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Lei dos Crimes Cibernéticos e a mudança de atribuição investigativa dos crimes de estelionato mediante transferência bancária

Lei dos Crimes Cibernéticos e a mudança de atribuição investigativa dos crimes de estelionato mediante transferência bancária

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É cômodo para a vítima que a investigação seja na sua cidade. Mas como investigar longe do investigado?

Resumo: O artigo abordará o crime de estelionato mediante transferência de valores, o sujeito desta ação delitógena, o antes e o depois da nova lei de crimes cibernéticos e o que mudou no dia a dia investigativo dos famigerados golpes digitais. O crime de estelionato, sem dúvida, corresponde a parcela significativa dos boletins de ocorrência dos distritos policiais. Diariamente, centenas de pessoas são vitimas da ação de criminosos, que se utilizando de engenharia social, recursos tecnológicos, associado à desinformação e ingenuidade dos seus alvos, acabam por induzi-los, mediante artifício ou outro meio fraudulento, a fornecer vantagem ilícita aos criminosos. Contudo, com o advento da Lei n.º 14.155/21, popularmente conhecida como Lei dos Crimes Cibernéticos, houve a previsão no novel §4 do artigo 70 do Código de Processo Penal que modificou a competência/atribuição para a apuração dos crimes de estelionato, em especial, os realizados mediante a transferência de valores. Antes da alteração legislativa, o entendimento jurisprudencial majoritário, promovido Superior Tribunal de Justiça, entendia que a atribuição investigatória residia no local da conta do beneficiário da transferência fraudulenta, ao passo que, com o advento da supracitada lei, a atribuição para persecução investigativa passou a ser o local do domicílio da vítima, que não raras vezes, consiste em outra cidade/estado. A questão é: será essa alteração legislativa contribuirá para a diminuição do número de golpes, a identificação dos seus agentes e por consequência a punição daqueles que praticam tais delitos? A alteração legal contribuirá para um melhor desempenho do trabalho exercido pela Polícia Judiciária?

Palavras-chave: Estelionato; mudança; atribuição; golpes.


INTRODUÇÃO

O presente artigo analisa, tecnicamente, a alteração legislativa promovida pela Lei n. 14.155/21, que modificou a competência/atribuição investigativa para os crimes de estelionato praticado mediante a transferência de valores. A mudança é positiva para a atividade investigativa, exercida pelos Delegados de Polícia, ou apenas acumulará ocorrências policiais sem resolução e por consequência a impunidade de milhares de estelionatários?

Tal problematização é de suma importância, visto que o legislador, ao modificar a competência/atribuição investigatória, sem dúvida, levou em consideração o conforto da vítima, ou seja, a maior facilidade desta em comparecer na unidade policial, registrar a sua ocorrência e cobrar providências da Autoridade Policial. Contudo, será que especialistas da área, ou seja, policiais civis e/ou principalmente Delegados de Polícia foram instados a se manifestar sobre as consequências de tal alteração e os prejuízos que ela pode ocasionar para a investigação do fato criminoso e posterior punição dos agentes envolvidos?

Quanto a tipologia de pesquisa, será utilizada basicamente pesquisa bibliográfica, dado que consiste na análise doutrinária, jurisprudencial, de resultado de indicadores criminais e de dados coletados sobre o crime de estelionato mediante transferência bancária.

Assim, pretende-se no curso desse artigo, analisar o crime de estelionato, em especial, o praticado mediante transferência bancária, o seu sujeito ativo, a competência/atribuição antes e depois do advento da lei de crimes cibernéticos e se a alteração legislativa culminará em pontos positivos ou negativos para a atividade investigatória e como isso se refletirá na responsabilização criminal dos golpistas.


DO CRIME DE ESTELIONATO MEDIANTE TRANSFERÊNCIA BANCÁRIA.

O Código Penal (CP) prevê no seu artigo 171 o crime de estelionato que consiste em obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício (encenação material mediante uso de objetos ou aparatos aptos a enganar ex: bilhete premiado), ardil (astúcia, conversa enganosa), ou qualquer outro meio fraudulento.

O delito prevê a pena de reclusão, de um a cinco anos de prisão, e multa. Atento ao fato da utilização do meio digital como propulsor na aplicação de golpes, o legislador brasileiro, também por meio da Lei n.º 14.155/2021, criou uma qualificadora, ou seja, uma causa de aumento direto na pena base do delito, prevendo o §2º-A que estabelece:

A pena é de reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa, se a fraude é cometida com a utilização de informações fornecidas pela vítima ou por terceiro induzido a erro por meio de redes sociais, contatos telefônicos ou envio de correio eletrônico fraudulento, ou por qualquer outro meio fraudulento análogo (Brasil, 2021).

Nessa prática delitógena o sujeito ativo, estelionatário, vulgarmente denominado golpista, se utilizando de artifício, ardil ou outro meio, através de rede sociais, contatos telefônicos, correio eletrônico ou qualquer outro, engana a vítima, que acaba por suportar um prejuízo, em favor do criminoso, que obtém uma vantagem, em regra, pecuniária.

Para Rogério Sanches Cunha, o crime necessita de 03 (três) elementos imprescindíveis para a sua existência, qual seja, a fraude, a vantagem ilícita e o prejuízo alheio. Para o autor, a fraude consiste em induzir ou manter a vítima em erro, no primeiro caso, induzimento, o agente cria uma falsa percepção da realidade, ao passo que na manutenção, o criminoso aproveita-se do engano espontâneo da vítima (CUNHA, 2021, 666).

Para Cristian Nedel, é necessário para a configuração do crime de estelionato um quarto elemento nuclear, qual seja, o erro da vítima, que consiste em engano provocado na vítima, falsa percepção de realidade (NEDEL, 2020, 128).

A vítima do delito é a pessoa enganada ou que sofre o prejuízo financeiro, devendo, necessariamente, ser pessoa certa e determinada. Dentre outras características é um crime comum, doloso, material, não admite forma culposa, admite acordo de não persecução penal, admite suspensão condicional do processo e necessita de representação criminal da vítima (condição de procedibilidade necessária para a instauração de inquérito policial e futura ação penal).

O avanço das tecnologias e o cenário de pandemia de COVID-19 intensificou a criação de novos golpes, principalmente os ditos estelionatos digitais, que nos últimos anos tiveram um aumento significativo.

Emanuela de Araújo Pereira (2021, s/p), em artigo publicado em junho de 2021, esclarece que:

A tecnologia vem ao longo dos anos ditando as novas formas de interação da sociedade e transformando as relações interpessoais. O desenvolvimento de inteligências artificiais emerge os seres humanos em um universo cada vez mais interconectado onde os países estão cada vez mais próximos. As ferramentas tecnológicas superaram as barreiras de espaço e tempo e não há como dissociar o homem do século XXI sem o acesso à informação.

Apesar das profundas mudanças trazidas com a informática, a contramão deste avanço é o uso do benefício para a comissão de delitos. Urge então a necessidade de formas de proteção e segurança das informações transmitidas via web, pois os delitos cometidos com artifícios virtuais têm se tornado cada vez mais frequentes a nível mundial.

Pesquisa divulgada pelo G1, em 23/10/2021, informa que o número de estelionatos praticados na cidade de São Paulo cresceu 217% em relação ao ano de 2020. A reportagem acrescenta que dentre as mais de 16 mil ocorrências registradas, 10.828 mil foram por golpes cometidos nas redes sociais e aplicativos de relacionamento e 5.301 por outros meios (G1 SÃO PAULO, 2021).

O site Tribuna do Norte divulgou matéria, em 10/12/2021, informando que o número de ocorrências de estelionato no Rio Grande do Norte, em 2021, triplicou em relação ao mesmo período do ano passado. Ao todo, 16.768 ocorrências foram registradas pela Polícia Civil até o mês de novembro, enquanto que em 2020 foram 5.740. Os dados são da Coordenadoria de Informações Estatísticas e Análises Criminal (Coine/Sesed) (TRIBUNA DO NORTE, 2021).


DO SUJEITO ATIVO E DA ANÁLISE DO GOLPE DO TERCEIRO INTERMEDIÁRIO.

O sujeito ativo é aquele que pratica o crime, que no presente artigo, é o estelionatário, também conhecido por golpista ou 171, é o sujeito que utiliza da lábia/influência para ludibriar as suas vítimas a fim de convencê-las a entregar dinheiro, objetos pessoas, causando-lhes prejuízo financeiro.

O estelionatário não se utiliza da força ou coação para atingir o seu intento, pelo contrário, através da persuasão, falatório, influência, convence a vítima a entregar espontaneamente, a vantagem econômica.

No meu dia a dia profissional como Delegada de Polícia me deparo com todo o tipo de golpes em meio digitais. Infelizmente, esses agentes criminosos, se valendo, principalmente, da ignorância, ingenuidade e desconhecimento das vítimas conseguem auferir altas quantias financeiras todos os dias e quando somadas proporcionam uma vida de luxo e ostentação.

Uma matéria divulgada pela Record TV, em 01/09/2020, presente no site informa que um grupo de estelionatários ostentava uma vida de luxo, bancada pela utilização de dados e identidades de suas vítimas. Em suas redes sociais, os investigados exibiam viagens cercadas por glamour. Segundo a matéria, em um dos endereços mais exclusivos de Cancun, o investigado esbanjou dinheiro com uma garrafa champanhe que custa o equivalente a R$ 8.000,00 (PORTAL R7, 2020). Ainda segundo a reportagem, o autor gastava parte do dinheiro em carros de luxo e motos sofisticadas. De acordo com a polícia em um período de 60 dias, o grupo movimentou R$ 2 milhões em fraudes.

Destaca-se, dentre os golpes mais aplicados no ano de 2021, o golpe do terceiro intermediário, que consiste, basicamente, em cinco fases:

  1. No contato com o anunciante do bem (vítima 1) O estelionatário, ao se deparar com o anúncio da venda de um determinado bem (veículo, motocicleta, celular), em sites de vendas ou redes sociais, entra em contato com o anunciante (vítima 1), através de contato telefônico ou por troca de mensagens, ocasião em que demonstra interesse no bem e solicita informações sobre as suas características.
  2. Do falso anúncio Após o levantamento de informações realizado na etapa 1, o golpista cria um novo anúncio, em sites de vendas ou redes sociais, divulgando o produto como se fosse seu e fornecendo todas as informações sobre o bem, geralmente, com um valor bem atrativo, bem abaixo do valor praticado no mercado, fato que atrai a futura vítima 2;
  3. Da engenharia social Após divulgar o falso anúncio com valores extremamente atrativos, a vítima 2 entra em contato através dos endereços fornecidos (telefone, WhatsApp e outros) e passa a negociar com o estelionatário. Durante a negociação, o criminoso conta uma história fantasiosa, ocasião em que informa que o bem negociado está em posse de algum parente, amigo ou familiar (vítima 1), que a vítima 2 poderá ver o bem, contudo, não poderá comentar nada sobre valores ou negociações, que são estritas ao intermediário.
  4. O golpista utiliza do mesmo artifício/engodo com o anunciante original (vítima 1), ocasião em que informa que um representante/funcionário/familiar (vítima 2) irá encontra-la para ver o bem. Assim, o criminoso marca um encontro entre as vítimas, momento em que a vítima 1 mostra o bem para a vítima 2. No ato as vítimas não conversam pois são influenciadas pelo criminoso a não tratarem de valores.
  5. Após a vítima 2 analisar o bem ofertado e já orientada (ludibriada) pelo estelionatário, por acreditar se tratar do real proprietário do bem, realiza o pagamento da coisa negociada, mediante transferência bancária ou PIX. Passado alguns minutos, o golpista bloqueia a vítima 2, ocasião em que este inicia uma conversa com a vítima 1 e descobre o golpe praticado.

Apesar de parecer um golpe complexo, dado que o estelionatário precisa ludibriar duas vítimas, esse tipo de estelionato tem sido um dos mais frequentes do ano de 2021, principalmente, na venda de veículos automotores seminovos, gerando prejuízos significativos para as vítimas que depositam valores na conta fornecida pelo criminoso. Essa espécie de golpe foi descrita com o fim de esclarecer as consequências investigativas antes e após o advento da Lei n. 14.155/21 e o que mudou na competência/atribuição investigatório da Autoridade Judicial.


DA COMPETÊNCIA/ATRIBUIÇÃO ANTES DA LEI N.º 14.155/21.

Antes do advento da Lei n.º 14.155/21, a terceira seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) detinha entendimento de que no estelionato mediante depósitos bancários a obtenção da vantagem ilícita ocorria apenas quando o agente se apossava do dinheiro, ou seja, na cidade da conta beneficiária.

1. Nos termos do art. 70 do CPP, a competência será de regra determinada pelo lugar que se consumou a infração e o estelionato, crime tipificado no art. 171 do CP, consuma-se no local e momento em que é auferida a vantagem ilícita. De se lembrar que o prejuízo alheio, apesar de fazer parte do tipo penal, está relacionado a consequência do crime de estelionato e não à conduta propriamente. De fato, o núcleo da tipo penal é obter vantagem ilícita, razão pela qual a consumação se dá no momento em que os valores entram na esfera de disponibilidade do autor do crime, o que somente ocorre quando o dinheiro ingressa efetivamente em sua conta corrente 2. Há que se diferenciar a situação em que o estelionato ocorre por meio de saque (ou compensação) de cheque clonado, adulterado ou falsificado, da hipótese em que a própria vítima, iludida por ardil, voluntariamente, efetua depósito e/ ou transferências de valores para a conta corrente do estelionatário. Quando se está diante de um estelionato cometido por meio de cheques adulterados ou falsificados, a obtenção da vantagem ilícita ocorre no momento em que o cheque é sacado, pois é nesse momento que o dinheiro sai efetivamente da disponibilidade da entidade financeira sacada para, em seguida, entrar na esfera de disposição do estelionatário. Em tais casos entende-se que o local da obtenção da vantagem ilícita é aquele em que se situa a agência bancária onde foi sacado o cheque adulterado, seja dizer, onde a vítima possui conta bancária. Já na situação em que a vítima, induzida em erro, se dispõe a efetuar depósitos em dinheiro e/ou transferências bancárias para conta de terceiro (estelionatário), a obtenção da vantagem por certo ocorre quando o estelionatário efetivamente se apossa do dinheiro, seja dizer, no momento em que ele é depositado em sua conta. (...)3. Tendo a vítima efetuado um depósito em dinheiro e duas transferências bancárias para duas contas correntes vinculadas para agências bancárias situadas na cidade de São Bernardo do Campo/SP, é de reconhecer a competência do juízo de direito de São Bernardo do Campo/SP para conduzir o inquérito policial. 4. Conflito conhecido, para declarar a competência da 5º Vara Criminal de São Bernardo do Campo/SP, o suscitado (STJ, 2019a).

Assim, o STJ no informativo 663, de 14 de fevereiro de 2020, firmou a tese de que na hipótese em que o estelionato se dá mediante vantagem indevida, auferida mediante o depósito em favor de conta bancária de terceiro, a competência deverá se declarada em favor do juízo no qual se situa a conta favorecida. (STJ, 2019)

Ora, se a competência para julgamento do estelionato cometido mediante depósitos/transferências bancárias era do juízo do local da conta beneficiária, a atribuição para a conduzir a investigação também era alterada, ou seja, cabia a autoridade policial do local da conta beneficiária conduzir as investigações do crime com o fim de juntar elementos informativos que indicassem a ocorrência do delito e a sua autoria.

A vítima não se esconde, o estelionatário sim. Essa máxima faz toda diferença na apuração dos crimes de estelionato. Clarificando a frase, imaginemos que a vítima tenha sofrido o golpe de estelionato mediante transferências bancárias na cidade de Aparecida de Goiânia, interior do Estado de Goiás, ocasião em que depositou valores para uma conta beneficiária situada na cidade de Gramado Rio Grande do Sul, ao perceber que havia sido vítima de um golpe, procura o distrito policial mais próximo da sua residência, registra o boletim de ocorrência do fato e após análise da autoridade policial, já prestava suas declarações sobre o crime e juntava outras informações que pudessem subsidiar a continuidade das investigações. Assim, o Delegado de Polícia deste distrito, mediante despacho, fundamentava a ausência de atribuição para conduzir as investigações, dado que o local da conta beneficiária era a cidade de Gramado Rio Grande do Sul e remetia o registro de ocorrência com seus anexos à delegacia de polícia competente.

Volto a máxima de que a vítima não se esconde, o estelionatário sim. Isto porque, a partir dos elementos informativos iniciais fornecidos pelo Delegado de Polícia do Estado de Goiás, a Polícia Judiciária do local da conta beneficiária, Polícia Civil do Rio Grande do Sul, poderá adotar providências para identificar, localizar e responsabilizar o estelionatário detentor da conta na sua região geográfica, fato que em tese, contribui para uma maior efetividade investigatória, pelo menos, esse era o entendimento delineado pelo STJ para fixação de competência e por consequência na atribuição investigativa.

Agora imagine se a atribuição investigativa, no exemplo fictício criado, fosse da Polícia Judiciária do Estado de Goiás, distante 1979 quilômetros da cidade de Gramado? Imagine agora que esse caso é apenas um, dentre uma dezena de registros de estelionatos, fora outros crimes, recebidos todos os dias? Imagine agora o reduzido número de profissionais e as deficiências estruturais enfrentadas pela unidade policial?

O entendimento jurisprudencial dominante (STJ), que pregava que a competência/atribuição investigativa dos crimes de estelionato mediante depósitos bancários/transferências era do local da conta beneficiária, foi radicalmente alterado pela Lei dos Crimes Cibernéticos, mudança que será devidamente abordada no capítulo seguinte.


DA COMPETÊNCIA/ATRIBUIÇÃO APÓS A LEI N.º 14.155/21.

A Lei n.º 14.155/2021, de 27 de maio de 2021, promoveu alterações no CP com o fim de tornar mais grave os crimes de violação de dispositivo informático, furto e estelionato cometidos de forma eletrônica ou pela internet e no CPP para definir a competência em modalidades do crime de estelionato.

Para a finalidade do presente artigo, faz-se necessário citar as alterações promovidas pela Lei de Crimes Cibernéticos, em especial a inserção do §2º-A do Artigo 171 do CP (Fraude Eletrônica) e do §4 do Art. 70 do CPP, que estabelecem, respectivamente, uma forma qualificada do crime de estelionato e uma regra de competência, senão vejamos:

Fraude eletrônica

§ 2º-A. A pena é de reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa, se a fraude é cometida com a utilização de informações fornecidas pela vítima ou por terceiro induzido a erro por meio de redes sociais, contatos telefônicos ou envio de correio eletrônico fraudulento, ou por qualquer outro meio fraudulento análogo.

§ 4º Nos crimes previstos no art. 171 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), quando praticados mediante depósito, mediante emissão de cheques sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado ou com o pagamento frustrado ou mediante transferência de valores, a competência será definida pelo local do domicílio da vítima, e, em caso de pluralidade de vítimas, a competência firmar-se-á pela prevenção. (COMO CITAR? NÃO ESQUECER DE INSERIR ABAIXO).

O §2-A do Art. 171 do CP estabelece uma forma qualificada do crime de estelionato. Com o nomen iuris de fraude eletrônica a nova previsão recrudesce a pena do caput, reclusão de 1 a 5 anos, para o patamar de reclusão de 4 a 8 anos.

Essa qualificadora pretende abarcar os estelionatos cometidos através das redes sociais, por meio de contatos telefônicos, envio de correios eletrônicos ou qualquer outro meio fraudulento análogo (ex: criação de sites falsos). Essa inovação legislativa pretende desestimular a utilização de canais de tecnologia no cometimento do delito, fato que cresceu drasticamente nos últimos anos, conforme abordado.

Nas palavras de Márcio Alberto Gomes Silva (2021, 227), competência pode ser definida como a medida de jurisdição, entendida como poder dever estatal de aplicar o direito objetivo ao caso concreto apresentado, com o fito de estabelecer a paz social abalada pelo conflito de interesses.

Até o advento do §4 do Art. 70 do CPP, o crime de estelionato mediante depósitos/transferências bancárias, aplicava o entendimento jurisprudencial majoritário do STJ, que entendia que o local de consumação dessa prática delitógena era o lugar de consumação da infração, ou seja, correspondia a circunscrição da agência bancária beneficiária.

Contudo, com a inserção dessa alteração, houve uma verdadeira reação legislativa, também denominada Ativismo Congressual ou Efeito Backslash, na regra de estabelecimento de competência do crime de estelionato praticado mediante depósito, emissão de cheques sem previsão de fundos ou com pagamento frustrado ou mediante transferência de valores, que deixou de ser o local da agência beneficiária do pagamento realizado (Informativo 663 STJ) e passou a ser, necessariamente, o local do domicílio da vítima e, em caso de pluralidade de vítimas, firmar-se-á pela prevenção.

Ora, com o advento da Lei de Crimes Cibernéticos, cai por terra toda a construção jurisprudencial realizada pela Corte da Cidadania, devendo ser aplicado a vontade do legislador ordinário que, sem dúvida, oferece uma comodidade a vítima de estelionato desse tipo de modalidade, que estará mais próxima da unidade policial com circunscrição para a apuração do fato. Mas será que isso é interessante para a investigação e futura ação penal? Será que especialistas da área, em especial, Delegados de Polícia foram instados a se manifestar sobre essa importante alteração legislativa? Será que as dificuldades investigatórias foram levadas em consideração na hora de prever essa nova regra de competência que caminha na contramão do entendimento jurisprudencial dominante?


DOS PONTOS POSITIVOS E NEGATIVOS DA INOVAÇÃO LEGISLATIVA

Para Joaquim Leitão Júnior (2022, 08), o delegado de polícia é:

Como se sabe, na moderna concepção investigativa, o Delegado de Polícia é o presidente da investigação e não tem interesse em atuar, em prol da parte investigada (suspeito/acusado/investigado) e nem em prol do Ministério Público (dominis littis), mas sim de buscar a verdade possível (antiga verdade real), com seus reflexos

A autoridade policial, sem dúvida, é um importante ator no cenário jurídico atual. Por ser o presidente das investigações conduzidas pela Polícia Judiciária, também conhecida como Polícia Investigativa, cabe ao Delegado de Polícia conduzir todas as investigações do Estado Investigação, fornecendo ao dominus da ação penal, Ministério Público, nos casos de ação penal pública incondicionada ou condicionada a representação e ao particular, nos casos de ação penal privada, elementos informativos que são fundamentais na futura ação penal correspondente.

Essa peculiar autoridade possui a missão precípua de presidir o inquérito policial e outros procedimentos investigativos que, nas palavras de Márcio Alberto Gomes Silva (CPP para carreiras policiais) correspondem a instrumentos hábeis à elucidação de fato supostamente criminoso e a coleta de elementos de convicção suficientes para a deflagração de um futuro processo penal (2021, 53).

Para Nestor Távora e Romar Rodrigues Alencar (CPP para carreiras policiais), com a ocorrência da infração é salutar que se investigue com o fito de colidir elementos que demonstrem a autoria e a materialidade do delito, viabilizando-se o início da ação penal (2021, 53).

Ora, o crime de estelionato passou a ser condicionado a representação da vítima, alterando a natureza da sua ação penal, que passou a ser pública condicionada com o advento da Lei n.º 13.964/2019. Assim, havendo representação criminal da vítima, ou seja, o preenchimento da condição de procedibilidade para a instauração de inquérito policial e prosseguimento da futura ação penal, cabe a Autoridade Policial, ou seja, ao Delegado de Polícia instaurar inquérito policial para apurar o cometimento do crime e identificar a sua autoria a fim de possibilitar elementos para uma futura punição estatal através da ação penal respectiva.

Ditas tais palavras, a alteração promovida pela Lei dos Crimes Cibernéticos, especificamente a inserção do §4 do art. 70 do CPP, que criou uma nova regra de competência e, por consequência, modificou a circunscrição policial de atuação investigatória dos Delegados de Polícia, constituiu uma verdadeira reviravolta na condução de procedimentos investigatórios pelas Polícias Judiciárias do Estado Brasileiro.

Como explicitado, antes da alteração legal, aplicava-se o entendimento jurisprudencial do STJ, que reconhecia a competência (atribuição investigativa), nos crimes de estelionato mediante depósitos/transferências bancárias, ao local da agência beneficiária da transação, fato que mudou drasticamente com a novel alteração legislativa que impõe como competente a área do domicílio da vítima.

Conforme já citado, essa alteração corresponde, sem dúvida, a uma maior facilidade de cobrança por parte da vítima, que após o registro da ocorrência, poderá, a qualquer momento, se deslocar até a unidade policial responsável, com o fim de cobrar providências em relação a investigação do crime a qual foi padecedor.

Contudo, tal alteração, prejudicou em muito, o objetivo principal de qualquer investigação promovida pela Polícia Judiciária, qual seja, angariar elementos informativos que comprovem a materialidade delitiva e identifiquem a autoria criminosa. Ora, na grande maioria dos casos, os beneficiários das contas utilizadas para depósitos/transferências bancárias residem em outras cidades/estados, distantes milhares de quilômetros da residência da vítima, fato que prejudica de forma significativa a condução das investigações.

A frase a vítima não se esconde, o investigado sim, corresponde a uma verdade no desenrolar de investigações de estelionatos. Tais criminosos correspondem a parcela mais inteligente e astuta do cenário delitógeno. A utilização de contas de laranja para o recebimento de valores, o uso de linhas telefônicas ativadas em nome de terceiros, a criação de sites falsos com impossibilidade de rastreio, entre outras técnicas, torna a investigação do crime de estelionato um dos mais desafiadores para a Polícia Judiciária.

Somado a isso, a distância física entre a unidade policial e o local de apuração do fato, no caso, agência recebedora do depósito/transferência bancária, provável local de residência do golpista, torna ainda mais difícil esse trabalho investigativo.

É claro que a autoridade policial poderá contar com a utilização de uma importante ferramenta no cumprimento de diligências que devem ser efetuadas em outras cidades/estado, qual seja, a carta precatória. Contudo, a realidade, infelizmente, é mais temerária que no mundo da teoria. No universo de cobranças que consomem a Autoridade Policial o cumprimento de cartas precatórias de outros lugares acaba tendo uma atenção pouco prioritária, que somada a escassez de profissionais, resta por prejudicar o andamento das investigações policias dos crimes de estelionato.


DA CONCLUSÃO

Assim, frente aos argumentos apresentados, entendo que a alteração de competência promovida pela Lei de Crimes Cibernéticos, especificamente, o §4 do art. 70 do CPP, apesar de oferecer uma maior comodidade para a vítima, corresponde a um retrocesso para a apuração do crime de estelionato mediante depósitos/transferências bancárias, fato que poderá prejudicar as ações penais de tais crimes e culminar na impunidade de golpistas.

A alteração legislativa não contou com o auxílio técnico necessário na sua confecção, se assim tivesse ocorrido, sopesaria o já consolidado entendimento jurisprudencial do STJ sobre a matéria, bem como levaria em consideração, entidades de classe que representam a figura do Delegado de Polícia, importante protagonista na elucidação de práticas criminosas.

Por fim, a alteração legislativa, como dito, prejudicou em muito a investigação desse tipo de estelionato, conforme as justificativas já expostas, fato que resultará na impunidade e, ao contrário do objetivo da lei, poderá intensificar o cometimento de tais delitos frente as dificuldades enfrentadas para a investigação de tais crimes.


REFERÊNCIAS

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ESTELIONATÁRIOS que levam vida de luxo são presos em São Paulo. Portal R7, São Paulo, 01 set. 2020. Disponível em: https://noticias.r7.com/sao-paulo/estelionatarios-que-levavam-vida-de-luxo-sao-presos-em-sp-01092020.

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SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA - CC: 167025. RS 2019/0201970-6, Relator: Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, Data de Julgamento: 14/08/2019, S3 - TERCEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 28/08/2019 RSDPPP vol. 119 p. 126. 2019a.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA - CC: 169053. DF 2019/0317771-7, Relator: Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Data de Julgamento: 11/12/2019, S3 - TERCEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 19/12/2019, 2019b.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BATISTA, Luiza Veneranda Pereira. Lei dos Crimes Cibernéticos e a mudança de atribuição investigativa dos crimes de estelionato mediante transferência bancária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6778, 21 jan. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/96052. Acesso em: 15 maio 2024.