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Astreintes uma ova!!!

23/01/2016 às 13:08
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Parece que nos tempos atuais vai brotando um novo ramo do direito, o Direito Processual das Decisões Judiciais Não Cumpridas!

Originária do Direito Francês, as astreintes são aquelas multas diárias impostas por uma decisão ou condenação judicial. É quando você ouve ou lê no jornal ou mesmo nas redes sociais que determinado juiz decidiu que fulano deva faz isso ou aquilo, em tal tempo e de tal modo, sob pena de pagamento de uma importância em dinheiro geralmente a favor do autor da ação.

Vamos a um breve e único exemplo. A sua mãe está no saguão de entrada de um hospital, sangrando e urrando de dor, e o plano de saúde ou a portaria do nosocômio bate o pé dizendo que a sua velha não será internada pois a mesma não trouxe consigo em trêmulas mãos o comprovante do último boleto pago da mensalidade do plano de saúde. Admitindo ser da operadora do plano de saúde a responsabilidade de demonstrar a eventual inadimplência da usuária, o juiz defere medida liminar determinado a pronta e imediata internação de sua genitora, sob pena de multa de um trilhão de reais por hora de descumprimento (astreintes).

Recebendo a intimação do oficial de justiça de plantão, ninguém cumpre a decisão judicial, direta e consequentemente sua mãe – que sempre pagou uns dez dias antes a mensalidade do plano de saúde, por prudência e precaução – morre estendida na portaria do hospital ao lado daquele cinzeiro branco e grande que mais parece um vaso de planta. Você, todo feliz, enterra sua mãe e corre para a boca do caixa do banco para sacar sua bolada correspondente à multa judiciária em razão do não cumprimento da decisão judicial.

Caro leitor, é assim que a vida funciona?!! Será que dinheiro ainda é tudo ou compra tudo em nossas vidas?!! No exemplo dado, quanto vale estar na companhia de sua mãe, abraçá-la, beijá-la, fazer e estar naquele almoço de domingo em companhia dessa maravilhosa criatura abençoada que tanto te ama?

Ora, no exemplo acima, é claro que nada, absolutamente nada, nenhum dinheiro do mundo, poderia substituir o célere e efetivo cumprimento da decisão liminar tão aguardado. Bem nenhum, importância em espécie nenhuma, poderia preservar a vida, a possibilidade da sobrevivência do ser humano, senão a providência judicial deferida.

E é assim que acontece no dia-a-dia forense. Parece que nos tempos atuais vai brotando um novo ramo do direito, o “Direito Processual das Decisões Judiciais Não Cumpridas”! Os volumes dos processos judiciais estão sendo tomados mais por laudas sobre a discussão do não cumprimento da decisão liminar do que a petição inicial, a contestação e a própria liminar somadas. Algo do tipo: da lauda 01 até a lauda 37 tratamos da petição à decisão liminar deferida; da lauda 38 até milionésima lauda do milionésimo apenso lidamos com a discussão do não cumprimento da decisão judicial. E agora com essa moda de juntar e-mails nos processos, a coisa ficou feia! Triste mesmo!

Mas o drama do pobre infeliz do cidadão comum é ainda maior, de proporções jupiterianas. Caro leitor, sabe o quê a lei processual brasileira diz a respeito das astreintes, sua cobrança e efetivo recebimento? Para não acharem que estou de avacalhação ou me arriscando no mundo do stand up comedy, vou transcrever o trecho de uma recentíssima decisão do STJ que reverencia fielmente o texto da nossa lei vigente:

“A multa prevista no §4°, do Art. 461 do CPC só é exigível após o trânsito em julgado da sentença (ou acórdão) que confirmar a fixação da multa diária, que será devida, todavia, desde o dia em que se houver configurado o descumprimento. Precedentes” (DJe 03/08/2015).

Então você pode imaginar quem ainda está na fila esperando para receber o valor das astreintes aqui no Brasil, né?!! Matusalém, Moisés, Tutancâmon, Cleópatra, Pero Vaz de Caminha, entre tantas outras figuras de nossa antiguidade e idade média.

Com zilhões de instâncias judiciais e trocentos recursos previstos na lei processual, sem falar nos embargos nos embargos nos embargos (...) nos embargos de declaração nos agravos regimentais dos Códigos e Regimentos Internos dos TJs, o trânsito em julgado de uma decisão judicial no Brasil levaria mais ou menos o tempo que a Nasa levará para colonizar Plutão.

E estou falando da série infinita de recursos e instâncias judiciais para discussão da liminar, da decisão interlocutória! A sentença, o acordão de mérito do TJ local ainda terá o seu calvário recursal próprio.

Tinha me esquecido ainda da Ação Rescisória, que poderá, sim, suspender a exequibilidade das astreintes. Esta ação também e certamente será alvo de todos os recursos e instâncias admitidas pela lei processual pelo sucumbente.

Lembre-se, não estamos aqui discutindo o recebimento ou não das astreintes. Voltemos ao exemplo. O caso é que a sua mãe está no saguão de entrada de um hospital, sangrando e urrando de dor, e o plano de saúde ou a portaria do nosocômio diz que a mesma não será internada, mesmo com decisão judicial determinando essa internação.

Você acha que a sua e a minha tragédia, de um cidadão brasileiro comum, para por aqui? Lamento, pois então, vou dizer mais uma lástima, talvez a mais funesta de todas.

Qualquer pessoa física ou jurídica responsável pelo cumprimento de uma decisão judicial são obrigados a ter bens móveis ou imóveis em seu próprio nome? Já ouviu falar da figura do laranja, da esposa ou filho de conveniência? Daquele cara que empresta CPF, CNPJ ou até a mãe para tirar algum proveito ou prestígio de determinada situação, nem que seja para ganhar aquele camarote de folia de carnaval?

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Pois é. Você acha que uma figura, réu de um processo, sem nenhum bem penhorável – apesar de morando naquele suntuoso palácio de frente para o mar, com vários carrões na garagem, registrados todos esses bens em nome de seu poodle ou de sua calopsita – está mesmo preocupado com as astreintes e sua cobrança?!! Fala sério...

Sabe o quê que acontece na vida forense nesses casos? O diligente oficial de justiça escreve no verso do mandado de intimação: “Certifico e Dou Fé que em cumprimento a r. Decisão me dirigi ao endereço declinado e não encontrei bens para penhorar”. Sabe o quê o juiz pode fazer por você neste caso? Digo: “Vistas ao Autor para se manifestar”. E sabe o que você pode fazer por si mesmo? Nada, exatamente nada.

Ah, sim, grandes doutores da lei falarão para você se acalmar, que ainda restam as temidas penhora on-line, os ofícios aos registros gerais de imóveis do País afora, ao Detran etc.

Insisto. Pessoa física ou jurídica responsável pelo cumprimento de uma decisão judicial é obrigado a ter bens móveis ou imóveis em seu nome?

E o laranjal segue triunfando neste País ...

Aqui, abro um parêntese. Absolvo juízes e Tribunais de todo esse drama vivido pelos jurisdicionados. Talvez sejam os próprios juízes os mais sensíveis conhecedores dessa verdadeira frustação do cidadão comum frente a um emaranhado de leis inúteis, que não servem de nada, a não ser para sustentar a opressão e a tirania do poder econômico e da velha nobreza que devora a casa das viúvas.

Como se vê, no caso de liminares não cumpridas, o melhor e único remédio é a decretação da prisão em flagrante do responsável pelo cumprimento da decisão judicial, por crime de desobediência. Doa a quem doer. É a mesma profilaxia do mal pagador de pensão alimentícia. Cadeia resolve. É só o oficial de justiça chegar acompanhado de uma viatura com giroflex ligado, balançando as algemas, que toda corte, puxa-sacos e baba-ovos, se reúnem em torno do desidioso réu para cumprimento da ordem judicial.

Quem bate as portas da Justiça não é mercenário, não quer dinheiro, deseja o bem da vida incólume, salvo, resgatado pelo cumprimento da decisão judicial salvífica, pronto e imediato, sem rodeios. O que o jurisdicionado ou jurisdicionada desejam é ver o filho matriculado na escola, o medicamento entregue, a cirurgia ou exame médico sendo realizados, a internação psiquiátrica sendo levada a efeito. Ninguém fica por deleite ou passatempo nas longas e ensolaradas fileiras da Defensoria Pública para constituir uma poupança com promessa de saque futuro na Justiça com a cobrança das astreintes. O povo quer dignidade, socorro, nada mais. Vou repetir uma frase que ouço quase todos os dias em meu gabinete: “Doutor, só quero que minha filha volte a sorrir, a falar, a andar, nada mais”.

Mas como diria o insuperável Murphy, “nada é tão ruim que não possa piorar”. Vou lhe contar um segredo. E peço que não espalhe por aí. Ok?!!

É que existe uma grande e torrencial posição jurisprudencial, inclusive de Tribunais Superiores, que diz que em caso de descumprimento de decisão judicial não existe crime de desobediência, não existe crime algum. Senão, vejamos:

“O Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que para a caracterização do crime de desobediência não é suficiente o simples descumprimento de decisão judicial, sendo necessário que não exista previsão de sanção específica” (DJe 21/10/2015).

Não, caro leitor! Não estou de gozação, nem fazendo hora com a sua cara. É a lei, a lei brasileira que diz isso, a lei do seu País. O Código de Processo Civil sempre prevê outro tipo de sanção específica, que não a prisão, como as astreintes, conversão da obrigação em perdas e danos, bloqueio de rendas públicas etc. Ou seja, o descumprimento da decisão judicial será sempre um fato atípico (um não crime).

Chega! Vou parar por aqui! Tchau! Boa sorte para nossa mãe!

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Sobre o autor
Carlos Eduardo Rios do Amaral

Defensor Público dos Direitos da Criança e do Adolescente no Estado do Espírito Santo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMARAL, Carlos Eduardo Rios. Astreintes uma ova!!!. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4588, 23 jan. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/44761. Acesso em: 29 abr. 2024.

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