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A religião entre a pessoa humana e o Estado de Direito

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19/10/2014 às 13:18
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A liberdade religiosa não pode chegar ao extremo de comprometer a vida e a saúde daqueles que não tenham capacidade para externar livremente a sua vontade.

Resumo. O direito fundamental de professar, ou não, uma crença, tem se mostrado essencial ao pleno desenvolvimento da personalidade individual, permitindo que referenciais morais e espirituais atuem de modo concorrente no delineamento de suas linhas estruturais. Direitos dessa natureza, num Estado laico, como a República Federativa do Brasil, terminam por se defrontar, no âmbito dos poderes constituídos, com uma evidente tensão dialética entre a obrigação de proteger e a vedação de se integrar ao fenômeno religioso. O objetivo dessas breves linhas é identificar as situações em que essa tensão se manifesta de modo mais acentuado, com o consequente delineamento de soluções de cunho harmonizador. 

Palavras-chave: ensino religioso, liberdade de crença, objeção de consciência e religião.

Sumário: 1. Delimitação do plano de estudo. 2. Liberdade de consciência e de crença. 2.1. A proteção da liberdade de crença e convicção. 2.2. Liberdade de crença e tratamento médico. 2.3. Objeção de consciência ao serviço militar. 3. As relações entre Estado e religião. 3.1. Liberdade de crença e laicidade do Estado. 3.2. A imunidade tributária dos templos de qualquer culto. 3.3. O ensino religioso nas escolas públicas.  3.4. A assistência religiosa nas entidades de internação coletiva. Proposições conclusivas.


1. Delimitação do plano de estudo

A evolução da humanidade tem demonstrado que o pleno desenvolvimento da personalidade individual e a harmônica convivência social, longe de estarem alicerçados num padrão de pura juridicidade, são diretamente influenciados por referenciais de moralidade e de espiritualidade.

Apesar da universalidade que ostenta, a idéia de moral assume contornos eminentemente voláteis, apresentando conteúdo compatível com a época, o local e os mentores de sua densificação. É conceito mais fácil de ser sentido que propriamente definido, o que não afasta a constatação de que, no ambiente social, são formulados conceitos abstratos, que condensam, de forma sintética, a experiência auferida com a convivência em sociedade, terminando por estabelecer concepções dotadas de certa estabilidade e com ampla aceitação entre todos, o que contribui para a manutenção do bem-estar geral. É justamente a moral que aglutina tais concepções, podendo ser concebida como o conjunto de valores comuns entre os membros da coletividade em determinada época, ou, sob uma ótica restritiva, o manancial de valores que informam o atuar do indivíduo, estabelecendo os seus deveres para consigo e a sua própria consciência sobre o bem e o mal. No primeiro caso, conforme a distinção realizada pelo filósofo Bérgson (1977: 34 e ss.), tem-se o que se convencionou chamar de moral fechada, e, no segundo, a moral aberta (GARCIA, 2002: 153).

A espiritualidade, diversamente da moralidade, não reflete a mera aceitação de standards de bem comum, colhidos no ambiente social ou desenvolvidos a partir do livre juízo valorativo que cada indivíduo dotado de plena capacidade intelectiva pode realizar.[1] A espiritualidade, em verdade, encontra-se alicerçada em referenciais superiores, que agem na formação dos standards que direcionarão o pensar e o agir da pessoa humana, sendo por ela apreendidos, não propriamente criados. Esses standards, por sua vez, que têm reconhecida a sua imperatividade, importância ou mero valor a partir de um estado mental baseado na fé, vale dizer, na crença de sua infalibilidade e correção, apresentam inúmeras variações. O pluralismo conduz à necessidade de separação e individualização, de modo que cada conjunto de standards possa ser agrupado sob um designativo específico, permitindo o seu reconhecimento e, para aqueles que assim o desejarem, o seu acolhimento. É nesse contexto que surgem e se propagam as religiões, desenvolvendo-se à margem da razão, no plano da espiritualidade, e encontrando sustentação na fé.

Questões de índole religiosa costumam ser foco de incontáveis polêmicas em qualquer Estado de Direito e, no Brasil, não poderia ser diferente. A religião, ao ser vista com as lentas da juridicidade, assume feições bipolares: deve ser analisada tanto sob o prisma da pessoa humana, como sob a ótica do Estado. É justamente essa análise que permitirá seja aferido se há algum limite para a manifestação da fé individual e de que modo o Estado deve lidar com a laicidade, com o pluralismo religioso e com a proteção dos direitos individuais, valores de indiscutível relevância na modernidade.

O objetivo dessas breves linhas é identificar os limites e as potencialidades da relação triangular mantida entre pessoa humana, religião e Estado de Direito.


2. Liberdade de consciência e de crença.

A Constituição brasileira de 1988, preservando a tradição republicana[2] e mantendo-se fiel aos valores acolhidos pela sociedade internacional[3] e pela maioria dos Estados modernos,[4] dispôs, no inciso VI de seu art. 5º, que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.”

Como projeção da racionalidade do ser humano, a liberdade de consciência lhe assegura o pleno juízo valorativo a respeito de sua existência e do mundo em que inserido. O indivíduo estabelece os seus próprios critérios de “bom” ou “ruim” e orienta as suas decisões de acordo com eles (STARCK e SCHMIDT, 2008: 158), tendo a dignidade afirmada com o reconhecimento de sua capacidade em formular juízos morais sobre suas ações e de direcionar a sua conduta de acordo com esses juízos (FAVRE, 1970: 279). 

Em relação ao alcance da liberdade de consciência e à sua necessária coexistência com os demais valores protegidos pela ordem jurídica, o Tribunal Constitucional Federal alemão (Bundesverfassungsgericht)[5] teve oportunidade de apreciar o seguinte caso: numa área, vizinha à propriedade de um indivíduo protetor dos animais, eram regularmente organizadas caçadas, o que lhe obrigava a, constantemente, ver os animais mortos, afrontando, assim, os valores que vinha seguindo durante toda a sua vida. Entendendo violada a sua liberdade de consciência (Gewissensfreiheit), pleiteou a paralisação das atividades. O Tribunal, no entanto, não visualizou qualquer ofensa a esse direito fundamental, isto porque o protetor dos animais não era obrigado a tomar parte nas caçadas, elas não se desenvolviam em sua propriedade e, além disso, eram igualmente protegidas pela ordem jurídica, o que assegurava aos caçadores o direito de caçar. Observa-se, assim, que a consciência individual, ao romper o psiquismo e alcançar a realidade, deve coexistir com os padrões de juridicidade.

A liberdade de crença, por sua vez, é contextualizada no plano da fé, que pode ser livremente escolhida e professada, sem qualquer interferência do Estado ou de outros particulares. Como limite, tem-se a necessidade de resguardar a ordem pública e assegurar igual liberdade aos demais componentes do grupamento, que não podem ser compelidos a violentar a sua consciência e a professar fé alheia. A preocupação com a preservação da ordem pública, aliás, remonta à célebre Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 (art. 10).[6] A liberdade de crença pode ser concebida como a face intrínseca da liberdade religiosa, afeta à intimidade do ser humano, enquanto a liberdade de culto é a sua face extrínseca, momento em que ocorre a exteriorização da fé.

A respeito da liberdade religiosa, também assegurada pela Primeira Emenda à Constituição norte-americana, o Justice William Douglas (1966: 91-92) nela visualizava as seguintes facetas: nenhuma autoridade sectária deve ser investida do poder do governo; o governo não tem influência direta nos assuntos de nenhuma igreja; os cidadãos não são taxados por auxiliarem uma instituição religiosa e nenhuma igreja deve receber recursos públicos; as pessoas podem pertencer à igreja que desejarem, ou a nenhuma, e ninguém pode ser obrigado a participar de cerimônias religiosas, como o casamento; nas disputas internas entre seguimentos da igreja, os juízes devem observar sua disciplina interna; escolas públicas não são agências de ensino religioso, não havendo razão para que o Estado não ajuste os horários das escolas de modo que os estudantes obtenham tal ensino em outro lugar; pais e crianças tem o direito de frequentar escolas privadas religiosas; o exercício de um ritual não pode ser imposto, pelo Estado, ao indivíduo, se isto caminha contra as suas convicções religiosas; a liberdade religiosa engloba os métodos convencionais e os ortodoxos, como o de distribuir literatura religiosa de porta em porta; o funcionamento de uma igreja não deve ser condicionado à concessão de licença ou ao pagamento de taxas ao Estado; a liberdade religiosas deve alcançar tanto aqueles que fundam sua crença num ser supremo, como aqueles que a buscam na ética e na moral; o que pode configurar prática pagã para uma pessoa pode ser religiosa para outra, não sendo função do Estado realizar aferições dessa natureza, inclusive para fins punitivos.

A liberdade religiosa, em suas distintas formas de manifestação, sempre estará lastreada no ideal de tolerância, que antecede e dá sustentação à sua juridicidade. Essa constatação torna-se particularmente clara ao verificarmos a falibilidade humana na formação e na identificação da verdade, de todo acentuada em questões de estrita racionalidade, impossível de ser alcançada em relação ao que ultrapassa os liames da razão, como a fé e os distintos modos de manifestá-la (Cf. VERA URBANO, 1971: 22-23).

As liberdades de crença e de culto também trazem consigo um aspecto negativo ou, melhor dizendo, neutral, ínsito e indissociável de qualquer direito fundamental, que consiste justamente na possibilidade de não exercê-lo. A pessoa é livre para ter ou não uma crença, realizar ou não um culto. Nesse sentido, a Constituição andorrana de 1993 (art. 11, 1) tornou expresso o que nela já estaria ínsito, vale dizer, “a Constituição garante a liberdade de pensamento, de religião e de culto, e o direito de toda pessoa de não declarar ou manifestar seu pensamento, sua religião ou suas crenças”.

Deve-se observar, ainda, que nem tudo aquilo que emana de um religioso ou de uma instituição religiosa deve ser indistintamente enquadrado sob a epígrafe da liberdade de crença ou do livre exercício dos cultos religiosos. Nesse sentido, pode-se mencionar o exemplo de uma igreja que faça soar seus sinos, por poucos segundos, a cada hora completa e, aos domingos, no início do culto religioso, por cinco minutos: enquanto a segunda conduta está nitidamente associada à liberdade de crença e culto, a primeira deles se distancia e se enquadra na cláusula geral de liberdade,[7] cujo potencial expansivo somente é limitado pela necessidade de resguardar os direitos alheios e de assegurar a integridade da ordem jurídica (STARCK e SCHMIDT, 2008: 159). A lei, em qualquer caso, deve assegurar “a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (CR/1988, art. 5º, VI), evitando seja afetada a integridade das instalações religiosas ou comprometida a transmissão dos dogmas que justificam a sua existência.

A correta compreensão da inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença ainda exige seja devidamente delimitado o seu objeto. Em outras palavras, essa liberdade alcança apenas a manifestação de fé e religiosidade ou também se projeta sobre as manifestações negativas a respeito do fenômeno religioso? É possível difundir os aspectos negativos das religiões e a crença de que o melhor é não ter crença alguma? Num Estado pluralista e de acentuados contornos liberais, como sói ser a República Federativa do Brasil, a resposta positiva há de prevalecer. Uma verdadeira liberdade religiosa somente poderá existir em estando presente a plena liberdade individual para adotar uma opção em matéria de fé; e isto somente será possível caso a pessoa receba todas as informações necessárias à formação do seu juízo de valor, o que, à evidência, pressupõe seja reconhecido o direito de alguém transmitir tanto as opiniões favoráveis, como as desfavoráveis, a respeito de uma religião (Cf. CIÁURRIZ, 1984: 103-105). O autor das críticas, no entanto, deve arcar com todas as consequências decorrentes do excesso de linguagem ou do vilipêndio de símbolos ou dogmas alheios, já que ultrapassam os limites do livre exercício do seu direito individual.

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 É importante observar que tanto a liberdade de consciência, como a de crença, podem permanecer adstritas ao denominado forum internum, vale dizer, ao plano puramente psíquico, ou estender-se ao forum externum, ocasião em que são exteriorizadas e entram em efetivo contato com a realidade. É justamente sob essa última ótica que a sua proteção jurídica adquire relevância prática (Cf. STARCK e SCHMIDT, 2008: 155).

2.1. A proteção da liberdade de crença e convicção.

Como projeção direta de sua personalidade, toda pessoa humana desenvolve juízos valorativos que expressam sua forma de ver, situar-se e interagir no meio social, fatores estes que a individualizam enquanto ser racional e que merecem a proteção do Estado. A Constituição brasileira de 1988, como desdobramento necessário do pluralismo e da dignidade humana, que reconhece e protege, obsta que alguém tenha a sua esfera jurídica restringida tão-somente por “motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política” (art. 5º, VIII).[8] Trata-se de garantia essencialmente direcionada ao pensar, não necessariamente ao agir, isto porque crenças ou convicções podem redundar em atos contrários à ordem jurídica (v.g.: a prática de um homicídio como parte integrante de solenidade religiosa), não eximindo o seu autor da responsabilidade pelos ilícitos que praticar.

Além de proteger a liberdade de crença e convicção, a ordem constitucional permite, igualmente, que qualquer pessoa deixe de cumprir deveres jurídicos de origem legal, genericamente impostos a todos, que colidam com a referida liberdade. Trata-se da denominada objeção de consciência, que, em seus contornos mais amplos, indica a recusa em obedecer a um comando de autoridade, a um imperativo jurídico, invocando-se a existência, no foro individual, de impedimentos de ordem axiológica que obstam a adoção do comportamento exigido. A base axiológica que dá sustentação à objeção de consciência pode decorrer de razões morais, filosóficas ou políticas, daí surgindo um sentimento de aversão a uma gama extremamente variável de comportamentos plenamente jurígenos. Reflete uma forma de penetração da moral no direito, que anui em arrefecer a sua imperatividade em prol da consciência individual, preservando um valor indissociável da personalidade humana.

Como necessário contraponto à objeção de consciência, dispôs a Constituição de 1988, também no art. 5º, VIII, que a sua invocação, com o correlato descumprimento de obrigação legal, poderá redundar em privação de direitos caso a pessoa se recuse “a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.” Com isto, busca-se preservar um referencial de igualdade nas relações com o Estado, evitando que determinadas pessoas, por cultivarem valores distintos aos de outras, sejam desoneradas de toda e qualquer obrigação legal. A prestação alternativa, que, a exemplo do dever jurídico original, deve ser necessariamente definida em lei, visa justamente a recompor esse referencial de igualdade, inicialmente maculado com a formulação da objeção de consciência.

É importante ressaltar que a objeção de consciência somente fará surgir a obrigação de cumprir a prestação alternativa caso a obrigação original que motivou a sua formulação tenha sido “a todos imposta”. A generalidade da obrigação legal atua como verdadeiro pressuposto de sua própria imperatividade. Tratando-se, ao revés, de obrigação casuística, endereçada a pessoas perfeitamente individualizadas, não será possível impor qualquer privação de direitos àqueles que se negaram a cumpri-la. Aqui, não se terá propriamente “obrigação”, mas, sim, “perseguição”.

2.2. Liberdade de crença e tratamento médico.

Face à amplitude da liberdade de crença, que pode albergar variadas manifestações de fé, incluindo certos comportamentos que destoam dos padrões de racionalidade já sedimentados no ambiente social, não será incomum a presença de situações de colisão com outros bens e valores constitucionalmente tutelados. Esse quadro é particularmente delicado nas situações em que a pessoa padeça de patologia, congênita ou provocada por causas externas, e haja negativa de receber o tratamento médico que o atual estágio da técnica considera adequado.

Tratando-se de pessoa plenamente capaz de exteriorizar a vontade, há de prevalecer a autodeterminação, sendo possível que se negue a receber os tratamentos médicos que considere incompatíveis com a sua crença. A simplicidade dessa solução, no entanto, não se estende às situações em que estejamos perante pessoas que, em caráter definitivo ou temporário, sejam total ou parcialmente incapazes de exteriorizar a sua vontade, como as crianças e os alienados mentais. Nesse caso, questiona-se: podem os seus responsáveis legais, lastreados em bases religiosas, proibir que recebam certo tratamento médico? Esse questionamento, desde logo, suscita reflexões em torno da necessária salvaguarda de outros bens jurídicos igualmente tutelados pela ordem constitucional, como o direito à vida (CR/1988, art. 5º, caput) e à saúde (CR/1988, art. 196, caput), não sendo demais lembrar que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adoles­cente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde...” (CR/1988, art. 227, caput).

Essa espécie de colisão, como soa evidente, será necessariamente influenciada pelas especificidades do caso concreto, não comportando respostas definitivas em abstrato. Isto, no entanto, não impede sejam estabelecidas, previamente, duas pautas argumentativas, de caráter objetivo, que influenciarão na solução do caso concreto: (1º) a vida e, em certa medida, o gozo de um bom estado de saúde, são pressupostos necessários ao pleno exercício da liberdade de crença; e (2º) a autonomia da vontade, na hipótese aqui versada, é plena no plano pessoal e relativamente limitada em relação aos incapazes, já que sujeita a certos balizamentos jurídicos de caráter imperativo. A partir dessas pautas objetivas, pode-se afirmar que, nesses casos, a liberdade de crença jamais autorizará o comprometimento da vida, e que, em relação às intervenções médicas destinadas à cura de patologias menos graves, a resolução do caso concreto será influenciada pela existência, ou não, de tratamentos alternativos e pelas conseqüências deletérias que decorrerão da não realização do tratamento inicialmente indicado. 

2.3. Objeção de consciência ao serviço militar.

Objeção de consciência, em seus contornos mais amplos, indica a recusa em obedecer a um comando de autoridade, a um imperativo jurídico, invocando-se a existência, no foro individual, de fundamentos de ordem axiológica que impedem a adoção do comportamento exigido. A base axiológica que dá sustentação à objeção de consciência pode decorrer de razões filosóficas, religiosas ou políticas, daí surgindo um sentimento de aversão a uma gama extremamente variável de comportamentos plenamente jurígenos. Reflete uma forma de penetração da moral no direito, que anui em arrefecer sua imperatividade em prol da consciência individual, preservando esse valor indissociável da personalidade humana.[9]

Especificamente em relação à objeção de consciência no âmbito do serviço militar, a Constituição brasileira de 1988, no § 1º de seu art. 143,[10] estabelece algums balizamentos de natureza pessoal, constitutiva, circunstancial e finalística à sua plena operatividade. No âmbito pessoal, a objeção de consciência somente pode ser formulada pelos alistados. Em termos constitutivos, exige-se que o imperativo de consciência decorra de “crença religiosa” ou de “convicção filofófica ou política”, conceitos que acolhem praticamente todas as razões passíveis de serem invocadas, merecendo especial realce a “convicção filosófica”, à qual pode ser reconduzido qualquer aspecto do pensamento humano. No plano circunstancial, tem-se que a recusa somente pode ser manifestada em “tempo de paz”, previsão justificável na medida em que, em períodos de guerra, o que se encontra em jogo é a própria subsistência do Estado, que não pode ser comprometida em razão da prevalência de interesses individuais; trata-se de juízo de ponderação realizado, a priori, pelo próprio Constituinte. Por fim, no plano finalístico, restringe-se o emprego da objeção de consciência às “atividades de caráter essencialmente militar”, o que afasta a possibilidade de recusa a atividades burocráticas ou essencialmente periféricas, como o atendimento em hospitais, sem qualquer contato com operações bélicas. Observa-se, nesse último caso, que a objeção de consciência do direito brasileiro possui maior potencial expansivo que a de outros sistemas, como o alemão, que restringe a formulação da Kriegsdienstverweigerung às situações em que seja exigida a utilização de armas (Waffen) – GG de 1949, art. 4º, 3.

Preenchidos os requisitos constitucionais, não há espaço para recusa à objeção de consciência. Isto, no entanto, não significa que o objetor esteja imune a todo e qualquer dever jurídico. Nesses casos, o que se verifica é a outorga de competência, às Forças Armadas, para que, na forma da lei (CR/1988, art. 143, § 1º), lhe atribuam um serviço alternativo, o qual, é importante frisar, não pode se contrapor às razões que embasaram a própria objeção de consciência.

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Sobre o autor
Emerson Garcia

Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Emerson. A religião entre a pessoa humana e o Estado de Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4127, 19 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/32816. Acesso em: 27 abr. 2024.

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