Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/97643
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

Princípio da reserva do possível e o direito à saúde diante da pandemia do novo coronavírus

Princípio da reserva do possível e o direito à saúde diante da pandemia do novo coronavírus

Publicado em .

Qual o direito de pacientes vítimas de covid-19 que não conseguiram acesso ao atendimento médico-hospitalar em razão da insuficiência de recursos da saúde pública?

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar a aplicação do Princípio da Reserva do Possível como justificativa para a limitação do acesso à saúde ocorrida durante a pandemia causada pelo novo coronavírus. Para isso, se faz um estudo abordando aspectos teóricos relevantes para a compreensão da problemática e análise de dados referentes ao período da pandemia. Nesse cenário, o presente trabalho tem como objetivo geral estudar o direito à saúde e a possibilidade de sua limitação. De forma específica, o estudo será em relação a limitação de recursos do Estado, que encontra fundamento no Princípio da Reserva do Possível, poder ser utilizada como justificativa para os casos dos pacientes vítimas de covid-19 que não conseguiram acesso ao atendimento médico-hospitalar em razão da insuficiência de recursos financeiros e materiais para a saúde pública. Com base nisso, se chega ao objetivo do estudo, gerando as conclusões cabíveis após a análise.

Palavras-chave: Direito a Saúde. Princípio da Reserva do Possível. Covid-19.

Sumário: 1. Introdução; 2 Dimensões dos direitos fundamentais; 3 Histórico do direito à saúde nas Constituições do Brasil; 3.1 Direito à saúde na Constituição Federal de 1988; 4 Direito ao mínimo existencial; 5 Princípio da reserva do possível; 6 Direito à saúde e a sua limitação fundada no princípio da reserva do possível; 7 Direito à saúde em meio à pandemia e o princípio da reserva do possível; 7.1 Resultados e discussões. Considerações finais. Referências Bibliográficas.


1. INTRODUÇÃO

Em fevereiro de 2020 começaram a surgir os primeiros casos confirmados do vírus covid-19 no Brasil. A partir desse momento houve uma crescente busca por atendimento médico em razão da doença provocada pelo vírus e suas complicações. Nesse contexto, nasce a relação jurídica que será discutida no presente trabalho, a necessidade de atendimento médico-hospitalar diante da pandemia causada pelo novo coronavírus e a limitação de recursos do Estado para atender a demanda que surgiu.

É sabido que o direito à saúde encontra seu respaldo na Constituição Federal. Contudo, há de se destacar que o Estado encontra limitações de ordem econômica e orçamentária para garantir a todos de forma concreta os direitos constitucionalmente e legalmente previstos. Frente a esse panorama surge o Princípio da Reserva do Possível, o qual visa justificar a garantia deficitária dos direitos fundamentais da pessoa humana, dentre eles o direito à saúde, por parte do ente estatal.

Tendo em vista o acima explicitado, torna-se apropriado para o momento atual, no qual todo o mundo foi fortemente impactado pelo novo coronavírus, a análise do direito fundamental à saúde frente às limitações do estado e ao Princípio da Reserva do Possível.

Essa relevância se destaca por tratar de uma situação atual, que é a pandemia causada pelo coronavírus, que trouxe uma maior demanda ao sistema de saúde brasileiro, destacando a necessidade de se buscar mecanismos que viabilizem a garantia ao direito à saúde que é garantido constitucionalmente a todos os brasileiros e residentes no brasil indistintamente.

Além disso, o trabalho trata de um direito de todos que foi amplamente afetado nesse período, que é o direito à saúde, pois, com a crescente demanda por atendimento médico-hospitalar, muitas pessoas foram impossibilitadas de receber o atendimento que precisavam em razão da ausência dos meios necessários.

Nesse cenário, o presente trabalho tem como objetivo geral investigar o direito à saúde e a possibilidade de sua limitação. De forma específica, o estudo analisará a limitação de recursos do Estado, que encontra fundamento no Princípio da Reserva do Possível, poder ser utilizada como justificativa para os casos dos pacientes vítimas de covid-19 que não conseguiram acesso ao atendimento médico-hospitalar.

Em relação ao método de pesquisa utilizado foi realizada Pesquisa Bibliográfica em conjunto com análise de dados. Para isso, explorou-se literaturas envolvendo fontes secundárias como: legislações, materiais virtuais, e-books e outros.

O pressente artigo está estruturado em sete sessões, apresentando referencial teórico e desenvolvimento da pesquisa a partir da segunda. Inicialmente, aborda-se as dimensões dos Direitos Fundamentais, seguido pela terceira sessão, na qual é realizado o levantamento do histórico do direito à saúde nas Constituições do Brasil, e em especial na Constituição da República de 1988.

Por sua vez, na quarta sessão, analisa-se o Princípio do Mínimo Existencial e seu desenvolvimento de acordo com a necessidade de alguns países em razão da ausência de direitos basilares, o que gerava maior vulnerabilidade da população. Ao passo que na quinta sessão disserta-se sobre o Princípio da Reserva do Possível, justificativa que o Estado possui limitações para efetivar concretamente todas as garantias e direitos constitucionalmente e legalmente previstos para todos que necessitarem.

Limitar um direito fundamental para manutenção da vida é de fato algo a ser feito com muita cautela, mister se faz essa abordagem na sexta sessão, para tão somente discorrer na sétima sessão sobre o direito à saúde em meio à pandemia e o Princípio da Reserva do Possível.

A pandemia do coronavírus até o mês de novembro de 2021, causou aproximadamente 610.000 (seiscentas e dez mil) mortes no Brasil, de acordo com o Painel Coronavírus. Tal fato é reflexo de diversos fatores como será exaustivamente exposto na presente pesquisa, razão pela qual encerra-se a pesquisa realizando análise de resultados e discussões sobre os questionamentos propostos.


2. DIMENSÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Quando se analisam as dimensões dos direitos fundamentais, é possível perceber que a sociedade percorreu um longo caminho para a conquista de seus direitos, passando por inúmeras transformações, portanto são direitos históricos, nascidos em certas circunstâncias, especialmente marcados por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes.

Os direitos fundamentais possuem uma divisão doutrinária instituída que facilita sua compreensão de aplicação e origem. A doutrina classifica os direitos fundamentais em gerações ou dimensões dos direitos fundamentais, cada uma com características próprias.

A primeira dimensão dos direitos fundamentais conta com direitos que realizaram uma limitação no poder Estatal em face das liberdades individuais. Nesse sentido leciona Padilha: “A primeira dimensão de direitos fundamentais foi construída em 1789 com a revolução francesa e buscava impor limites à atuação do Estado e à criação de um Estado liberal” (PADILHA, 2020, pág. 345).

Conforme ensina Nunes Junior, “nos direitos de primeira dimensão, o Estado tem o dever principal de não fazer, de não agir, de não interferir na liberdade pública do indivíduo” (NUNES JUNIOR, 2019, pág. 817). Dessa forma, se trata de uma dimensão conhecida por direitos, que exigem um não-fazer por parte do Estado, sendo composta por direitos de natureza negativa no que se diz respeito a atuação do poder estatal.

Como exemplos de direitos que constituem a primeira dimensão dos direitos fundamentais pode-se citar o direito à propriedade privada, direito à vida e direitos políticos.

Já em relação aos direitos de segunda geração, há uma exigência de atuação positiva por parte do Estado. Enquanto os direitos de primeira dimensão prezam por diminuir a atuação estatal garantindo mais liberdade social, os direitos de segunda dimensão surgem com a necessidade de ação do Estado para sua efetividade.

Nesse sentido, quando se trata de direitos de segunda dimensão “ao contrário dos direitos de primeira dimensão, aqui o Estado tem o dever principal de fazer, de agir, de implementar políticas públicas que tornem realidade os direitos constitucionalmente previstos” (NUNES JUNIOR, 2019, pág. 818).

Assim, considera-se que direitos fundamentais de segunda dimensão são direitos de cunho positivo, pois exigem um fazer por parte do Estado. Diante disso, Padilha leciona que “Por isso, são conhecidos como direito à prestação positiva (facere), dentre os quais se destacam os direitos sociais como saúde, trabalho, alimentação, educação, salário mínimo e aposentadoria, dentre outros” (PADILHA, 2020, pág. 346).

Assim, como direito fundamental de segunda dimensão encontra-se também o acesso à saúde, como direito de cunho positivo que exige ação do poder estatal para que possa ser efetivado como previsto constitucionalmente.

Há também os direitos de terceira dimensão, que são aqueles que possuem natureza ampla, para amparar uma coletividade, A terceira dimensão de direitos fundamentais foi criada em razão da necessidade de tutela dos direitos de toda a sociedade, por isso são os chamados direitos metaindividuais ou transindividuais (direitos difusos e coletivos strictu sensu), como o direito à paz, ao meio ambiente equilibrado, à solidariedade, ao desenvolvimento, à fraternidade e assim por diante (PADILHA, 2020).

Assim, são direitos voltados para a coletividade, de forma que sejam efetivados para uma melhor convivência e qualidade de vida para a sociedade, pois são direitos que tutelam o bem-estar social, resguardando fatores que afetam a sociedade de forma coletiva.

Continuando, a doutrina também reconhece que existem os direitos fundamentais de quarta dimensão. A esse agrupamento pertencem os direitos que se relacionam ao contexto de novas tecnologias, pois visam tutelar as garantias já existentes para que não ocorram violações diante dos avanços tecnológicos. Assim, “Para parte da doutrina, direitos de quarta dimensão são os direitos decorrentes do avanço tecnológico, mormente relacionado à ciência genética, à noção de biodireito e biotecnologia.” (NUNES JUNIOR, 2019, pág. 820).

Portanto, os direitos que surgem na quarta dimensão dos direitos fundamentais têm a finalidade de proteger bens jurídicos de perigos decorrente das novas tecnologias. Então os direitos de quarta geração “nascem todos dos perigos à vida, à liberdade e à segurança, provenientes do aumento do progresso tecnológico” (NUNES JUNIOR, 2019, pág. 820).

Os avanços tecnológicos trouxeram a necessidade de se tutelar também bens jurídicos que poderiam ser afetados no meio virtual. Dessa forma, surge a quinta dimensão dos direitos fundamentais como forma de tutelar também esses bens jurídicos que poderiam ser afetados nesse meio. Portanto, afirma-se que “Assim, a quinta dimensão é apontada como o direito cibernético, o que engloba tutela de software, direito autoral pela internet, proteção dos crimes virtuais e assim por diante” (PADILHA, 2020, pág. 346).

Por último, a doutrina ainda trata da sexta dimensão dos direitos fundamentais, que seria a garantia da busca pela felicidade como um direito, conforme leciona Padilha “A sexta dimensão de direitos fundamentais já está sendo construída e, para alguns, seria o direito de buscar a felicidade” (PADILHA, 2020, pág. 346).


3. HISTÓRICO DO DIREITO À SAÚDE NAS CONSTITUIÇÕES DO BRASIL

O direito à saúde como direito constitucional da forma que se tem hoje é fruto de uma construção histórica que levou em consideração diversos fatores. A cada nova Constituição Federal foi possível notar uma diferença no tratamento do direito à saúde, trazendo uma gradativa evolução até chegar ao ponto que se apresenta na nossa constituição atual.

Na Constituição Imperial (1824) ainda não se tinha expressamente a previsão de que a saúde é direito de todos. Esse texto constitucional trouxe de forma tímida e sem muitas explicações, o direito aos “socorros públicos” que era garantido aos cidadãos brasileiros.

Assim, a Constituição de 1824 trazia a seguinte previsão:

Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Império, pela maneira seguinte.

(...)

XXXI. A Constituição também garante os socorros públicos (BRASIL, 2021).

A Constituição de 1891 não trouxe grandes mudanças em relação ao que seria o início da previsão constitucional da garantia ao direito à saúde. Nesse texto não havia mais o termo “socorros públicos” e o que se pode entender como referência à uma tutela sanitária é o previsto no art. 72, caput da referida carta magna, que prevê a segurança individual: “Art.72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes: (...)” (BRASIL, 2021).

Já a Constituição Federal de 1934 trouxe de forma mais clara o direito à saúde em seu texto. No art. 10, ela tratou da competência em relação a cuidar da saúde, sendo que seria da União e dos estados: “Art 10 - Compete concorrentemente à União e aos Estados: (...) II - cuidar da saúde e assistência públicas;” (BRASIL, 2021).

Além de expressar de quem seria a competência para tratar da saúde, também ditou que trabalhadores e gestantes teriam acesso à assistência médica:

Art 121 - A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do trabalho, na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador e os interesses econômicos do País. 

§ 1º - A legislação do trabalho observará os seguintes preceitos, além de outros que colimem melhorar as condições do trabalhador: 

h) assistência médica e sanitária ao trabalhador e à gestante (...). (BRASIL, 2021).

Pouco tempo depois, surge uma nova constituição, em 1937. O novo texto constitucional trouxe uma mudança em relação à competência, pois passou a prever que seria apenas da União a competência para legislar sobre normas de proteção à saúde.

Em 1946, com a nova constituição não vieram avanços em relação a constitucionalização do direito à saúde. Ela manteve o que já existia em relação a competência para legislar a esse respeito.

Posteriormente, a Constituição de 1967 veio mantendo a previsão constitucional em relação a competência legislativa e inovando com o direito a assistência médica preventiva para os trabalhadores:

Art 158 - A Constituição assegura aos trabalhadores os seguintes direitos, além de outros que, nos termos da lei, visem à melhoria, de sua condição social:

(...)

XV - assistência sanitária, hospitalar e médica preventiva; (BRASIL, 2021).

Já na nova ordem, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 inseriu em seu art. 6º o direito à saúde como um direito social, compreendido como uma prestação positiva do Estado, bem como estabeleceu em seu art. 194 que o direito a saúde faz parte da seguridade social, que ao lado dos art. 196 e 201 da Constituição Federal fixam uma estrutura política complexa para o sistema de saúde brasileiro.

3.1 Direito à saúde na Constituição Federal de 1988

Primeiramente, cabe mencionar que o conceito de direito à saúde compreendido por meio da Carta Magna é:

Um dever do Estado, um direito fundamental de prestação de saúde que deve ser garantido mediante a execução de políticas públicas sociais e econômicas. Estas devem ser realizadas mediante políticas públicas de saúde, para as quais o Estado tem o dever de alocar recursos financeiros em prol de um acesso universal e igualitário aos serviços públicos de saúde (CUNHA, 2019, pág. 170).

A Constituição Federal elenca diversos Direitos Sociais em seu texto, tratando-se de normas que geram uma obrigação para o Estado de agir em prol de sua efetivação. Nesse sentido ensina Rodrigo Padilha: “Os direitos sociais exigem prestação positiva (obrigação de fazer) dos Poderes Públicos, sendo, por isso, chamados de direitos prestacionais ou direitos de promoção” (PADILHA, 2020, pág. 882).

Dentre os direitos previstos na Constituição Federal como Direitos Sociais tem-se o direito à saúde, conforme previsão do art. 6º do texto constitucional: “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (BRASIL, 2021).

Dessa forma, é possível afirmar que o acesso à saúde no Brasil tem fundamento em uma garantia Constitucional, que exige do Estado uma postura ativa com o propósito de materializar o direito previsto na Carta Magna.

A determinação de prestação positiva do Estado na efetivação da norma constitucional que prevê o Direito à saúde está fundamentada também no próprio texto da Constituição Federal:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 2021) (grifo meu).

Outro destaque dado pela Constituição Federal para o direito à saúde encontra-se no art. 194, que traz de forma expressa que se trata de um direito integrante da seguridade social. Isso quer dizer que é um direito a ser assegurado por meio de ação do poder público e também da sociedade.

Portanto, é possível afirmar que a Carta Magna estabelece o Direito à saúde a todos, sendo uma obrigação Estatal agir para garantir a efetividade desse direito. Isso por meio de ações no sentido de garantir o acesso à saúde nas formas necessárias e, inclusive, de forma preventiva.

A sua consagração na Constituição da República de 1988 foi um dos principais avanços dos direitos fundamentais sociais, tendo em vista que, conforme foi exposto, em constituições pretéritas esse direito foi pouco mencionado.

A Constituição Federal, notadamente no art. 197, vem alegando que a saúde é de relevância pública, cabendo ao Poder Público, dispor sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, podendo os serviços de saúde serem prestados diretamente pelo Estado ou, também, por terceiros, pessoas físicas ou jurídicas de direito privado.

No Brasil os serviços e ações de saúde pública são disponibilizados a todos os brasileiros e residentes no país, de forma universal, isonômica, igualitária e sem privilégios, conforme determina o art. 198 da Constituição Federal de 1988, por intermédio do Sistema Único de Saúde – SUS, sendo que a União deve aplicar um valor mínimo do seu orçamento anual no para manter o referido sistema operante.

O texto constitucional traz outro destaque aos cuidados relativos à saúde quando prevê no art. 201 sobre a previdência social, elencando amparo, por exemplo, a trabalhadores, gestantes e incapacitados.

Dessa forma, a Constituição Federal de 1988 traz em seu arcabouço uma série de mecanismos de proteção ao direito à saúde, regulamentando o seu acesso e determinando que o Estado deve agir positivamente com o fito de implementar políticas públicas visando a garantia ao acesso ao sistema de saúde pública a todos indistintamente.


4. DIREITO AO MÍNIMO EXISTENCIAL

A previsão do direito ao mínimo existencial surgiu na Alemanha e teve seu desenvolvimento de acordo com a necessidade de alguns países em razão da ausência de direitos basilares, o que gerava maior vulnerabilidade da população.

Nesse sentido, em relação ao surgimento do Mínimo Existencial conforme Nunes Junior:

A teoria do mínimo existencial dos direitos sociais, que teve origem na Alemanha, como descrevemos no início deste capítulo, fortaleceu-se ao longo das últimas décadas, sobretudo nos países em desenvolvimento, em razão do déficit histórico na implementação dos direitos sociais mais basilares, como saúde e educação (NUNES JUNIOR, 2019, pág. 1299).

Nesse sentido, é possível inferir que a Teoria do Mínimo Existencial surge como uma forma de suprir a ausência de garantias essenciais. Além disso, cabe destacar que essa teoria também se relaciona com a Reserva do Possível, pois ambas se relacionam no entendimento de que o Mínimo Existencial busca minimizar os efeitos negativos da Teoria da Reserva do Possível. Nesse contexto, a Teoria do Mínimo Existencial “é uma tentativa de minimizar os riscos decorrentes da teoria da reserva do possível” (NUNES JUNIOR, 2019, pg. 1299).

Apesar de não estar expressamente prevista na Constituição Federal, a Teoria do Mínimo Existencial se trata de um direito assegurado pela constituição, em razão da interpretação ampla garantida no Art. 5º, §2º da Constituição Federal.

Dessa forma, mesmo sem previsão expressa na Constituição Federal, o Princípio do Mínimo Existencial está literalmente no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, do qual o Brasil é signatário conforme o decreto no 591, de 6 de julho de 1992.

O art. 11, 1, do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, prevê que:

Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequando para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria continua de suas condições de vida. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento (BRASIL, 2021).

Assim, ainda segundo o entendimento de Nunes Junior, “a garantia da tutela estatal do mínimo existencial tem natureza constitucional, independentemente de previsão expressa” (NUNES JUNIOR, 2019, pág. 1301).

Dessa forma, tem-se como um direito fundamental para a sociedade a garantia do Mínimo Existencial, pois por meio dela tem-se estabelecido direitos necessários para que seja possibilitada uma vida digna. Portanto, concluímos que a proteção ao Mínimo Existencial é constitucionalmente assegurada, sendo ela corolário do direito à vida, da dignidade da pessoa humana e da cidadania.

Para que se compreenda o que é considerado mínimo existencial, a análise deve ser feita de acordo com as variadas realidades sociais existentes. Nesse sentido, “Entendemos que a definição do mínimo existencial não pode ser feita aprioristicamente, desprendida da realidade social e da conjuntura política e econômica de um país” (NUNES JUNIOR, 2019, pg. 1307).

O direito ao Mínimo Existencial diz respeito a garantias mínimas que os indivíduos de um determinado contexto social necessitam para que possam viver de forma digna. Isso se refere a direitos garantidos pelo Estado e também aos meios para exercê-los, de modo que se tenha concretizado materialmente os direitos necessários para uma vida digna.

Portanto, o Mínimo Existencial consiste em um núcleo de direitos mínimos que devem ser assegurados a todos os indivíduos para que seja garantida a dignidade da pessoa humana. Assim, o mínimo existencial abrange todas as condições e elementos necessários para a manutenção de uma vida digna, livre e participativa, possuindo estreita relação com a realização dos direitos fundamentais, amplamente considerados.

Quando se é privado do Mínimo Existencial, o ser humano perde o direito de ter uma vida digna. Dessa forma, quando se pretende buscar um direito, seja na esfera administrativa, ou na judicial, fundamenta-se no mínimo existencial, conforme se percebe da decisão do Superior Tribunal de Justiça - STJ:

ADMINISTRATIVO- CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS- POSSIBILIDADE EM CASOS EXCEPCIONAIS- DIREITO À SAÚDE- FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS- MANIFESTA NECESSIDADE- OBRIGAÇÃO DO PODER PÚBLICO? AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES- NÃO OPONIBILIDADE DA RESERVA DO POSSÍVEL AO MÍNIMO EXISTENCIAL. 1. Não podem os direitos sociais ficar condicionados à boa vontade do Administrador, sendo de fundamental importância que o Judiciário atue como órgão controlador da atividade administrativa. Seria uma distorção pensar que o princípio da separação dos poderes, originalmente concebido com o escopo de garantia dos direitos fundamentais, pudesse ser utilizado justamente como óbice à realização dos direitos sociais, igualmente fundamentais. 2. Tratando-se de direito fundamental, incluso no conceito de mínimo existencial, inexistirá empecilho jurídico para que o Judiciário estabeleça a inclusão de determinada política pública nos planos orçamentários do ente político, mormente quando não houver comprovação objetiva da incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal. 3. In casu, não há empecilho jurídico para que a ação, que visa a assegurar o fornecimento de medicamentos, seja dirigida contra o município, tendo em vista a consolidada jurisprudência desta Corte, no sentido de que "o funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS) é de responsabilidade solidária da União, Estados-membros e Municípios, de modo que qualquer dessas entidades têm legitimidade ad causam para figurar no pólo passivo de demanda que objetiva a garantia do acesso à medicação para pessoas desprovidas de recursos financeiros" (REsp 771.537/RJ, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, DJ 3.10.2005). Agravo regimental improvido.

Portanto, é possível concluir que os tribunais vêm proferindo decisões que resguardem o direito básico ao mínimo existencial, a fim de garantir a dignidade da pessoa humana.


5. PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL

Conforme abordado anteriormente, a existência do Mínimo Existencial retrata um núcleo essencial de direitos necessários para a garantia da vida com dignidade. Como consequência, cabe ao Estado se manter de forma negativa no que couber, mas também atuar de forma positiva sempre que necessário para efetivação de tais direitos.

Nesse sentido, além da análise de um Mínimo Existencial a ser garantido pelo poder estatal, deve-se considerar a condição orçamentária do Estado. Desse modo, muitos direitos fundamentais não são efetivados de forma plena e digna em razão da Reserva do Possível.

A discussão acerca da limitação orçamentária do Estado para fazer cumprir os direitos previstos no ordenamento jurídico brasileiro ainda é presente em muitas demandas judiciais. Cabe mencionar a existência de um rol de garantias e direitos fundamentais que são estendidos a todos nos termos da Carta Magna, e, que devem ser garantidos pelo Estado, além de se destacar o Princípio do Mínimo Existencial.

Para Pers; Pereira:

A abundante demanda por direitos proveniente em grande parte da camada mais fragilizada da sociedade, devido à intensa pobreza, que é um problema de importância estrutural a ser enfrentado no Brasil, acaba por converter-se numa justificativa utilizada pela administração pública, para que as garantias não sejam ofertadas integralmente aos cidadãos, haja vista a quantidade elevada de gastos necessários para tal efetivação e a indisponibilidade de recursos (PERS; PEREIRA, 2020, pág. 14).

Nesse viés, a sociedade precisa efetivar seus direitos e muitas vezes obtém como resposta a impossibilidade disso em razão de limitação orçamentária do Estado. Assim, em alguns casos, o Princípio da Reserva do Possível pode ser aplicado realizando uma limitação razoável a determinado direito em razão da finitude dos recursos financeiros estatais.

Ocorre que é importante destacar que muitos direitos possuem um núcleo intangível, o qual não pode ser limitado nem mesmo com a justificativa da Reserva do Possível. Isso porque exististe o Mínimo Existencial a ser preservado, pois não podem existir limitações que privem o ser humano de uma vida digna e de meios necessários para tê-la.

O entendimento sobre a Reserva do Possível na concepção alemã, é de que “refere-se àquilo que é razoavelmente concebido como prestação social devida, em decorrência da interpretação dos direitos fundamentais sociais, eliminando as demandas irrazoáveis, desproporcionais e excessivas” (NUNES JUNIOR, 2019, pág. 1269).

Por conseguinte, pode-se entender que é uma concepção razoável de Reserva do Possível que o Estado possui limitações para efetivar concretamente todas as garantias e direitos legalmente previstos para todos que necessitarem. Assim, é algo razoável que o Estado forneça meios proporcionais e equilibrados de acesso aos direitos.

Logo, o Estado tem o ônus de comprovar sua insuficiência financeira, não cabendo a simples alegação genérica da insuficiência de orçamento. Senão, vejamos:

AÇÃO CIVIL PÚBLICA - DIREITO À SAÚDE -RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DOS ENTES FEDERADOS - TRATAMENTO FORA DO DOMICÍLIO - CÂNCER - TRANSPLANTE DE MEDULA - AJUDA DE CUSTO - COMPROVAÇÃO, PELO MINISTÉRIO PÚBLICO, DOS FATOS CONSTITUTIVOS DO DIREITO DO PACIENTE - INEXISTÊNCIA DE ELEMENTOS IMPEDITIVOS, MODIFICATIVOS OU EXTINTIVOS - CONTESTAÇÃO QUE CONTÉM ARGUMENTOS GENÉRICOS. 1. Sendo solidária a responsabilidade dos entes federados no que tange à promoção da saúde, é de se concluir que todos detêm legitimidade passiva para responder, ainda que exclusivamente, pelo pedido de fornecimento de medicamentos. 2. Demonstrada a imprescindibilidade do tratamento fora do domicílio, diante da ausência de disponibilização do transplante de medula pelo réu, aliada à hipossuficiência de recursos do paciente, impõe-se a condenação do Município à ajuda de custo. 3. Alegações genéricas de insuficiência orçamentária não têm o condão de suplantar o direito constitucional à saúde. 4. Em reexame necessário, reformar em parte a r. sentença, somente para limitar a condenação ao período de permanência do paciente indicado no relatório médico.

(TJ-MG - AC: 10637100068526001 São Lourenço, Relator: Áurea Brasil, Data de Julgamento: 09/02/2012, Câmaras Cíveis Isoladas / 5ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 24/02/2012) (Grifo meu).

Dessa forma, o Princípio da Reserva do Possível não pode ser utilizado de modo indiscriminado como justificativa para a ausência de acesso à saúde no Brasil, cabendo ao Estado garantir a razoável efetivação desse direito.


6. DIREITO À SAÚDE E A SUA LIMITAÇÃO FUNDADA NO PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL

É importante destacar que os direitos assegurados pelo texto constitucional geram ao indivíduo o poder de exigir sua aplicação efetiva. Diante da análise sobre o poder de exigir a efetivação de seus direitos e a limitação orçamentária do Estado, surge o ideal de aplicação da razoabilidade para garantir um equilíbrio nessa relação.

Porém, existem direitos e garantias que, se limitados, podem gerar prejuízos irreparáveis, pois se tratam de direitos indispensáveis ao Mínimo Existencial. É o caso do Direito à saúde, amplamente conhecido e garantido no texto constitucional e que no contexto da pandemia do novo corona vírus sofreu excesso de limitações como será demonstrado.

Limitar um direito fundamental para manutenção da vida é de fato algo a ser feito com muita cautela. Primeiro, deve-se verificar que é necessário utilizar de razoabilidade na efetivação de direitos, pois é materialmente difícil cumprir no grau máximo de excelência todos os direitos e garantias. Segundo, deve-se ter atenção ao núcleo essencial do direito à saúde no que se relaciona com a manutenção da vida, pois restringir esse direito ao ponto de ser incompatível com a vida não seria razoável.

O entendimento de que o Princípio da Reserva do Possível não tem aplicação ilimitada quando a demanda se tratar de Direito à saúde já é firmado em tribunais, nesse sentido:

PROCESSO Nº: 0800563-35.2019.4.05.8401 - APELAÇÃO CÍVEL APELANTE: ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE APELADO: JOSE REGINALDO DA FONSECA ADVOGADO: Carlos Paccelli Silva RELATOR(A): Desembargador(a) Federal Francisco Roberto Machado - 1ª Turma JUIZ PROLATOR DA SENTENÇA (1° GRAU): Juiz(a) Federal Arnaldo Pereira De Andrade Segundo EMENTA: PROCESSUAL CIVIL, CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO. LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM DOS ENTES FEDERADOS. DIREITO À SAÚDE. INTERNAMENTO EM UTI. NECESSIDADE COMPROVADA. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA. INEXISTÊNCIA. PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL. INAPLICABILIDADE. APELAÇÃO IMPROVIDA.

[...]

8. A Administração não pode negar-se a fornecer um tratamento comprovadamente essencial à vida do requerente, usando como argumento a sua excessiva onerosidade. Logo, incabível a alegação da "reserva do possível", pois mesmo sendo indiscutível que o fornecimento de medicamentos ou tratamento de alto custo requer a existência de recursos orçamentários, sabe-se que tal alegação não ampara o apelante. [...] (PROCESSO: 08005633520194058401, APELAÇÃO CÍVEL, DESEMBARGADOR FEDERAL FRANCISCO ROBERTO MACHADO, 1ª TURMA, JULGAMENTO: 14/05/2020).

Nesse sentido, não tem sido aceita pelos tribunais a limitação do exercício ao direito à saúde com exclusiva alegação do Princípio da Reserva do Possível. Isso em decorrência da importância desse direito como garantia ao Mínimo Existencial, sendo primordial o acesso à saúde sempre que necessário.

Nesse contexto, não se pode falar que entes públicos estão limitados à Reserva do Possível, pois se trata de uma alegação vaga, e quando se relaciona essa limitação ao direito a saúde e a vida, tem-se direitos que estão além de prejuízos causados ao Estado.

Note-se ainda que o entendimento de Tribunais de Justiça vem neste sentido:

MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO À SAÚDE. MEDICAMENTO. FORNECIMENTO. Autora portadora de hipertensão arterial, necessitando de medicamentos de uso contínuo. Necessidade do uso atestada em prescrição médica idônea, que não cabe ao judiciário contestar. Hipossuficiência. Inadmissível a recusa de fornecimento. Dever constitucional do Estado de garantir a saúde de todos os cidadãos, nos termos do art. 196 da Constituição Federal. Atividade jurisdicional que não expressa ingerência indevida na área de competência do Poder Executivo. Inaplicabilidade do princípio da reserva do possível. Sentença de procedência confirmada. Negado provimento ao recurso voluntário e oficial. (TJ-SP - APL: 00049593720128260505 SP 0004959-37.2012.8.26.0505, Relator: Djalma Lofrano Filho, Data de Julgamento: 05/08/2015, 13ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 12/08/2015).

APELAÇÃO E REEXAME NECESSÁRIO. DIREITO À SAÚDE. MEDICAMENTO. RANIBIZUMABE (LUCENTIS OU AVASTIN). Fornecimento gratuito de medicamento para pessoa idosa, hipossuficiente e acometida de degeneração da mácula do olho direito e visão 20/80 com correção. Necessidade do uso atestada em prescrição médica idônea, suficiente para comprovação do direito da autora. Inadmissível a recusa de fornecimento. Dever constitucional do Estado de garantir a saúde de todos os cidadãos, nos termos do art. 196 da Constituição Federal. Desenvolvimento da atividade jurisdicional que não expressa qualquer ingerência indevida na área de competência do Poder Executivo. Responsabilidade solidária dos entes públicos, nos termos do art. 23, II, daCR. Inaplicabilidade do princípio da reserva do possível. Necessidade, contudo, de renovação periódica do receituário. Sentença confirmada. Negado provimento aos recursos, com observação. (TJ-SP - APL: 10049946120148260132 SP 1004994-61.2014.8.26.0132, Relator: Djalma Lofrano Filho, Data de Julgamento: 30/09/2015, 13ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 07/10/2015)

Portanto, por se tratar de um direito ligado diretamente à vida, é evidente que não se mostra razoável a aplicação de excesso de limitações ao seu exercício. Assim, em casos relacionados ao direito essencial à saúde, se mostra necessária razoabilidade e ponderação entre o Mínimo Existencial e a aplicação de limitação com fundamento no Princípio da Reserva do Possível.


7. DIREITO À SAÚDE EM MEIO A PANDEMIA E O PRINCÍPIO DA RESERVA DO POSSÍVEL

A pandemia do coronavírus até a data de 13/10/2021 causou 601.574 (seiscentas e uma mil, quinhentas e setenta e quatro) mortes no Brasil e contaminou 21.597.949 (vinte e uma milhões, quinhentas e noventa e sete mil, novecentas e quarenta e nove) pessoas, conforme informações colhidas no Painel Coronavírus. Tal fato é reflexo de diversos fatores como, por exemplo, limitação de estrutura médico-hospitalar para atender à crescente demanda.

Fonte: Boletim Epidemiológico Especial 71.

O gráfico acima é um demonstrativo de Óbitos causados por Síndrome Respiratória Aguda Grave). Os dados são referente ao casos no Brasil, em períodos dos anos de 2020 a 2021, contando com informações até a Semana Epidemiológica 27.

Em decorrência dos graves sintomas causados pelo vírus, houve uma maior necessidade de suporte médico e internação para manutenção da vida. Isso é visível ao se analisar dados referentes ao quantitativo de internações durante a pandemia.

No ano de 2021 até a Semana Epidemiológica 27, do total de 1.223.104 (um milhão, duzentas e vinte três mil, cento e quatro) de internações por Síndrome Respiratória Aguda, 896.731 (oitocentos e noventa e seis mil, setecentas e trinta e um) casos foram em razão do Coronavírus, de acordo com o Boletim Epidemiológico 71. Conforme demonstra a tabela abaixo, nas semanas epidemiológicas de 2021 retratadas, verifica-se o ápice da quantidade de internações por covid-19 nas semanas 9, 10 e 11, seguidas de períodos de oscilação.

O gráfico abaixo demonstra os Casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave que necessitaram de internação hospitalar. São dados relativos aos casos no Brasil, nos períodos referentes aos anos de 2020 a 2021, finalizando na semana epidemiológica 27.

Fonte: Boletim Epidemiológico Especial 71.

Como abordado em momento anterior, a necessidade de internações em decorrência de complicações causadas pelo coronavírus gerou filas para atendimento e, inclusive, mortes durante a espera por suporte médico-hospitalar. Por meio do gráfico é possível perceber o grande número de pessoas que necessitaram de atendimento, principalmente nas semanas referentes ao ano de 2021.

Fonte: Observatório Covid-19. Boletim extraordinário

Mesmo com tantos atendimentos realizados, muitos infectados sequer puderam ter acesso ao tratamento de saúde exigido de acordo com a gravidade do caso. Isso como reflexo da limitação de estrutura e de profissionais habilitados para que o Estado fornecesse o acesso à saúde amplo como é previsto constitucionalmente.

Observando tais dados é possível compreender que o sistema de saúde brasileiro não possuía capacidade para fornecer o acesso à saúde que todos os contaminados pelo coronavírus precisavam. Como consequência, o direito de ter acesso à saúde foi violado em razão da limitação Estatal.

Além de tudo o que foi exposto sobre os diretamente lesados, cabe mencionar que ainda existem aqueles que tiveram sua limitação no acesso à saúde de forma indireta, como é o caso de internações consideradas eletivas que foram suspensas, conforme consta no boletim extraordinário emitido pela Fiocruz.

7.1 Resultados e discussões

De acordo com o que já foi abordado, pode-se chegar ao entendimento de que o Estado atraiu para si o dever de garantir o acesso à saúde a todos. Isso por tornar esse direito previsto de forma constitucional e também em normas infraconstitucionais, nesse sentido, conforme a Lei nº 8.080/90 “Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício” (BRASIL, 2021).

Nesse viés, a cognição do arcabouço legal brasileiro permite compreender que na relação entre o Estado, a garantia fundamental e o direito à saúde, o Estado encontra-se vinculado ao dever de promover as condições necessárias para que seja efetivado de forma plena o direito à saúde.

Ocorre que no contexto atual da Pandemia causada pelo novo Coronavírus, diversos foram os casos noticiados de ausência de condições para que todos pudessem ter acesso ao tratamento médico-hospitalar necessário.

Em notícia publicada no dia 26/03/2021, pela Agência de notícias “O Globo”, foi afirmado que “6.370 brasileiros com Covid-19 estavam, na quinta-feira (25), à espera de um leito de UTI, de acordo com dados do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass) obtidos com exclusividade pelo Jornal Nacional”. Esse fato noticiado exemplifica a situação de limitação de acesso ao tratamento médico necessário às vítimas da Covid-19.

Em relação a impossibilidade do Estado de garantir de forma plena o direito à saúde, já é entendimento firmado entre os tribunais que é dever do Estado prestar essa garantia, nesse sentido: “O direito à saúde é prerrogativa constitucional indisponível, garantido mediante a implementação de políticas públicas, impondo ao Estado a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso a tal serviço” (AI 734.487 AgR, rel. min. Ellen Gracie, j. 3-8-2010, 2ª T, DJE de 20-8-2010).

Além disso, cabe destacar que é dever da União, Estados, Distrito Federal e Municípios gerir o sistema público de saúde de forma a garantir seu a acesso por todos indistintamente (art. 23, II, da Constituição Federal). Portanto “se uma pessoa necessita, para garantir o seu direito à saúde, de tratamento médico adequado, é dever solidário da União, do Estado e do Município providenciá-lo” (AI 550.530 AgR, rel. min. Joaquim Barbosa, j. 26-6-2012, 2ª T, DJE de 16-8-2012.)

Nesse sentido, é evidente que o direito à saúde faz parte de um núcleo essencial de direitos a serem garantidos para que se tenha vida com dignidade, se tratando de um mínimo a ser garantido. Assim, a Constituição, normas infraconstitucionais e a jurisprudência seguem o raciocínio de que é responsabilidade estatal fornecer os meios necessários para concretização desse direito.

Como abordado, no período de maior crise na saúde durante a pandemia causada pelo novo coronavírus, existiam filas para atendimento médico, inclusive ocorreram mortes enquanto se aguardava por atendimento médico-hospitalar.

De acordo com pesquisa feita pelo jornal El País, cerca de 4.000 (quatro mil) pessoas morreram no ano de 2020 apenas em 06 (seis) estados do Brasil enquanto aguardavam leito de terapia intensiva (EL PAÍS, 2020). Tal fato demonstra que em relação às pessoas atingidas pelo coronavírus, o direito à saúde foi limitado ao ponto de impedir que algumas tivessem a oportunidade de receber o tratamento médico-hospitalar que necessitavam, levando várias dessas pessoas a óbito em razão da ineficiência do Estado em garantir o atendimento médico necessário e constitucionalmente assegurado.

Seguindo o raciocínio, é compreensível que deve ser analisada a possibilidade de o Estado concretizar os direitos constitucionais frente às suas limitações de natureza econômica e orçamentária. Por outro lado, também deve ser preservado o Mínimo Existencial, sendo indispensável para a vida o acesso ao tratamento necessário para a saúde.

Diante disso, no contexto da pandemia, o Brasil vivenciou um agravamento da crise de saúde pública já existente no país, no qual se pôde ver de fato a contraposição entre Mínimo Existencial e Reserva do Possível na garantia do direito à saúde.

De um lado, pessoas infectadas pelo coronavírus precisavam de atendimento médico, internação e medicamentos. De outro, o Estado não tinha estrutura hospitalar para atender a demanda crescente. Como resultado, muitas mortes ocorreram em filas de espera, sem sequer, ter o acesso ao atendimento médico necessário.

Com base nisso, a discussão sobre a prevalência da Reserva do Possível em detrimento do Mínimo Existencial durante o ápice da pandemia é de grande relevância. Isso porque o Estado não possuía estrutura médico-hospitalar para atender a demanda de infectados, em razão disso, muitas vidas foram perdidas sem sequer ter acesso ao atendimento médico.

Tendo em vista os dados aqui demonstrados, entende-se que muitas vítimas do coronavírus de fato tiveram seu direito à saúde limitado ou até mesmo negado em alguns casos. Quando essa limitação/negação chega ao ponto de gerar mortes, é evidente que não existe razoabilidade.

Como dito, o direito à saúde é basilar para a manutenção da vida. Em razão disso, para os tribunais superiores, sequer deveria haver alguma limitação em seu exercício, conforme amplamente demonstrado no decorrer do presente trabalho. Ocorre que com a grande demanda por leitos hospitalares e atendimento médico, o Estado não suportou, o que levou a limitação ou até mesmo a negação do acesso ao tratamento adequado.

Com a superlotação do sistema de saúde, as pessoas precisaram entrar em filas para que pudessem receber o atendimento que necessitavam. Ocorre que muitas morriam enquanto aguardavam o atendimento. O que leva a conclusão de que, mais uma vez, a Reserva do Possível e a limitação do Estado prevalecerem sobre o direito à saúde que faz parte do Mínimo Existencial, o que jamais deveria ocorrer no nosso Estado democrático de direito, sobretudo considerando que o Estado brasileiro se obrigou em sua Carta Magna e em tratados internacionais a garantir o amplo acesso ao direito à saúde a todos os brasileiros e residentes no país.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho pôde efetivar seus objetivos de estudar o direito à saúde durante a pandemia e como o referido direito sofreu limitações nesse período em razão da escassez orçamentária do Estado, podendo chegar a relevantes conclusões.

Como fora abordado, o direitos à saúde se estende a todos no Brasil, conforme a Carta Magna garante. Ocorre que existem princípios a serem considerados ao se efetivar direitos para que haja possibilidade de executar da melhor maneira o texto constitucional.

Nesse sentido, com base no estudo feito em relação ao direito à saúde na Constituição Federal e sua limitação com base no Princípio da Reserva do Possível, pode-se concluir que por se tratar de um direito afeto ao núcleo do Mínimo Existencial, não deve sofrer grandes limitações a ponto de tornar inviável o seu exercício.

Como demonstrado, diante da pandemia, muitas pessoas necessitaram de atendimento médico-hospitalar para manutenção da vida. Ocorre que em razão da limitação estatal, muitas perderam a vida sem sequer ter acesso ao atendimento que necessitava.

Diante disso, foi possível chegar à conclusão que o período da pandemia trouxe graves limitações ao direito à saúde, como foi explanado com os dados levantados de pessoas em filas de espera por atendimento médico, leitos de UTI ocupados e o crescente número de internações em decorrência da Covid-19, bem como o elevado número de óbitos ocasionado pelo novo corona vírus.

Portanto, pode-se afirmar que o direito à saúde deve ser oferecido a todos sem que haja limitações que privem o indivíduo de viver com o Mínimo Existencial. Isso porque, conforme exposto, não se pode dispor de um direito tão fundamental à vida, sendo obrigação do Estado fornecer os meios necessários para que a população tenha acesso à saúde.

Por fim, é possível concluir que o direito à saúde durante a pandemia sofreu grandes limitações, principalmente nos períodos de pico dos casos que necessitavam de atendimento médico, pois a lotação hospitalar impedia que todos tivessem acesso. Dessa forma, houve prevalência do Princípio da Reserva do Possível, enquanto que o Princípio do Mínimo Existencial ficou prejudicado com a falta de acesso à saúde no Brasil.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

BRASIL. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Promulgação. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0591.htm> Acessou em 29 de set. 21;

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1824. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm> acessou em 19 de set. 21;

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1891. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao91.htm> Acessou em: 19 de set. 21;

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1934. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm> acessou em 19 de set. 21;

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1937. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao37.htm acessou em: acesso em 20 de set. 21;

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao67.htm> acessou em 20 de set. 21;

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acessou em: 24 de set. 21;

BRASIL. Lei Nº 8.080, De 19 de Setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Brasília, 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm#:~:text=LEI%20N%C2%BA%208.080%2C%20DE%2019%20DE%20SETEMBRO%20DE%201990.&text=Disp%C3%B5e%20sobre%20as%20condi%C3%A7%C3%B5es%20para,correspondentes%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias.&text=Art. Acessou em: 24 de abril de 2021;

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AI 550.530 AgR, rel. min. Joaquim Barbosa, j. 26-6-2012, 2ª T, DJE de 16-8-2012.; disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigobd.asp?item=%201814> acessou em: 15 de set. de 2021;

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AI 734.487 AgR, rel. min. Ellen Gracie, j. 3-8-2010, 2ª T, DJE de 20-8-2010. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigobd.asp?item=%201814> acessou em: 24 de jun. 2021;

BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. AC: 10637100068526001. São Lourenço, Relator: Áurea Brasil, Data de Julgamento: 09/02/2012, Câmaras Cíveis Isoladas / 5ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 24/02/2012. Disponível em: https://tj-mg.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/943776707/apelacao-civel-ac-10637100068526001-sao-lourenco/inteiro-teor-943776904 acessou em: 27 de ago. de 2021;

BRASIL. Tribunal Regional Federal 5ª Região. Processo: 08005633520194058401, Apelação Cível, Desembargador Federal Francisco Roberto Machado, 1ª Turma, Julgamento: 14/05/2020. disponível em: <https://julia-pesquisa.trf5.jus.br/julia-pesquisa/#resultado> Acessou em 15/05/2021;

Coronavírus Brasil. Painel corona vírus. Disponível em: https://covid.saude.gov.br. Acessou em: 13 de out. 2021;

COVID-19: BRASIL TEM 6,3 MIL PACIENTES NA FILA POR LEITOS DE UTI; VEJA DETALHES. Agência O Globo, 2021. Disponível em: <https://saude.ig.com.br/2021-03-26/covid-19--brasil-tem-6-3-mil-pacientes-na-fila-por-leitos-de-uti--veja-detalhes.html> Acessou em: 24/06/2021;

CUNHA, Alexandre Luna da. A Integralidade Do Direito À Saúde Na Visão Do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9044.v20i1p167-184> acessou em: 26 de set. 21;

EL PAÍS. Mais de 4.000 pessoas com covid-19 morreram à espera por um leito de uti em seis estados brasileiros. Pblicação: 2020. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-26/mais-de-4000-pessoas-com-covid-19-morreram-a-espera-por-um-leito-de-uti-em-seis-estados-brasileiros.html> Acessou em 26 de set. 21;

Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico especial 71. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/media/pdf/2021/julho/16/boletim_epidemiologico_covid_71.pdf Acessou em: 13 de out. de 2021;

NUNES JÚNIOR, Flávio Martins Alves. Curso de direito constitucional – 3. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019;

Observatório Covid-19. Boletim extraordinário. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/sites/portal.fiocruz.br/files/documentos/boletim_extraordinario_2021-marco-16-red-red-red.pdf acesso em: 13 de out. de 2021;

OLIVEIRA, Antônio Ítalo Ribeiro. O mínimo existencial e a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/50902/o-minimo-existencial-e-a-concretizacao-do-principio-da-dignidade-da-pessoa-humana> Acesso em 24 de set. 21;

PADILHA, Rodrigo. Direito Constitucional. 6ª edição. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2020;

PAZZIAN, Roberta Mucare; SIMOKOMAKI, Giulia Yumi Zaneti. O princípio da solidariedade e o direito constitucional à saúde em tempos de COVID-19Revista Pensamento Jurídico, v. 14, n. 2, 2020;

SILVA, Michelle Emanuella de Assis. Direito À Saúde: Evolução Histórica, Atuação Estatal E Aplicação Da Teoria De Karl Popper. Revista Constituição e Garantia de Direitos; disponível em: <https://periodicos.ufrn.br/constituicaoegarantiadedireitos/article/download/12251/8480/> Acessou em: 26 de ago. 21;

TELLES, José Cledson Paciência; PEREIRA, Ana Beatriz Ferri. A Efetividade Dos Direitos Sociais Frente Os Entraves Principiológicos: Uma Análise Dos Princípios Da Reserva Do Possível E Do Mínimo Existencial. Disponível em: <http://enpejud.tjal.jus.br/index.php/exmpteste01/article/view/511> acessou em 26 de set. 2021.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VIANA, Eduarda Milhomem. Princípio da reserva do possível e o direito à saúde diante da pandemia do novo coronavírus. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7155, 2 fev. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/97643. Acesso em: 9 maio 2024.