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EC 66/2010: a regulamentação do divórcio e o direito de não permanecer casado como pura manifestação das liberdades constitucionais

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10/05/2023 às 17:51
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5. AS MODALIDADES DE SEPARAÇÃO

Não obstante o presente trabalho tenha como pedra de toque o acerto do legislador constituinte em suprimir do cenário normativo a separação, a sua apreciação mostra-se necessária, justamente com o viés de que não restem dúvidas quanto ao despropósito da manutenção, por tantos anos, de instituto tão arcaico e desarrazoado.

De repercussão restrita ao rompimento dos deveres de coabitação e fidelidade e das regras do regime de bens, a separação podia ser categorizada em diferentes grupos, a saber: judicial ou extrajudicial; consensual ou litigiosa.

Dentro da categoria litigiosa, a seu turno, destacam-se as seguintes subespécies: “separação falência”, “separação remédio” e “separação sanção”. Passemos, então, ao cotejo de cada uma dessas classificações.

5.1 As vias administrativa e judicial

Com a entrada em vigor da Lei n. 11.441, de 4 de janeiro de 2007, facultou-se a realização das separações, divórcios e partilhas consensuais por meio de escritura pública lavrada em cartório de notas, afastando, assim, a obrigatoriedade do procedimento judicial.

Para tanto, devem todos os interessados serem capazes e concordes com os termos do ajuste. Com efeito, o art. 3º da referida lei acresceu ao Código de Processo Civil o seguinte dispositivo:

Art. 1.121-A – A separação consensual e o divórcio consensual, não havendo filhos menores ou incapazes do casal e observados os requisitos legais quanto aos prazos, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns e à pensão alimentícia e, ainda, ao acordo quanto à retomada pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou à manutenção do nome adotado quando se deu o casamento.

§ 1º A escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para o registro civil e o registro de imóveis.

§ 2º O tabelião somente lavrará a escritura se os contraentes estiveres assistidos por advogado comum ou advogado de cada um deles, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial

§ 3º A escritura e demais atos notariais serão àqueles que se declararem pobres sob as penas da lei. (grifos acrescidos)

Como se vê, o regramento legal em tela tem por escopo proporcionar a desburocratização, simplificando a vida jurídica dos cidadãos, e, em última análise, minimizar a intervenção daninha do Estado nas relações privadas.

Também discriminando os pressupostos para se recorrer ao mecanismo mais célere, dentre os quais se inclui serem os cônjuges capazes e plenamente concordes, a lei em apreço gerou questionamento quanto à suposta ausência de interesse de agir na hipótese de o casal reportar-se ao procedimento judicial, quando preenchidos os requisitos da formalização em cartório da ruptura. Entretanto, seja em relação à separação, à época em que era admitida, seja com foco no divórcio, não há que se sustentar a aludida carência de ação, uma vez que a opção pela esfera jurisdicional pode ser justificada pelo interesse das partes em que os termos do acordo permaneçam cobertos pelo segredo de justiça25, o que não ocorrerá se o rompimento se realizar por escritura pública.

Ainda a respeito da Lei n.º 11.441/2007, outro ponto que merece referência consiste na revogação tácita da parcela destacada do texto, haja vista a desnecessidade de que qualquer lapso temporal seja esperado para fins de desfazimento do vínculo conjugal, agora viabilizado diretamente pelo divórcio, independentemente de prazo, já que não mais subsiste a famigerada separação.

Por outro lado, a separação judicial era aquela que se aperfeiçoava mediante chancela estatal, como produto de um doloroso embate processual, no qual feridas eram expostas e fortalecidas, ao se reviver as mágoas na busca de causas para o fim.

Desse modo, com edição da lei que autoriza a operação dissolutória em cartório, o processo passou a consistir instrumento subsidiário, manejado quando existente interesse de incapaz ou quando verificado algum ponto de divergência entre os cônjuges, seja em relação à intenção de ruptura, seja no que toca à partilha dos bens comuns e/ou definição de pensão alimentícia.

5.2 As espécies consensual e litigiosa

Também chamada amigável, a separação consensual era o desenlace (parcial) apaziguado, calcado no mútuo consentimento entre os cônjuges.

Em que pese constituir medida promovida por ambos os cônjuges, razão pela qual prescindia de motivação, exigia-se, para sua validade, a chancela estatal, através de homologação judicial (perante o juiz da vara de família) ou de registro público, efetivado pelo tabelião.

Como se percebe, a separação consensual desdobrava-se em duas etapas: primeiramente, dava-se o ajuste de vontades entre os consortes, para o fim de verem desfeita a sociedade conjugal; depois, a ratificação do Estado, por intermédio de decisão judicial homologatória ou registro face ao tabelião, com o viés de se preservar interesses de terceiros e dos próprios cônjuges.

Segundo prescreve o art. 1.574 do Código Civil26, exigia-se o prazo mínimo de 1 (um) ano de casamento para que pudesse ser admitida a separação consensual. Esse “período de carência” constituía requisito de ordem objetiva, comprovável mediante a apresentação de certidão de casamento. Antes desse interregno, somente era possível a dissolução nupcial por meio da separação litigiosa, na qual se enfrentava um processo judicial em que eram trocadas acusações entre os cônjuges, imputando-se culpa por violação aos deveres matrimoniais.

Com efeito, esse lapso de 1 (um) ano era tido como verdadeiro “tempo de prova” que, segundo a doutrina mais tradicional27, baseada em elementos jurídicos de outros tempos nos quais o casamento era a única forma de constituição de família (a chamada família legítima), tinha a finalidade de proporcionar tempo suficiente para uma melhor apreciação da vida comum, coibindo, assim, decisões precipitadas. Tratava-se essa imposição, na verdade, de mais uma intervenção desnecessária do Estado, mitigadora da privacidade dos cidadãos.

Por outro lado, se os separandos já haviam sido casados anteriormente, isto é, se se cuidava de segundas núpcias entre as mesmas pessoas de um casamento antes dissolvido pelo divórcio, era despicienda a espera pelo prazo, de forma que era admitida a separação consensual desde logo, antes mesmo do advento do período de 1 (um) ano, pois a eles não se aplicaria o prazo de espera.

Segundo já assinalado, até a superveniência da Lei n.º 11.441/2007, a separação consensual também se desenvolvia por meio de processo judicial. Desde 2007, contudo, com a introdução no ordenamento jurídico da disciplina normativa enfocada, esvaziou-se a alternativa consensual processual, desde que, frise-se, não houvesse filhos menores ou incapazes.

Litigiosa, a contrario sensu, era a separação que envolvia algum tipo de conflito, cuja dirimição havia de ser providenciada pelo Poder Judiciário, através de um processo, marcadamente traumatizante.

5.2.1 Separação falência

Esboçada no art. 1.572, § 1º do Código Civil28, a separação falência decorria da ruptura da vida conjugal há, pelo menos, um ano, com impossibilidade de reconstituição do estado em comum, independentemente da arguição de motivo. Por conseguinte, nesse modelo separatório não se admitia a discussão da culpa, bastando, assim, a comprovação da cessação da conjugalidade.

Estava-se diante de uma verdadeira perturbação do casamento, culminada pelo rompimento da vida em comum, donde avulta o aspecto objetivo dese tipo de separação. Isso porque era suficiente a prova de ruptura da vida em comum por mais de um ano, para fins de superveniência do decreto separatório, pouco interessando a insuportabilidade, ou não, da convivência.

Face à atual conjectura de crises econômicas, questão de interesse singular consistia na possibilidade de decretação da separação falência se o casal, embora não mais estivesse convivendo faticamente, ainda permanecia sob o mesmo teto. Nesses casos, em que pese a evidente dificuldade probatória, era viável a obtenção da separação, desde que provado o esfacelamento da comunhão plena de vida, pelo prazo exigido por lei.

Nesse diapasão, Caio Mário da Silva Pereira29, assevera:

A ruptura da vida em comum não exige, obrigatoriamente, afastamento físico ou material. Tal seja o ambiente doméstico e os relacionamentos pessoais dos cônjuges, seja lícito configurar a ruptura não obstante permaneçam os cônjuges residindo sob o mesmo teto. Trata-se, portanto, de matéria de prova.

Destarte, o prazo ânuo prescrito em lei devia ser computado de maneira ininterrupta, sem solução de continuidade, o que implicaria interrupção e necessidade de retomada do lapso temporal do seu início30. Todavia, a retomada da vida em comum havia de ser comprovada pelo reatamento da conjugalidade com intenção clara e induvidosa, de modo que meros encontros esporádicos não caracterizavam a vida em comum31.

Nesse esteio, ao prescindir-se da perquirição de culpa, à primeira vista, poder-se-ia dizer ser defensável esse sistema dissolutório. Contudo, a separação falência ainda não representava com absoluta propriedade as expectativas mais condizentes com os valores constitucionais. Isso porque, se por um lado não se perfazia a aferição de causas, por outro, a intervenção do Estado na vida privada verificava-se na exigência de que fosse comprovado tempo mínimo de não coabitação. Desse modo, acabava-se por recair no mesmo reducionismo mitigador da liberdade individual dos consortes.

5.2.2 Separação remédio

Estampada no art. 1.572, § 2º do Código Civil32, a aludida modalidade de separação litigiosa tinha cabimento quando um dos cônjuges estivesse acometido de enfermidade mental, de cura improvável ou impossível, manifestada após o casamento, durante, pelo menos, dois anos, tornando insuportável a vida conjugal.

Infere-se, pois, que a legislação exigia uma causa (a existência de doença mental de cura improvável, notabilizada após as núpcias) e um prazo (dois anos, no mínimo, de manifestação da enfermidade mental).

Como não poderia deixar de ser, o ônus probatório acerca da insanidade mental competia ao cônjuge que acionou o Poder Judiciário, o que deveria se dar mediante a realização de perícia médica, e considerando as condições pessoais do paciente. Em tal hipótese, a perícia médica é obrigatória, consoante se extrai dos arts. 231 e 232 do Código Civil33.

Na demanda, o cônjuge doente é representado em juízo por seus parentes (CC, art. 1.576, parágrafo único34) ou até pelo Ministério Público, se o seu curador for o autor da ação.

Da leitura dos dispositivos concernentes à temática, depreende-se que o legislador ordinário visou desestimular tais pedidos de separação, ante a imposição de sanções a quem assim agisse. Dessa forma, ficava o autor da ação sujeito a perder a meação dos bens remanescentes que o enfermo levou para o casamento35. Cuida-se, aí, de anômala possibilidade de alteração do regime de bens. Dita transferência patrimonial, contudo, apenas ocorreria se o casamento havia sido celebrado pelo regime da comunhão universal de bens, o que diminui sensivelmente o alcance da norma36. Registre-se que a comunicabilidade do patrimônio adquirido, na constância da sociedade conjugal, já constitui, por si só, nuance que decorre dos regimes da comunhão parcial e da comunhão final dos aquestos, inviabilizando, assim, o referido confisco. A separação total de bens, por sua vez, desautoriza a meação de bens adquiridos, não ficando o cônjuge sujeito a sofrer qualquer retaliação de ordem patrimonial.

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O tratamento punitivo em tela verberava como uma resposta à aparente crueldade de quem pedia a separação estando o cônjuge acometido de grave e incurável mal. Assim sendo, pune-se quem, imoral e perversamente, quer se livrar do cônjuge doente37.

5.2.3 Separação sanção

Enfim, é chegada a hora de nos debruçarmos sobre a figura que, sem sombra de dúvidas, constituía-se no maior entrave à priorização de valores atinentes ao foro íntimo dos consortes, vez que esses tinham as minúcias de sua vida conjugal desproporcionalmente expostas. Essa exposição, destarte, não raras vezes era marcada pela troca de ofensas e imputação de culpas, até porque tal desgaste, em última análise, consistia exigência da própria norma, para fins de obtenção do decreto dissolutório.

Era este o regramento legal:

Art. 1.572, CC. Qualquer dos cônjuges poderá propor a ação de separação judicial, imputando ao outro qualquer ato que importe grave violação dos deveres do casamento e torne insuportável a vida em comum.

Com efeito, a separação sanção fundava-se na imputação de culpa ao outro cônjuge pelo esfacelamento do projeto matrimonial. Tal culpa revelava-se no ensejo de comportamento que representasse ao mesmo tempo grave violação dos deveres do casamento (art. 1.56638) e impossibilidade de prosseguimento da vida em comum (art. 1.57339). Importante registrar que se tratava da única espécie de dissolução matrimonial que independia de lapso temporal, podendo ser utilizada antes mesmo do decurso do prazo de um ano de casamento.

Manejada a ação pelo cônjuge dito “inocente”, esse intencionava que do consorte considerado “culpado” fossem subtraídos direitos como forma de sancionar sua atitude reputada transgressora. Nesse esteio, as penalidades previstas gravitavam em torno da mudança da natureza dos alimentos (art. 1.704, parágrafo único, CC40) e da perda do direito de uso do sobrenome de casado (art. 1.578, CC41).

Interessante pontuar que não podia haver um reconhecimento judicial de culpa somente para efeitos morais. Assim sendo, a separação sanção havia de estar sempre voltada para a produtividade de um dos (dois) efeitos jurídicos supra, além da possibilidade processual de condenação do cônjuge vencido (“o culpado”) nas despesas processuais – honorários advocatícios e custas processuais42

No que toca às consequências advindas da certificação da culpa pelo fim do casamento, passemos à sua análise. Em primeiro lugar, a possibilidade da perda do sobrenome de casado já era alvo de críticas da abalizada doutrina. Nessa esteira, argumentava-se que, uma vez adquirido o sobrenome pelo matrimônio, operar-se-ia a incorporação do patronímico à personalidade do consorte, passando a contar com a proteção dos direitos da personalidade, expressa nos arts. 16 a 19 do Código Civil43.

Como corolário do reconhecimento da natureza personalíssima do direito ao nome de casado, a culpa pela dissolução do matrimônio havia de desvincular-se da eventual perda ou manutenção do sobrenome adquirido após as núpcias. O Superior Tribunal de Justiça, inclusive, já havia fixado entendimento nesse sentido44.

Em segundo lugar, o outro efeito do reconhecimento de culpa, até então previsto na legislação, era a alteração da natureza dos alimentos a serem prestados ao cônjuge culpado. Partindo-se da premissa de que a obrigação alimentar é de cunho constitucional, assentada na solidariedade social e familiar guiada por sentimentos humanitários (art. 1º, III, c/c art. 3º, ambos da Constituição Federal), incumbe compreender a possibilidade de fixação de alimentos em favor do cônjuge “responsável” pela ruptura do casamento.

Ora, se a prestação alimentícia decorre da necessidade do alimentando, como projeção da afirmação constitucional da solidariedade social, já era de se admitir a desarticulação dessa necessidade à improdutiva discussão da culpa pelo término do sonho da vida em comum. Como percebia Maria Berenice Dias45, impor-se cruel sanção a quem foi reconhecido como “culpado pelo fim do amor” significaria violar a dignidade daquele que não dispunha de condições de subsistência. “Negar alimentos – ou mesmo diminuí-los – ao ex-cônjuge que deles necessita, ainda que culpado pela ruptura, é condená-lo a morrer de fome. A pena é perpétua. Quiçá imponha a realização de trabalhos forçados. A depender das condições do apenado, será cruel. Talvez lhe imponha a pena de banimento, nem que seja para outra vida.” Nessa linha, já havia decidido o Tribunal de Justiça do Estado da Bahia:

“Sem embargo do novo Código Civil ainda preservar o princípio da culpa como um de seus fundamentos, para o pleito separatório, quando, a exemplo do que já ocorre com o divórcio, poderia ter se limitado à circunstância fática da ruptura da convivência, a orientação jurisprudencial mais atualizada, em face da dificuldade de, na maioria dos casos atribuir a culpa pelo fracasso do matrimônio a qualquer dos cônjuges, tem, mesmo quando fundado o pedido na separação sanção (caput do art. 5º da Lei do Divórcio, atual art. 1.572, CC), pela simples constatação da situação fática que aponta para a inconveniente permanência da sociedade conjugal, o que não afasta o direito a alimentos pelo cônjuge que deles necessitar.”

(TJ/BA, Ac.2ª Câm.Cív., ApCív.25.644-1/2004 – comarca de Senhor do Bonfim, rel. Desa. Maria José Sales Pereira).

Como se vê, a oposição ao modelo separatista fulcrado na verificação de culpa, com a decorrência de efeitos negativos ao ex cônjuge declarado “culpado”, já se faz atuante há algum tempo. Na verdade, como não poderia ser diferente, clamava-se pela concretização dos postulados constitucionais a partir da realidade social emergida, donde despontava a discussão de culpa como insensata e atentatória aos direitos fundamentais da pessoa humana, haja vista a dificuldade de se atribuir a um só consorte a responsabilidade pelo fim do vínculo afetivo, além de indevida a intromissão do Estado na intimidade da vida das pessoas.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DOMINGOS, Manuela Santos. EC 66/2010: a regulamentação do divórcio e o direito de não permanecer casado como pura manifestação das liberdades constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7252, 10 mai. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/48312. Acesso em: 10 mai. 2024.

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