismos para os cofres públicos?

Recentemente, explodiu na mídia uma série de notícias envolvendo a cantora Anitta, um grupo de cantores sertanejos, os cachês pagos pelas prefeituras a esses artistas e a grande polêmica em torno da lei Rouanet, que acabou dando início ao clamor popular para a CPI do Sertanejo. Observando-se as questões jurídicas do fato, segue a análise do caso a seguir.

No mês de maio de 2022, a dupla sertaneja Zé Neto e Cristiano se apresentou na cidade de Sorriso, no Mato Grosso, e o cantor Zé Neto, durante o show, afirmou que era um artista que nunca precisou da Lei Rouanet, pois quem paga seu cachê é povo, e nem precisou fazer tatuagem íntima para mostrar se está bem ou não, numa clara alusão à cantora Anitta, que possui uma tatuagem na região anal.

Na sequência, os fãs da cantora fizeram uma busca refinada a respeito dos cachês altíssimos dos sertanejos e acabaram descobrindo que eles recebiam valores consideráveis das prefeituras das cidades onde se apresentavam sem nenhum tipo de licitação, o que chamou bastante a atenção do público e dos órgãos fiscalizadores.

Fazendo uma breve explanação sobre o assunto, a licitação nada mais é do que é o processo por meio do qual a Administração Pública contrata obras, serviços, realiza compras e faz alienações. Em outras palavras, licitação é a forma como a Administração Pública pode comprar e vender. Já o contrato é o ajuste entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que há um acordo para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas.

Segundo o artigo 3° da Lei 8.666/93, a licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos.


Em outras palavras, é garantido a todos aqueles que queiram contratar com o Poder Público igualdade de condições, onde a Administração Pública avaliará a proposta mais vantajosa visando a promoção do desenvolvimento nacional sustentável. Isso pode ser feito através das seguintes modalidades:

Convite: Convite é a modalidade de licitação entre interessados do ramo pertinente ao seu objeto, cadastrados ou não, escolhidos e convidados em número mínimo de 3 (três) pela unidade administrativa, a qual afixará, em local apropriado, cópia do instrumento convocatório e o estenderá aos demais cadastrados na correspondente especialidade que manifestarem seu interesse com antecedência de até 24 (vinte e quatro) horas da apresentação das propostas.

Tomada de preços: Tomada de preços é a modalidade de licitação entre interessados devidamente cadastrados ou que atenderem a todas as condições exigidas para cadastramento até o terceiro dia anterior à data do recebimento das propostas, observada a necessária qualificação.

Concorrência pública: Concorrência é a modalidade de licitação entre quaisquer interessados que, na fase inicial de habilitação preliminar, comprovem possuir os requisitos mínimos de qualificação exigidos no edital para execução de seu objeto.

Leilão: Leilão é a modalidade de licitação entre quaisquer interessados para a venda de bens móveis inservíveis para a administração ou de produtos legalmente apreendidos ou penhorados, ou para a alienação de bens imóveis prevista no art. 19, a quem oferecer o maior lance, igual ou superior ao valor da avaliação.

Concurso público: Concurso é a modalidade de licitação entre quaisquer interessados para escolha de trabalho técnico, científico ou artístico, mediante a instituição de prêmios ou remuneração aos vencedores, conforme critérios constantes de edital publicado na imprensa oficial com antecedência mínima de 45 (quarenta e cinco) dias.

Pregão: Para aquisição de bens e serviços comuns, poderá ser adotada a licitação na modalidade de pregão, que será regida pela Lei 10.520/02. Consideram-se bens e serviços comuns, aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais no mercado.


Existem, obviamente, as exceções, nos casos em que a lei dispensa a licitação na contratação. São elas:

Dispensa: descrita no rol taxativo do Art.24 da Lei nº 8.666/93, a dispensa é determinada em:

1- Em razão do valor: o custo do procedimento operacional pode ser superior ao valor do contrato;

2- Em razão de situações excepcionais: a demora do procedimento é incompatível com a urgência na realização do contrato (exemplo: casos de guerra ou calamidade pública); quando a celebração do contrato não atender ao interesse público, ou ainda quando a licitação não despertar o interesse dos particulares (licitação deserta) ou no caso em que os interessados não são selecionados por serem inabilitados ou desclassificados (licitação fracassada);

3- Em razão do objeto: ocorre, por exemplo, nas compras hortifrutigranjeiros ou de outros gêneros perecíveis, devendo ser observado o tempo necessário para a realização do procedimento licitatório, este com base no preço do dia;

4- Em razão da pessoa: dá-se, por exemplo, na contratação de associação de portadores de deficiência física, sem fins lucrativos e de comprovada idoneidade, em contrato de prestação de serviços ou de fornecimento de mão de obra, desde que o preço não seja incompatível com os oferecidos no mercado.

Inexigibilidade: apenas no caso de inviabilidade de competição é que a licitação poderá deixar de ser realizada, visto que existe apenas um objeto ou uma pessoa que atenda às necessidades da Administração, conforme o disposto no artigo 25 da Lei n° 8.666/93.

A licitação será inexigível:

1- Para aquisição de materiais, equipamentos, ou gêneros que só possam ser fornecidos por produtor, empresa ou representante comercial exclusivo, vedada a preferência de marca, devendo a comprovação de exclusividade ser feita através de atestado fornecido pelo órgão de registro do comércio do local em que se realizaria a licitação ou a obra ou o serviço, pelo Sindicato, Federação ou Confederação Patronal, ou, ainda, pelas entidades equivalentes;

2- Para a contratação de serviços técnicos, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação;

3- Para contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou através de empresário exclusivo, desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública.

No caso dessas contratações artísticas, como são feitas por inexigibilidade, têm-se observado os altos cachês pagos para a realização desses shows por prefeituras de cidades pequenas. E essa ausência de licitação entre as promotoras de eventos, com a inexigibilidade de licitação, pode gerar o desvio de recursos públicos em favor desses grupos contratados, visto que, ao entrar em contato com a empresa que gerencia o artista para contratá-lo, se recebe a informação acerca do valor, e a prefeitura, querendo formalizar o contrato, não raramente paga o valor solicitado desviando de outras áreas importantes do município para o lazer. Além disso, sempre que houver a possibilidade de competição entre possíveis interessados na realização de shows artísticos, deverá haver procedimento de licitação. Mas geralmente não é o que ocorre.

Os sertanejos Zé Neto e Cristiano, por exemplo, com base no artigo 25 da lei 8.666/93, na modalidade de inexigibilidade de licitação, receberam a título de cachê R$550.000,00 (quinhentos e cinquenta mil reais) do município de Extrema MG; R$403.000,00 (quatrocentos e três mil reais) de Sebastianópolis do Sul SP; R$203.000,00 (duzentos e três mil reais) de Araporã MG; R$180.000,00 (cento e oitenta mil reais) de Campos Gerais MG; R$253.000,00 (duzentos e cinquenta e três mil reais) de Colina SP; R$400.000,00 (quatrocentos mil reais) de Sorriso MT, dentre vários outros cachês de valores consideráveis de pequenas prefeituras de cidades do interior, de acordo com os vários contratos que podem ser facilmente encontrados através de pesquisa na internet.

Com toda essa repercussão causada pela fala do artista, os olhos voltaram-se para a disparidade nos valores recebidos também por outros sertanejos. O cantor Gustavo Lima teve três shows sob alvo de investigação, sendo o último deles no estado do Rio de Janeiro, em cachê firmado com a prefeitura de Magé em R$ 1.004.000,00 (um milhão e quatro mil reais). Alguns dias antes, ele teve uma apresentação em Minas no valor de R$ 1.200.000,00 (um milhão e duzentos mil reais) cancelada, após o Ministério Público mineiro receber denúncias. Vale salientar também que, além do cachê, a prefeitura ainda paga o deslocamento do artista, a hospedagem e todos os custos de produção para a realização do evento.

Agora voltando ao caso, com a repercussão colossal que o assunto gerou, fica a pergunta: é ilegal o recebimento desses cachês astronômicos pagos a esses artistas? A resposta é não. Não é. A Lei 8.666/93 autoriza essas contratações. Não cabe ao artista fiscalizar a verba pública, mas cabe a ele e a empresa que o gerencia, no mínimo, usar da ética e da proporcionalidade a respeito da cobrança desses valores, uma vez que dezenas de prefeituras de cidades do interior acabam pagando pequenas fortunas a esses artistas por poucas horas de show, enquanto não há o mínimo de qualidade de vida e dignidade para as pessoas dessas cidades. Nesse caso, o dinheiro público não está sendo destinado corretamente para onde deveria, já que existem outras áreas com prioridades mais urgentes e necessárias do que o lazer e que aquelas verbas fizeram muita falta.


Com isso, traz-se à tona a famigerada polêmica a respeito da Lei Rouanet. Por que tantos artistas são contrários a ela?

Primeiramente, é importante destacar o que é e como ela funciona.

A Lei Rouanet de Incentivo à Cultura - Lei 8.313/91 - foi criada no governo do então Presidente Fernando Collor, com o intuito de contribuir para que milhares de projetos culturais aconteçam, todos os anos, em todas as regiões do país. Por meio dela, empresas e pessoas físicas podem patrocinar espetáculos exposições, shows, livros, museus, galerias e várias outras formas de expressão cultural e abater o valor total ou parcial do apoio do Imposto de Renda. A Lei também contribui para ampliar o acesso dos cidadãos à Cultura, já que os projetos patrocinados são obrigados a oferecer uma contrapartida social, ou seja, eles têm que distribuir parte dos ingressos gratuitamente e promover ações de formação e capacitação junto às comunidades.

O Incentivo Fiscal é um dos mecanismos do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), instituído pela Lei Rouanet. É uma forma de estimular o apoio da iniciativa privada ao setor cultural, por meio de Renúncia Fiscal. O incentivo é um mecanismo em que a União faculta às pessoas físicas ou jurídicas a opção pela aplicação de parcelas do Imposto sobre a Renda, a título de doações ou patrocínios, no apoio direto a projetos culturais ou em contribuições ao Fundo Nacional da Cultura (FNC).

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Funciona da seguinte maneira: Um produtor cultural, artista ou instituição, como um museu ou teatro, por exemplo, planeja fazer um evento cultural um festival, uma exposição, uma feira de livros, entre outros. Para tornar a ideia dele mais atrativa para patrocinadores, ele pode submetê-la à análise da Secretaria Especial da Cultura do Ministério do Turismo para receber a chancela da Lei de Incentivo à Cultura. Se a proposta apresentada for aprovada, o produtor vai poder captar recursos junto a apoiadores (pessoas físicas e empresas) oferecendo a eles a oportunidade de abater aquele apoio do Imposto de Renda. O governo renuncia ao imposto (renúncia fiscal) para que ele seja direcionado à realização de atividades culturais. Com isso, ganha o produtor cultural, ganha o apoiador e ganham os brasileiros, que terão mais opções à disposição e mais acesso à cultura.

Importante destacar que nos projetos favorecidos pela Lei Rouanet não há dinheiro público envolvido. No ano de 2018, foi divulgado um estudo que avaliou o impacto do mecanismo pela 1ª vez. A cada R$ 1 investido por patrocinadores em projetos culturais por meio da Lei Rouanet, R$ 1,59 retornou para a economia do país. O dado é resultado de um estudo sobre o mecanismo de incentivo. Os resultados mostraram que a Lei Rouanet injetou R$ 49,8 bilhões na economia desde 1991.

Já nas contratações por dispensa de licitação não há nenhum controle sobre de onde vem a verba pública para o pagamento dos cachês. O Tribunal de Contas averigua as despesas do município para identificar possíveis irregularidades à Lei de Responsabilidade Fiscal, que fixa um teto para as despesas da Prefeitura, que ficam condicionadas à arrecadação de tributos. Em comparação com a contratação de artistas via inexigibilidade, nos projetos via Lei Rouanet todos os recursos são privados. Por isso, as críticas à Lei têm caráter meramente ideológico. Não existe uma regra sobre o que pode e o que não pode ser objeto de captação de recursos no âmbito da Lei Rouanet. Todos os tipos de eventos podem ser patrocinados sem o uso de verba pública. No entanto, todos os artistas que são críticos ferrenhos à Lei Rouanet recebem ou já receberam seus cachês pagos com dinheiro público. Evidentemente que em um país democrático todos podem e devem ter suas opiniões a respeito de determinados temas, especialmente os mais sensíveis à sociedade. Porém, é imprescindível que se mostre os dois lados da moeda, e aqueles que estão sob a ótica das pessoas, enquanto figuras públicas, que ajam com o mínimo de bom senso e de ética, caso contrário toda essa censura e desaprovação não passa de mais um discurso demagogo e tendencioso.


Fontes:

Direito administrativo / Maria Sylvia Zanella Di Pietro. 33. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8666cons.htm

https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/11146/Inexigibilidade-de-licitacao

http://leideincentivoacultura.cultura.gov.br/

https://www.portaltransparencia.gov.br/entenda-a-gestao-publica/licitacoes-e-contratacoes

https://www.olicitante.com.br/tcu-contratacao-de-artistas/

https://tse.jusbrasil.com.br/noticias/100290605/lei-de-responsabilidade-fiscal-controla-gastos-nos-municipios

https://www.uol.com.br/splash/noticias/2022/06/02/o-que-e-a-lei-rouanet.htm?cmpid=copiaecola

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NOVAES, Leslie Marina. Anitta, os sertanejos e a Lei Rouanet. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6919, 11 jun. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/98476. Acesso em: 27 abr. 2024.

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