Multiparentalidade e suas consequências

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16/05/2019 às 13:36
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MULTIPARENTALIDADE SEGUNDO A ANÁLISE JURISPRUDENCIAL

Necessário é salientar que o reconhecimento da Multiparentalidade acarreta uma série de consequências e efeitos, entre eles, os desdobramentos jurídicos são os que mais refletem em toda a sociedade, tendo em vista que atingem não somente as partes envolvidas, mas também terceiros que não fazem parte dessa relação.

Desse modo, é importante mencionar o Instituto Brasileiro de Direito de Família(IBDFAM), que aprovou em 22 de novembro de 2013, nove enunciados, durante o IX Congresso Brasileiro de Direito de Família em Araxá/MG, sendo o resultado de 16 anos de produção de conhecimento e estudo que serve como base para a criação  de nova doutrina e jurisprudência no âmbito do Direito de Família Entre esses enunciados, destaca-se o enunciado nº 09, que diz a respeito da Multiparentalidade, trazendo em seu texto a seguinte frase: “A multiparentalidade gera efeitos jurídicos.” ( CASSETARI, 2013, p.171).

Sobre isso, Maria Berenice Dias comenta a respeito do enunciado supracitado:

Consolidado o conceito de parentalidade socioafetiva, imperioso admitir a possibilidade de coexistência da filiação biológica e da filiação construída pelo afeto. Não há outro modo de melhor contemplar a realidade da vida do que abrir caminho para o reconhecimento da multiparentalidade. Nesse sentido, enunciado do IBDFAM. Afinal, não há como negar que alguém possa ter mais de dois pais.Todos assumindo os encargos do poder familiar, a proteção será maior a quem merece tutela com absoluta prioridade (DIAS,2017apud CASSETARI,2015,p.156).

Tal enunciado demonstra um grande avanço, tendo em vista que por muito tempo houve certa resistência por parte da jusrisprudência, devido à matéria ser polêmica e pelo fato de muito tempo se entender a impossibilidade de uma pessoa possuir dois pais ou duas mães (CASSETARI, 2013, p.171).

A exemplo disso, vale mencionar o julgado do Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul no ano de 2009:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. EFEITOS MERAMENTE PATRIMONIAIS. AUSÊNCIA DE INTERESSE DO AUTOR EM VER DESCONSTITUÍDA A PATERNIDADE REGISTRAL. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO.

Considerando que o autor, embora alegue a existência de paternidade socioafetiva, não pretende afastar o liame parental em relação ao pai biológico, o pedido configura-se juridicamente impossível, na medida em que ninguém poderá ser filho de dois pais. Impossibilidade jurídica do pedido reconhecida de ofício. Processo extinto. Recurso prejudicado (TJRS; Apelação Cível 70027112192; Oitava Câmara Cível; Rel. Des. Claudir Fidélis Faccenda; j. 2.4.2009).

Destarte, percebe-se pelas razões do julgado que a pretensão de se figurar a existência da paternidade socioafetiva em conjunto com a paternidade biológica era totalmente repelida, por se considerar um pedido impossível, levando à extinção do feito pela falta de uma das condições da ação.

Não obstante isso, tal entendimento foi  mudando e hoje a jurisprudência tem sido em sua maioria no sentido de reconhecer a multiparentalidade, contudo, sem banalizar tal instituto, que deve ser usado com a devida cautela, tendo em vista que nem sempre aos casos concretos pode-se recomendar o exercício da paternidade afetiva em conjunto com a paternidade biológica. Para Maria Berenice Dias, embora não exista lei que preveja a possibilidade de uma pessoa ser registrada em nome de mais de dois genitores, não existe proibição, pois o que não é proibido é permitido (DIAS, 2017, s.p)

Como exemplo disso, pode-se citar a sentença prolatada nos autos nº 0038958-54.2012.8.16.0021 da Vara de Infância e Juventude de Cascavel, no Paraná, em que se reconhece a Multiparentalidade levando em consideração os vínculos do infante com o pai socioafetivo e o pai biológico e os prejuízos que podem ser causados a ele pela ausência de seu reconhecimento, tendo em vista que faria com que o menor tivesse de optar entre um  e outro, trazendo assim grande sofrimento. Aliás, em uma parte da sentença o magistrado  fundamentou no seguinte sentido:

“ Restou evidente que no caso dos autos há duas filiações, nitidamente estabelecidas, uma biológica e registral e outra socioafetiva. Qual delas deve prevalecer? É possível a dupla paternidade? Fico imaginando o sofrimento psicológico pelo qual este jovem passou nos últimos tempos ao ter que tomar uma decisão tão difícil, ou seja, optar um por um ou outro pai. Por outro lado, o pai biológico, para atender ao interesse de seu filho, mesmo contrariado, consente em abrir mão da paternidade que sempre exerceu. Impossível não lembrar do julgamento do rei Salomão (I Reis, 3, 16-28).”, em que a verdadeira mãe, também, para o bem de seu filho e para que este não fosse morto, abriu mão da maternidade. E assim, por ser verdadeira mãe, recuperou o filho.(Sentença, autos nº 0038958-54.2012.8.16.0021).

Ademais, o magistrado norteou sua decisão no princípio do melhor interesse da criança e do adolescente a fim de demonstrar que sua decisão não esta sem embasamento legal ou principiólogico do ordenamento jurídico.

Não se trata, evidentemente, de criar situações jurídicas inovadoras, fora da abrangência dos princípios constitucionais e legais. Trata-se de um fenômeno de nossos tempos, da pluralidade de modelos familiares, das famílias reconstituídas, que precisa ser enfrentado também pelo Direito. São situações em que crianças e adolescentes acabam, na vida real, tendo efetivamente dois pais ou duas mães. O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente está em reconhecer, no caso dos autos, a dupla paternidade. (Sentença, autos nº 0038958-54.2012.8.16.0021).

Depreende-se, então, da fundamentação do magistrado, que, nessa situação peculiar, inexiste preferência entre uma paternidade/maternidade ou outra, ou seja, de que a paternidade socioafetiva e a paternidade biológica não se  sobrepõe uma à outra.

A propósito, nessa interpretação também já decidiu o Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. PRESENÇA DA RELAÇÃO DE SOCIOAFETIVIDADE. DETERMINAÇÃO DO PAI BIOLÓGICO ATRAVÉS DO EXAME DE DNA. MANUTENÇÃO DO REGISTRO COM A DECLARAÇÃO DA PATERNIDADE BIOLÓGICA. POSSIBILIDADE. TEORIA TRIDIMENSIONAL. Mesmo havendo pai registral, o filho tem o direito constitucional de buscar sua filiação biológica (CF, § 6o do art.227), pelo princípio da dignidade da pessoa humana. O estado de filiação é a qualificação jurídica da relação de parentesco entre pai e filho que estabelece um complexo de direitos e deveres reciprocamente considerados. Constitui-se em decorrência da lei (artigos 1.593, 1.596 e 1.597 do Código Civil, e 227 da Constituição Federal), ou em razão da posse do estado de filho advinda da convivência familiar. Nem a paternidade socioafetiva e nem a paternidade biológica podem se sobrepor uma à outra. Ambas as paternidades são iguais, não havendo prevalência de nenhuma delas porque fazem parte da condição humana tridimensional, que é genética, afetiva e ontológica. Apelo provido (TJRS; Apelação Cível 70029363918; 8a Câmara; Rel. Des. Claudir Fidélis Faccenda; j. 7.5.2009)

Além desses casos de reconhecimento da Multiparentalidade com a existência da paternidade/maternidade afetiva e biológica, a jurisprudência já entendeu que é possível se estender tal reconhecimento mesmo pós mortem de um dos pais. A propósito, tal hipótese ocorreu em julgado do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo no ano de 2012, ao reconhecer a maternidade socioafetiva sem excluir a maternidade biológica.

EMENTA: MATERNIDADE SOCIOAFETIVA Preservação da Maternidade Biológica Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família - Enteado criado como filho desde dois anos de idade Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes - A formação da família moderna não-consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade Recurso provido (TJ-SP – APL: 64222620118260286 SP 0006422-26.2011.8.26.0286, Relator: Alcides Leopoldo e Silva Júnior, Data de Julgamento: 14/08/2012, 1ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 14/08/2012)

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Na análise do julgado, é possível observar que a maternidade socioafetiva ocorreu devido ao enteado ter sido criado por sua madrasta como se filho fosse, originando uma relação de maternidade socioafetiva em virtude de sua mãe biológica ter falecido no parto. Contudo, o mais curioso do julgado foi que a preservação da maternidade biológica se deu com fundamento em respeito à memória da mãe falecida.

Segundo o relatório do acordão, constam os seguintes fatos:

“o autor nasceu em 26/06/1993, perdeu sua mãe biológica, três dias depois do parto, em decorrência de acidente vascular cerebral. Meses após, seu pai conheceu a requerente, e se casaram, quando a criança tinha dois anos, e foi por ela criado como filho, com quem convive até o presente. A madrasta poderia simplesmente adotar o enteado, mas por respeito à memória da mãe, vítima de infortúnio, que comoveu toda a comunidade, que a homenageou, atribuindo seu nome a uma rua e a um Consultório Odontológico Municipal, e por carinho a família dela, com quem mantém estreito relacionamento, optou pela presente via” (Apelação nº 0006422-26.2011.8.26.0286,p.03).

Além disso, consta que, para provar a maternidade socioafetiva, foram juntadas fotos, demonstrando o acompanhamento da madrasta ao enteado em todas as fases da vida do enteado, aniversários, festas, passeios, viagens, etc., até chegar à sua vida adulta.

Por fim, o fundamento adotado pelo relator foi fundado no princípio da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1, III, CF/88) e na decisão do Superior Tribunal de Justiça no Resp. 889852/RS, que reconheceu a possibilidade de adoção por duas mulheres, diante da existência de “fortes vínculos afetivos”, dando provimento ao recurso de apelação interposto e por consequência o reconhecimento da maternidade socioafetiva, preservando-se a maternidade biológica no caso da madrasta e do enteado.

Recentemente, o Supremo Tribunal Federal já decidiu no sentido de que no vínculo de afetividade espontâneo, criado entre padrasto e madrasta, prevalece o melhor interesse da criança e do adolescente, ou soma em relação à realidade registral ou biológica quando nesta existir fato que justifique, sendo reconhecida a multiparentalidade via repercussão geral 622, em 21/09/2016.

Nesse aspecto, vale mencionar também que, por último, na data de 25/04/2018, foi publicada notícia no site do Superior Tribunal de Justiça, de que o reconhecimento da Multiparentalidade está condicionado ao interesse da criança.  No referido caso, “a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou provimento ao recurso por meio do qual uma mulher pretendia assegurar que sua filha tivesse o pai socioafetivo e o pai biológico reconhecidos concomitantemente no registro civil. A multiparentalidade é uma possibilidade jurídica, mas, mesmo havendo exame de DNA que comprovava o vínculo biológico, os ministros entenderam que essa não seria a melhor solução para a criança” (STJ,2018). Além disso, o relator do recurso Marco Aurélio Bellizze fez o seguinte comentário:

“A possibilidade de se estabelecer a concomitância das parentalidades socioafetiva e biológica não é uma regra, pelo contrário, a multiparentalidade é uma casuística, passível de conhecimento nas hipóteses em que as circunstâncias fáticas a justifiquem, não sendo admissível que o Poder Judiciário compactue com uma pretensão contrária aos princípios da afetividade, da solidariedade e da parentalidade responsável” (STJ, 2018).

O processo tramita em segredo de justiça e por esta razão o número do processo não foi divulgado.

Desse modo, é possível perceber que a Multiparentalidade para o STJ tem sido aplicada como exceção da exceção, ou seja, somente em casos excepcionais que justifique tal medida pode ser reconhecida e permitida , sendo o pressuposto essencial o melhor interesse da criança e do adolescente e que a jurisprudência em um todo vem se consolidando à um mesmo sentido, apesar de ainda existirem casos isolados, em que o entendimento ainda é legalista e resistente às mudanças sociais.

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Sobre o autor
Junior Cesar Carneiro

Sou advogado concursado das Centrais de Abastecimento do Paraná. Especialista em Direito Administrativo, Direito Aplicado e em Advocacia Cível.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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