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A codificação como fenômeno não contemporâneo e o desenvolvimento da ciência jurídica administrativa

20/08/2021 às 14:05
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O poder público legiferante pode alterar normas e atividade da Administração. Ainda assim, e mesmo sem um código, não se alteram as bases jurídicas do direito administrativo.

I. Introdução

O Direito Administrativo possui a particularidade (se comparado a outros ramos do Direito) de não ter sofrido com um processo de codificação, ou seja, não possui em um único corpo normativo diretrizes gerais que irão reger sua aplicação prática e suas formulações normativas mais específicas. Contudo, isso não quer dizer que seja um ramo no qual o Direito se desenvolve ao léu da legislação, ao contrário, sua aplicação se dá justamente pautada na legalidade dos atos da administração, conforme será destrinchado; essa ausência de normas codificadas apenas evidenciam que tal direito tem, justamente, sua base na teoria.

Evidente, uma área jurídica cuja base normativa não possui um animus de generalidade ou de, até mesmo, durabilidade (no sentido de suas normas serem mais voláteis que a de um código) é sine qua nom que a mesma possua uma base teórica que supra tais características identificadas na codificação. Não obstante, não se pretende dizer que a teoria do Direito Administrativo seja "um código com diretrizes gerais não escrito"; como será dito oportunamente, a codificação é um processo com sutilezas opostas ao desenvolvimento teórico do Direito.

II. Breve contextualização histórica

Conforme pode ser visto na tese para docente titular da USP do Professor Fernando Dias Menezes de Almeida, "Formação da Teoria do Direito Administrativo no Brasil", o Direito Administrativo tem sua base no Conselho de Estado Francês, criado em 1799, mas consolidado somente em 1872. 

Nesse período, desenvolveu-se o Direito de forma jurisprudencial na medida em que o Conselho passou a atuar como órgão adjudicante dos conflitos entre público e privado para além da mera organização administrativa (essa estabelecida por meio de leis regulamentadoras).

Durante esses mesmos anos, o Direito Civil francês se desenvolvia a luz da escola exegética, na qual os civilistas prestavam reverência ao texto fiel do código napoleônico. O Direito Administrativo, por não possuir uma codificação, seguiu a medida jurisprudencial, na qual se aplicou o método exegético, sendo tal prática, inclusive, alvo de críticas de juristas (François Gény, por exemplo) a época, os quais entendiam que a primazia absoluta do precedente faria com que o Direito ficasse perigosamente de lado. Mesmo assim o Direito Administrativo francês se desenvolveu mais voltado aos comentários jurisprudenciais e menos a uma produção teórica calcada em princípios.

A nova vertente da produção jurídica sobre o Direito Administrativo se deu pela dimensão criativa do Conselho de Estado e a percepção de tal dimensão por autores como Maurice Hauriou (ALMEIDA, 2015, p. 75):

"(...) o trabalho do jurista não seria apenas descrever, mas, ao buscar conhecer seu objeto – e transmitir conhecimento sobre ele –, acrescentar ideias, às quais chega em um processo de abstração, que permitem um discurso reconstrutivo do direito a partir de um patamar diverso, de um primeiro nível de abstração (ver tópico 1): é o papel de atuar para a formação da teoria." 

Nesse cenário, Achille Mestre destrincha cinco conceitos construídos por Hauriou inovadores para o Direito Administrativo: (i) o recurso por excesso de poder; (ii) a teoria do “ministro juiz”; (iii) a responsabilidade do Estado por “faute de service”; (iv) a responsabilidade dos municípios; e (v) a teoria do “Estado devedor”.

Nota-se nesse instante o embrionamento de noções teóricas e principiológicas que extrapolam qualquer método de extração exegético. Tem-se assim o início de uma construção sólida daquilo que basilará o Direito Administrativo em sua teoria. Evidente que tal processo não se deu por uma sequência de atos espontâneos teleologicamente encadeados, e sim como reflexo de um amadurecimento jurisprudencial do Conselho de Estado e da própria situação política francesa.

No diapasão do último elemento, inevitável evidenciar o paralelo intrínseco que há entre o Direito Administrativo e a Administração Pública, a qual, antes de mais nada, é política, não jurídica. Destarte, tal ramo do Direito dialoga (especialmente em perspectiva histórica) diretamente com os fenômenos políticos. Odete Medauar identificou tal característica, apontando que o impacto de uma matriz teórica, doutrinária e principiológica teria maior reverberação no Direito Administrativo do que nos demais ramos. 

No caso particular desse Direito Administrativo embrionário francês do final do século XIX, é visível que ocorreu uma supressão da ação eventualmente criadora do Conselho de Estado, sendo que o legislador não mobilizou uma produção de direito pela via legislativa. Maria Sylvia Zanella DI Pietro ainda complementa, ao identificar que coube à doutrina preencher essa lacuna.

É justamente essa peculiaridade dos "impactos" evidenciados por Odete Medauar que dá lugar à característica peculiar do Direito Administrativo destacada na Introdução.

III. O fenômeno da Codificação

A codificação, enquanto fenômeno moderno (não contemporâneo do ponto de vista jusfilosófico, conforme será demonstrado), tem como base o processo francês de elaboração do Código Napoleônico; contudo, há de se remeter a origem de tal ideário.

Originalmente, dentro do pensamento jurídico filosófico pré-contemporâneo (ressalvada a exceção da filosofia clássica grega), o processo legiferante, enquanto demonstração máxima de direito, pretendia a formulação de leis de base jusnaturalistas, o que quer dizer que o Direito era pautado em uma racionalidade, moralidade ou imperatividade universal e eterna.

Na antiguidade, no berço do Direito Ocidental, o Direito Romano se desenvolveu de tal forma. Inicialmente pelo caráter místico dado ao Direito, comum a toda produção jurídica da época, mas cujo desenvolvimento, mesmo cunhado por racionalidade, não se propôs a quebrar com noções de "verdades inatas". Cícero, a exemplo disso, seguia a escola filosófica estoica, na qual transpunha sua nuclearidade para o Direito ao afirmar que a lei segue a "recta ratio". O Corpus Iuris Civilis foi constituído sob a mesma égide.

No período pós-clássico, Roma sentiu a decadência do Direito Pretoriano, o que fez com que surgisse a necessidade de fixar as normas estabelecidas até então. O processo de codificação ordenado por Justiniano, além de vedar a aplicação de Direito estranho ao Corpus Iuris Civilis, entregou um animus de vigência eterna e universal daquilo que fora codificado para a posterioridade. A ideia justiniana era de elaborar um direito pronto.

Tal base romanista parece estranha para o debate sobre o Código Napoleônico, escrito quase 1300 anos depois; contudo, as bases da codificação ainda não eram de cunho contemporâneo, e o Código pretendia ser a "Constituição do Povo", pautado na Razão, razão essa com R maiúsculo, uma vez que se moldava em um jusnaturalismo racional (jusracionalismo). Não há na proposta codificadora a adequação ao tempo histórico, e sim, uma proximidade a "reta razão" estóica.

A Codificação visa, acima de tudo, a imobilidade da aplicação, sendo assim campo frutífero para uma exegese que enxerga no corpo legal uma cristalização do racional do legislador.

IV. O Direito Administrativo como ramo contemporâneo por excelência

Evidente que, pela data, o Código Napoleônico é pertencente à Idade Contemporânea por ter sido escrito e promulgado pós 1789. Contudo, em termos jusfilosóficos, é anterior ao marco atribuído a inauguração das escolas jurídicas contemporâneas. Não raro se encontra como referência a tal marco a produção teórica de  Friedrich Hegel.

Em linhas gerais concisas, Hegel inova todo pensamento jusfilosófico ao trazer para sua filosofia o componente histórico; assim, entende a filosofia e o Direito historicamente, e não como algo eterno, rompendo com o jusracionalismo e a ideia de verdade absoluta kantiana. Para além das linhas gerais filosóficas e adentrando no campo do Direito, Hegel transpõe a imutabilidade natural da razão para como fruto da atividade Estatal. Ou seja, o Estado ditará o curso do Direito sem que se proponha a ser ad eternum, e sim inserido dentro do seu contexto histórico. O próprio Estado, por sua vez, não seria fruto da comunhão da vontade de particulares como sendo um meio, e sim um fim "em si e para si" (HEGEL, 2003, §258).

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O período napoleônico não bebeu da filosofia hegeliana, não por outro motivo que por uma questão temporal (ao menos, inicialmente).

Um adendo há de ser feito com relação à escola histórica alemã e suas considerações acerca da codificação no século XIX. Tal linha de pensamento faz parte de um positivismo eclético que possuía traços de sincretismo com o próprio jusracionalismo da era napoleônica. O célebre debate entre Savigny e Thibaut, notórios nomes desse movimento, não negaram a razão codificadora em si, e sim a sua relativização para o elemento do "espírito do povo", ou seja, não negou-se uma codificação, e sim uma codificação que não levasse em conta as peculiaridades de cada povo.

Adentrando no âmbito político-sociológico, Émile Durkheim analisou uma peculiaridade em Napoleão, o qual “não era desses homens que têm o culto da ciência e do papel que ela deve normalmente preencher na vida geral de um grande país”(DURKHEIM, 1888). Para o general corso, o conhecimento científico tinha fulcro meramente profissional. Assim, tal conhecimento, não era objeto em si da atividade estatal no que tange, inclusive, a produção jurídica, fazendo com que o Direito se ensimesmasse em si mesmo provocando a superficialidade de um método exegético (Aplicação ao caso napoleônico do método sociológico durkheimiano, no qual a sociologia privilegia a comparação em vez do estudo de fatos singulares independentes). Ou seja, houve um reducionismo daquilo que hoje entendemos ser a ciência jurídica em sua maior amplitude.

O Direito Administrativo se desenvolve após esse momento. Se no início a tentativa de tratamento era exegética, mesmo que pela mera análise jurisprudencial, a prática e o fortalecimento de tal ramo mostraram ser impossível tal emprego.

O Direito Administrativo é por excelência dinâmico, uma vez que trabalha diretamente com a atividade estatal. Tal atividade é intrinsecamente fruto de uma vontade política que se coagula na forma dos atos administrativos. Em suma, o Direito administrativo lida indiretamente (ou quase que diretamente) com o resultado de processos políticos, os quais não são e não se pretendem ser inatos e engessados como ramos do direito codificado.

Tal característica apontada, não por coincidência, surge em um momento de quebra de pensamento jusfilosófico na qual entende o Direito com fruto de seu tempo histórico; o poder público legiferante pode alterar suas normas e, por consequência, alterar toda atividade da Administração, mas não irá alterar a base jurídica do Direito Administrativo, justamente por ela não estar calcada em um código (ou qualquer outra forma de Direito posto que o valha) e sim em uma base teórica, principiológica e doutrinária. Essa forma de se entender o Direito Administrativo permite com que ele se amolde às necessidades políticas mais diversas, sem que a administração seja travada ou que o Direito seja bruscamente alterado.

V. Conclusão

Ante o exposto, pode-se concluir que a Teoria do Direito opera como corpo fundamental do Direito Administrativo pela sua própria construção histórica se comparada ao desenvolvimento do Direito Civil, que originalmente tendia a se irradiar para as demais searas jurídicas.

Impossível, ou melhor, ineficaz seria transpor para o Direito Administrativo os métodos e as bases de aplicação prática do Direito Civil, uma vez que aquele não possui sua amálgama em uma codificação. Há dessa forma um vácuo na base das relações jurídicas entre o administrador e o administrado (no que tange à organização estatal, essa, em sua origem, estava intimamente atrelada a um corpo normativo), vácuo esse que não podia ser preenchido pela mera exegese jurisprudencial, requerendo atividade criadora teórica, atividade essa que esteve a cargo dos doutrinadores.

Pela própria natureza inicial de tal ramo do Direito de controle do binômio autoridade e liberdade,  é evidente que a base desse controle não poderia ser voltada à produção do ente que detinha autoridade (direito posto estatal). Assim, a construção de "axiomas" administrativos se fez fundamental para dar alicerce a essa seara que pretendia ser o meio de operação dos conflitos com a autoridade estatal. Em suma, logicamente que a base de um Direito potencialmente antítese do Estado (ou ao menos, controle do Estado) se pautaria em uma construção teórica desvinculada do mesmo, ainda que seus órgãos judicantes estivessem atrelados a esse.


Bibliografia

ALMEIDA, Fernando Dias Menezes. “Formação da teoria do direito administrativo no Brasil”. 2015.

HEGEL,G.W.F. “Princípios de Filosofia do Direito”. Martins Fontes. SP. 2003.

MARKY, Thomas. Curso Elementar de Direito Romano. São Paulo: Saraiva, 1995.

MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do direito. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2018.

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Sobre o autor
Antônio Gonzalez de Andrade

Graduando em Direito pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (FD-USP) e pesquisador a nível de Iniciação Científica pelo Departamento de Direito de Estado da Faculdade de Direito do Largo São Francisco (FD-USP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Antônio Gonzalez. A codificação como fenômeno não contemporâneo e o desenvolvimento da ciência jurídica administrativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6624, 20 ago. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/92428. Acesso em: 28 abr. 2024.

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