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O positivismo jurídico. Algumas reflexões

11/12/2022 às 13:00
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A ideia de senso de justiça [visando a garantia de direitos e valores fundamentais constitucionais, e assim por diante] permitiria ao magistrado extrapolar os ditames da ordem jurídica, criando lei quando da análise do processo em mesa?

Este é o último artigo do ano de 2022. Resolvi reler algo que de há muito escrevi, levando a efeito a indispensável atualização, porquanto entendo necessário uma vez mais apresentar alguns pontos. Segue o texto.

O frade franciscano Guilherme de Ockham (ou Occam [1285/1290 1347/1349])[2] [3], filósofo e teólogo inglês da Idade Média Clássica,  que se tornou jurista [pagou o preço por ter divergências com o papa: foi acusado de heresia e excomungado] é considerado o precursor do moderno positivismo jurídico, não obstante alguns juristas entenderem que a Hobbes caberia tal título. Dado o espaço concedido, tal discussão é estéril, salvo engano.

Entrementes, fica o registro de que quem usou primeiramente a expressão positivismo jurídico foi o pensador francês Pedro Abelardo (1079-1142), sendo certo que a fonte do [moderno] jus positivum é justamente o escolástico Ockham. Em poucas palavras, o positivismo jurídico [lei prescritiva, comando do homem] considera a lei como única e inexorável fonte do direito, e, para os que o defendem[4], não seria possível falar em direito natural (lei descritiva, comando de Deus [aquele direito não escrito, imutável, eterno, cravado no coração do homem[5] e bem acima do direito posto pelo comando do Estado, o soberano]).

O juspositivismo sustenta a teoria da interpretação mecanicista, que na atividade do jurista faz prevalecer o elemento declarativo sobre o produto ou criativo dos direitos, tal como adverte Norberto Bobbio[6].

Noutros termos, em se tratando de positivismo jurídico o jurista é mero operador do direito posto, na medida em que este direito se resume à firme observância da lei. Adverte Paolo Grossi que talvez nós juristas não tenhamos plena consciência disso, mas ainda somos, em boa medida, os herdeiros e as vítimas da grande redução iluminista[7].

Na outra ponta estão aqueles que defendem a doutrina denominada, por alguns, de nova hermenêutica.

Com efeito, ao se observar a hermenêutica filosófica [Gadamer e Heidegger], centrada no sujeito-sujeito[8], o exegeta não normativista[9] [aquele que não é  mero estudioso da lei, o leguleio], se afasta a filosofia da consciência (autonomia do sujeito, ideário da razão metódica de Descartes [centrada no sujeito cognoscente-objeto cognoscível]).

 Passa o exegeta, o hermeneuta, a ter papel muito mais ativo, preponderante, afastando-se da letra fria da lei, do comando napoleônico [in claris non fit interpretatio], do ideário iluminista; leva a efeito uma interpretação sistemática, teleológica e axiológica. Portanto, uma primeira conclusão se faz necessária: o jurista não é [mero] operador [como muito se lê], mas sim construtor do direito.  

Entrementes, muito se vem escrevendo a respeito da eventual possibilidade de o juiz, ao analisar o caso concreto, com base na nova doutrina, afastar a aplicação do texto legal, especialmente quando este for contra os ditames constitucionais ou considerado injusto, atuando, pois, com [verdadeiro] senso de justiça. 

Vem à baila, então, o tema do assim denominado ativismo judicial [que se não confunde com judicialização], que deita raízes na jurisprudência norte-americana.

Em linhas gerais, esse ativismo judicial permitiria ao juiz criar, criar norma no caso concreto [norma essa não prevista na Constituição Federal, em leis etc.], afastando, pois, a missão do legislador. Aliás, o hodierno exegeta insiste em escrever, não raro, o vocábulo norma, em vez de texto legal, disposição de código, enunciado, texto constitucional. Ora, a norma é produzida - com explica Eros Grau -, pelo intérprete autêntico [o juiz]; somente ele interpreta o texto de lei, estabelecendo a norma mais adequada ao caso concreto.

 Prosseguindo, a ideia de senso de justiça [visando a garantia de direitos e valores fundamentais constitucionais, e assim por diante] permitiria ao magistrado extrapolar, se assim se pode dizer, os ditames da ordem jurídica, criando lei quando da análise do processo em mesa. Também não há lugar aqui, para escrever a respeito das espécies de ativismo judicial [inovador e revelador].

Considerando tais aspectos, em tempos de indisfarçável turbulência, o nó górdio é justamente definir um determinado rumo, optando por: [i] mantença do positivismo jurídico [o apego irrestrito ao frio texto de lei], à sua literalidade, tal como posto, [ii] a permissão que seria concedida ao juiz, a fim de que se possa afastar do texto legal, criando norma, cujo ato traduzir-se-ia na assim denominada nova hermenêutica jurídica [que seria, na visão de alguns, o ativismo judicial], ou [iii] observar a nova hermenêutica filosófica, que de nova, a bem da verdade, nada tem, se não confundindo, nem de longe, com o que se denomina de ativismo judicial.

Ora, ao que se nos parece - salvo melhor juízo -, está afastada a escola da subsunção, que daria ao jurista a solução pronta ao caso concreto, tudo com base na fria letra lei. A ideia de clareza da lei parece não mais ter lugar em tempos de nova hermenêutica jurídica. Há de se interpretar o texto legal. O apego exagerado ao formalismo, somado à ausência de [ampla] visão hermenêutica, só faz com que se mantenha o dogmatismo jurídico.

O próprio exegeta permite fique o direito encastelado, atrás das rígidas e intransponíveis muralhas edificadas pelo Estado, deixando de lado uma realidade bem mais palpitante, realidade tão vibrante que seus olhos não conseguem enxergar, pois, ainda vive em tempos de normativismo.

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Ora, talvez falte ao sujeito cognoscente perceber, compreender e apreender o objeto cognoscível [v.g. a disposição legal]; perceber que é ele [o sujeito] alterado pelo objeto, e não ao contrário; perceber que o objeto determina o sujeito, não ao contrário, caso este o queira. Noutros termos, cabe ao sujeito, o intérprete, o hermeneuta, para fins de conhecimento científico, travar um verdadeiro acordo com o objeto, mediante amplo diálogo[10].

É o intérprete que precisa perceber, definitivamente, que não mais se fala em sujeito-objeto, e sim sujeito-sujeito, e que o objeto tem o poder de alterar o sujeito, caso este esteja disposto, repita-se. O conhecimento do objeto cognoscível somente ocorrerá se existir uma relação espontânea entre este e o sujeito. O jurista pós-moderno, talvez, careça olhar o outro lado da parede e perceber que não é operador, mas sim construtor do Direito, conforme exposto. É imprescindível, pois, conhecer a lei, não resta dúvida. Mas, bem mais que isso, faz-se necessário conhecer o Direito como um todo.

Portanto, não é de se falar em nova hermenêutica jurídica. Basta ao intérprete perceber que o Direito é pulsante e muitas discussões acadêmicas seriam desnecessárias[11].

A leitura desbragada de códigos em sala de aula talvez seja fácil para o professor e [muito] cômoda aos alunos. Aquele contribui para a mantença do positivismo jurídico [normativismo, por assim dizer]; contribui para que raízes do positivismo jurídico se solidifiquem ainda mais, enquanto que este - o aluno -, poderá ser mais um semeador de dogmas jurídicos, que de há muito deveriam estar ultrapassados, porquanto de há muito passou o tempo de Napoleão.


2] A propósito: Michel Villey. A Formação do pensamento jurídico moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2005; HUISMAN, Denis. Dicionário dos filósofos. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

[3] Aqui se não cabe estender no estudo do nominalismo e do realismo. Sobre o pensador Ockham, cabe(ria) a leitura da recente obra: McFadden, Johnjoe. A navalha de Ockham. Rio de Janeiro: Sextante, 2022.

[4] Ver, dentre outros expoentes do positivismo jurídico: HART, Herbert L.A. O conceito de direito. São Paulo:Martins Fontes, 2009; AUSTIN, John. The province of jurisprudence determined. New York: Prometheus Books, 2000.

[5] HÖFFE, Otfried. Justiça política. São Paulo:Martins Fontes, 2006, p. 79.

[6] O positivismo jurídico. Lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone Editora, 1999, p. 133.

[7] Mitologias jurídicas da modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004, p. 72.

[8] Ver: HASSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. São Paulo:Martins Fontes, 2003, especialmente pp. 20-21.

[9] Expressão de Javier Hervada, na obra O que é o direito? A moderna resposta do realismo jurídico. São Paulo:Martins Fontes, 2006, p. 4.

[10] O Estado de São Paulo, 25/09/2010, S6.

[11] Rudolf von Jhering.  A finalidade do direito. Aliás, escreve o autor em outra obra: A essência do direito é a sua realização prática. Um princípio jurídico que não se realiza, ou que deixou de realizar-se, já não faz jus a esse nome: é uma mola gasta que não funciona no maquinário do direito, podendo ser retirada sem que isso ocasione qualquer prejuízo. A luta pelo direito. Ora, interpretar é um ato de conhecimento do objeto cognoscível, como dito. O sujeito cognoscente é atraído pelo objeto e não ao contrário. Afasta-se a filosofia da consciência (critério subjetivo do sujeito) e coloca-se em relevo a hermenêutica filosófica. O sujeito ingressa no mundo do objeto, que o absorve. Ora, compreende-se para interpretar (explicitar o compreendido). A interpretação hermenêutica sempre pressupõe a prévia compreensão daquilo que será objeto de análise. Não existe interpretação [efetiva fixação de sentido], sem compreensão.

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Sobre o autor
Carlos Roberto Claro

Advogado em Direito Empresarial desde 1987; Ex-Membro Relator da Comissão de Estudos sobre Recuperação Judicial e Falência da OAB Paraná; Mestre em Direito; Pós-Graduado em Direito Empresarial; Professor em Pós-Graduação; Parecerista; Pesquisador; Autor de onze obras jurídicas sobre insolvência empresarial.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CLARO, Carlos Roberto. O positivismo jurídico. Algumas reflexões. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 7102, 11 dez. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/101515. Acesso em: 28 abr. 2024.

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