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Interpretação da lei

Interpretação da lei

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Toda lei, por mais clara que seja, deve ser necessariamente interpretada.

Interpretação é a atividade mental que procura estabelecer o conteúdo e o significado contido na lei.

A ciência que disciplina e orienta a interpretação das leis é chamada de hermenêutica jurídica.

Toda lei, por mais clara que seja, deve ser necessariamente interpretada. Sobremais, a clareza só aflora após uma interpretação.

O objeto da interpretação é a busca da vontade da lei, e não do legislador. Uma vez promulgada, a lei desvincula-se do pensamento daqueles que a elaboraram.


FUNÇÕES DA INTERPRETAÇÃO

As funções da interpretação são:

a) viabilizar a aplicação da norma jurídica ao caso concreto. Qualquer lei, seja clara ou ambígua, submete-se a um processo de interpretação para só depois ser aplicada.

b) adaptar a lei à realidade atual, fazendo com que ela se desvencilhe do contexto social que lhe deu origem, quando este tornar-se arcaico.

c) amenizar o eventual rigor excessivo da lei, temperando o seu alcance para que possa atender aos fins sociais e às exigências do bem comum, conforme preceitua o art. 5º da LINDB.

Os fins sociais e o bem comum nada mais são do que a própria ética da vida em comunidade, compreendendo o modelo ético do comportamento humano social.

A expressão fins sociais refere-se aos fins do direito que o intérprete deve encontrar embutidos na lei. O bem comum, por sua vez, é o fim da vida social, isto é, os fins que inspiram a elaboração da lei. Portanto, o intérprete deve procurar desvendar as duas finalidades contidas na lei, isto é, a finalidade do Direito e a finalidade da vida social


INTERPRETAÇÃO QUANTO AO SUJEITO

Quanto ao sujeito que a realiza, a interpretação pode ser: autêntica, doutrinária e judicial.

Interpretação autêntica ou legislativa é a que emana do próprio legislador, quando edita uma norma com o objetivo de esclarecer o conteúdo de outra lei. É a chamada lei interpretativa. Essa interpretação tem força obrigatória. Exemplos: o conceito de causa (art. 13 do CP) e o conceito de funcionário público (art. 327 do CP). A interpretação autêntica pode ser:

a) interpretação contextual: é a que se realiza no próprio texto da lei;

b) interpretação posterior: ocorre quando a lei interpretativa surge depois da lei interpretada.

A lei interpretativa posterior tem eficácia retroativa (ex tunc), só não abrange os casos definitivamente julgados. A lei interpretativa não cria situação nova; ela simplesmente torna obrigatória uma exegese que o juiz, antes mesmo de sua promulgação, já podia adotar.

Não há qualquer discrepância na doutrina no sentido de que a lei interpretativa posterior retroage até a data da entrada em vigor da lei interpretada.

Interpretação doutrinária ou científica é a oriunda da doutrina, isto é, dos teóricos do direito penal. Não tem força obrigatória.

Interpretação judicial ou jurisprudencial é a realizada pelos magistrados na decisão do caso concreto. Não tem força obrigatória, salvo para o caso concreto, quando a sentença que a adotou transitar em julgado. É também obrigatória, vinculando todos os magistrados, a decisão do STF declarando a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da lei, no controle por via de ação direta. Já no controle por via de exceção, uma vez declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF, a lei só perde a eficácia quando o Senado, por resolução, suspender sua aplicação.

Por outro lado, ingressou no ordenamento jurídico pátrio o polêmico instituto da súmula vinculante do STF. Com efeito, dispõe o art. 103-A da EC n. 45/2004 que o Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública, direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.

No § 1º dispõe que a Súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a Administração Pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.

O § 2º estabelece que sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação de inconstitucionalidade.

E em seu § 3º diz que do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável, ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.

A Exposição de Motivos do Código Penal não é interpretação autêntica, pois não é lei. É uma simples interpretação doutrinária. Não tem, portanto, força obrigatória.


INTERPRETAÇÃO QUANTO AOS MÉTODOS

A interpretação é um processo unitário, desenvolvido, sucessivamente, por dois métodos: o gramatical e o lógico.

A interpretação gramatical ou literal prende-se à análise sintática das palavras, esclarecendo se o termo foi empregado no sentido vulgar. De acordo com o art. 5º da LINDB, na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

A interpretação teleológica, na busca do verdadeiro escopo da lei, serve-se dos seguintes elementos:

a) Histórico: analisa a realidade social existente ao tempo da promulgação da lei, bem como os trabalhos, discussões e debates que a antecederam. Todavia o que importa é o significado atual da norma, e não o seu sentido pretérito.

b) Sistemático: analisa a coerência entre a lei interpretada e os outros dispositivos legais, buscando extrair uma harmonia entre ela e a ordem jurídica como um todo. Confronta-se a lei interpretada com as outras, procurando harmonizá-la com o sistema jurídico. Uma lei não deve ser interpretada isoladamente, mas, em conjunto com as demais. Nessa interpretação, a rubrica, isto é, o nomen juris do delito, acaba exercendo importante papel.

c) Direito comparado: analisa a interpretação dada pelo direito estrangeiro sobre uma lei semelhante à nacional.

d) Extrajurídico: analisa o significado do termo à luz de outras ciências diversas do direito, medicina, filosofia, química etc. Exemplos: as expressões doença mental (psiquiatria) e veneno (química).


INTERPRETAÇÃO QUANTO AO RESULTADO

Quanto ao resultado ou conclusão obtida, a interpretação pode ser: declarativa, extensiva, restritiva e ab-rogante.

Interpretação declaratória é a que apresenta coincidência entre o texto e a vontade da lei. É uma interpretação normal, sem tropeços; nada há a suprimir ou acrescentar.

Interpretação extensiva é a que amplia o texto da lei, adaptando-o à sua real vontade. Ocorre quando a lei disse menos do que queria dizer (minus dixit quam voluit). Na interpretação extensiva, o fato está implicitamente previsto no texto da lei. É admissível o seu emprego até mesmo nas normas penais incriminadoras. Aplicam-se, para justificar a interpretação extensiva, os argumentos da lógica dedutiva:

a) argumento a fortiori: se a lei prevê um caso deve estendê-la a outro caso em que a razão da lei se manifeste com maior vigor;

b) argumento a maiori ad minus: o que é válido para o mais deve também ser válido para o menos;

c) argumento a minori ad maius: o que é proibido para o menos é proibido para o mais.

Interpretação restritiva é a que diminui a amplitude do texto da lei, adaptando-o à sua real vontade. A lei disse mais do que queria dizer (plus dixit quam voluit).

Interpretação ab-rogante é aquela em que, diante da incompatibilidade absoluta e irredutível entre dois preceitos legais ou entre um dispositivo de lei e um princípio geral do ordenamento jurídico, conclui-se pela inaplicabilidade da lei interpretada.


INTERPRETAÇÃO PROGRESSIVA

Interpretação progressiva, também chamada adaptativa ou evolutiva, é a que amolda a lei à realidade atual. Na verdade, toda interpretação deve ser progressiva, sob pena de a lei desvirtuar-se dos fins sociais e das exigências do bem comum.

É claro que a interpretação evolutiva não é direito livre. Com efeito, o juiz não pode criar normas jurídicas; veda-lhe o princípio da separação dos Poderes. O intérprete, porém, deve adaptar os termos da lei às concepções atuais.


MECANISMOS DE INTEGRAÇÃO DO ORDENAMENTO JURÍDICO

De acordo com o princípio da indeclinabilidade da jurisdição, o juiz é obrigado a decidir, ainda que não haja lei disciplinando o caso concreto.

Diante da lacuna, isto é, ausência de lei regulando determinada situação jurídica, torna-se necessário ao magistrado valer-se dos mecanismos de integração do ordenamento jurídico, que são a analogia, os costumes, os princípios gerais do direito e a equidade.

É certo, pois, que o art. 4º da LINDB não se refere à equidade.

Todavia, caso os outros mecanismos de integração sejam insuficientes, outra saída não há a não ser solucionar a lide pela equidade.


ANALOGIA

O legislador não poderia prever, de antemão, todas as hipóteses passíveis de ocorrência na vida real. É, pois, natural que a lei contenha lacunas.

Na ausência, ou lacuna da lei, surgem os mecanismos de integração do ordenamento jurídico: analogia, costumes, princípios gerais do direito e equidade.

O direito não tem lacunas porque ele não se expressa apenas através da lei. Esta, sim, pode ser lacunosa e até ausente na disciplina do caso concreto.

Analogia, costumes, princípios gerais do direito e equidade são outras formas de expressão do direito, aplicáveis somente na ausência ou lacuna da lei.

Efetivamente, dispõe o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil:

Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.

A integração da lei penal, porém, só acontece no campo das normas não incriminadoras, que beneficiam o réu. O nullum crimen, nulla poena sine lege impede que, na ausência ou lacuna da lei, o delito seja criado pela analogia, costumes ou princípios gerais do direito.

A analogia é a aplicação, ao caso não previsto em lei, de lei reguladora de caso semelhante.

Não se trata de mera interpretação da lei, mas, sim, de um mecanismo de integração do ordenamento jurídico.

O fundamento da analogia é o argumento pari ratione, da lógica dedutiva, segundo o qual para a solução do caso omisso aplica-se o mesmo raciocínio do caso semelhante.


ESPÉCIES DE ANALOGIA

A doutrina ainda costuma distinguir a analogia em: legal e jurídica. A primeira aplica, ao caso omisso, lei que regula caso semelhante. A segunda aplica, ao caso omisso, um princípio geral do direito. A analogia jurídica distingue-se da aplicação direta do princípio geral do direito. Com efeito, na analogia jurídica, aplica-se, ao caso não previsto em lei, um princípio geral do direito que rege caso semelhante. Já o princípio geral do direito é aplicado diretamente ao caso omisso.


NORMAS QUE NÃO ADMITEM ANALOGIA

Não admitem o emprego da analogia:

a) leis restritivas de direito: são as que proíbem certa conduta. Por força do princípio da legalidade, previsto no art. 5º, inc. II, da CF, o que não for proibido por lei é permitido, vedando-se, por consequência, a analogia.

b) leis excepcionais: são as que regulam de modo contrário à regra geral. A capacidade civil, por exemplo, é uma regra geral, sendo, pois, presumida. As exceções, vale dizer, os casos de incapacidade, encontram-se nos arts. 3º e 4º do CC, cujos róis não podem ser ampliados por analogia. Com efeito, o pressuposto da analogia é a lacuna da lei, isto é, a ausência de lei que regule determinada situação jurídica. No caso, não há falar-se em lacuna, porquanto as situações não elencadas na lei excepcional encontram-se automaticamente abrangidas pela norma geral.

c) leis administrativas: são as que disciplinam a atividade administrativa do Estado. O direito administrativo é regido pelo princípio da legalidade, segundo o qual o administrador público só pode fazer aquilo que a lei o autoriza, de forma expressa ou implícita. Administrar é, portanto, cumprir a lei. Se a lei não autoriza é porque o fato é proibido, razão pela qual torna-se inviável o emprego da analogia.


COSTUMES

Costume é a repetição da conduta, de maneira constante e uniforme, em razão da convicção de sua obrigatoriedade. O costume requer dois elementos: o objetivo (repetição do comportamento) e o subjetivo (convicção de sua obrigatoriedade).

A norma costumeira, que também é norma jurídica, pois é uma das formas de manifestação do direito, não surge ex abrupto, e, sim, paulatinamente, à medida que o povo vai tomando consciência de sua necessidade jurídica.

No Brasil, há o predomínio da lei escrita sobre a norma consuetudinária. E, no aspecto penal, o costume nunca pode ser empregado para criar delitos ou aumentar penas. Sua intromissão nesse campo, que é restrito à lei, é barrada pelo princípio da reserva legal.

Os costumes distinguem-se em:

d) Costume secundum legem: é o que auxilia a esclarecer o conteúdo de certos elementos da lei .

e) Costume contra legem ou negativo: é o que contraria a lei.

f) Costume praeter legem: é o que supre a ausência ou lacuna da lei. É o chamado costume integrativo.

Acrescente-se ainda que os costumes auxiliam na análise dos chamados standard jurídico. De acordo com Limongi França, standard jurídico é o critério básico de avaliação de certos preceitos jurídicos indefinidos, variáveis no tempo e no espaço, como, por exemplo, a noção de castigar imoderadamente o filho a que faz menção o art. 1638, inc. I, do CC.

Finalmente, o costume judiciário ou jurisprudência é o conjunto de decisões judiciais no mesmo sentido, prolatadas de maneira uniforme e constante. Nem toda decisão judicial constitui jurisprudência. Esta não se confunde com ato jurisprudencial particularmente considerado. Urge, para caracterização da jurisprudência, que a decisão se repita de maneira uniforme e constante. No Brasil, em regra, a jurisprudência não tem valor vinculante, de modo que o magistrado pode afastar-se de sua orientação. Em certos casos, porém, a decisão judicial tem efeito vinculante, aplicando-se, a outros casos concretos. Refiro-me às seguintes hipóteses:

g) lei declarada inconstitucional em ação direta de inconstitucionalidade movida perante o STF. Nesse caso, todos os magistrados devem observar essa decisão, abstendo-se de aplicar essa lei.

h) lei declarada constitucional em ação declaratória de constitucionalidade movida perante o STF.

i) decisões normativas da Justiça do Trabalho acerca dos dissídios coletivos.

j) juízo de admissibilidade dos recursos. Com efeito, dispõe o art. 557 do CPC que o relator negará seguimento a recurso que confronta com súmula ou jurisprudência dominante do respectivo Tribunal.

k) súmula vinculante do STF. Com efeito, dispõe o art. 103-A da EC n. 45/2004 que o Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. No § 1º dispõe que a Súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica. O § 2º estabelece que sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação de inconstitucionalidade. E em seu § 3º que do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.


PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO

Divergem os juristas em torno do que se deve entender por princípios gerais do direito. De acordo com Serpa Lopes, os critérios propostos pela doutrina são os seguintes:

l) os princípios gerais do direito são os relacionados ao próprio direito de cada país;

m) os princípios gerais do direito são os provindos do direito natural, ensinados pela ciência, admitidos pela consciência geral como preexistentes a toda lei positiva;

n) os princípios gerais do direito são os princípios de equidade;

o) os princípios gerais do direito são os preceitos básicos do direito romano. Esses princípios são: viver honestamente; não lesar o próximo; dar a cada um o que é seu.

A nosso ver, princípios gerais do direito são os postulados que compõem o substractum comum a diversas normas jurídicas. São as premissas éticas que inspiram a elaboração das normas jurídicas.

Vejamos alguns exemplos de princípios gerais do direito: ninguém pode transferir mais direitos do que tem; ninguém pode invocar a própria malícia; ninguém deve ser condenado sem ser ouvido etc.


EQUIDADE

O direito não se restringe ao complexo de leis, e sim ao complexo de normas jurídicas que disciplinam a vida em sociedade. A lei é a forma escrita de expressão de direito. Na sua falta, o direito se projeta através de outras formas de expressão, quais sejam, a analogia, os costumes, os princípios gerais do direito e a equidade.

Na sua essência, como salienta Miguel Reale, a equidade é a justiça bem aplicada, ou seja, prudentemente aplicada ao caso. Não se deve dissociá-la do direito, pois é uma das suas formas de expressão, completando-o, seja como valor interpretativo subordinado à lei, seja ditando a regra de conduta de um caso particular não previsto em lei.

Não obstante a sua relevante importância em face do Direito, a Lei de Introdução ao Código Civil, ao referir-se aos mecanismos de integração do ordenamento jurídico, não fez menção expressa à equidade. A Constituição Federal também é silente. Não seguiu a orientação da Constituição de 1934, que, no art. 113, n. 37, dispunha que nenhum juiz deixará de sentenciar por motivo de omissão na lei. Em tal caso deverá decidir por analogia, pelos princípios gerais de direito e por equidade.

No plano jurídico, a equidade tem três funções:

p) na elaboração das leis;

q) na aplicação do direito;

r) na interpretação das leis.

Seu conceito varia, conforme a função assumida, embora na essência a equidade seja sempre uma forma de justiça.


A EQUIDADE NA ELABORAÇÃO DAS LEIS

A equidade em sua função de elaboração das leis confunde-se com a idéia de justiça, tendo em vista que as leis são genéricas e a justiça também. Essa função de equidade é dirigida ao legislador. Este, na elaboração das leis, deve inspirar-se no senso de justiça, atento às necessidades sociais e ao equilíbrio dos interesses.


A EQUIDADE E A APLICAÇÃO DO DIREITO

Na função de aplicação do direito, equidade significa a norma elaborada pelo magistrado para o caso concreto como se fosse o legislador. Cumpre relembrar o conceito de Aristóteles, segundo o qual equidade é a norma que o legislador teria prescrito para um caso concreto.

Não se pense, porém, que o magistrado possa elaborar uma norma específica para o caso concreto em colidência com a norma legal. Semelhante raciocínio consagraria o conflito entre a equidade e o direito positivo, desprestigiando as normas legais.

A lei, não obstante as suas deficiências, deve ser prestigiada e respeitada, porque é ela que dá sentido às instituições, representando um papel essencial à segurança jurídica. Não se deve, portanto, admitir a equidade contra legem, a menos que a própria lei a autorize expressamente.

Por outro lado, na hipótese de lacuna da lei, a equidade como aplicação do direito, consistente na norma elaborada pelo magistrado para solucionar o caso concreto, é perfeitamente admissível na área penal, desde que em benefício do réu. Assim, o juiz pode elaborar a norma de equidade, desde que presentes os seguintes requisitos:

s) que o fato não esteja previsto em lei, isto é, que haja uma lacuna na lei;

t) que não seja possível suprir a lacuna pela analogia, costumes e princípios gerais do direito.

A despeito de o art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil não se referir à equidade, urge reconhecer que ela pode também funcionar como a ultima ratio dos mecanismos de integração do ordenamento jurídico. Com efeito, o princípio da obrigatoriedade ou indeclinabilidade da jurisdição ordena que o juiz decida o caso concreto, ainda que não previsto em lei. O juiz não pode escusar-se de decidir. Se, diante da ausência da lei, for inviável a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito, o magistrado, para fazer valer o princípio da obrigatoriedade da jurisdição, deve inspirar-se na equidade e elaborar a norma para o caso concreto.

Ao elaborar a dita norma não há qualquer violação ao princípio da separação dos poderes, pois o magistrado não está exercendo a função de legislador. Norma legal e norma de equidade distinguem-se nitidamente. A norma legal, isto é, a lei, é genérica e obrigatória para todos os casos. A norma de equidade é individual, específica para o caso concreto. Como se vê, não se trata de lei, de modo que não há afronta ao princípio da separação dos poderes.

Além disso, a equidade não é extraída de sentimentos pessoais e emotivos do magistrado, e muito menos de convicções ideológicas, que só caracterizariam uma equidade cerebrina, isto é, uma falsa equidade. A norma de equidade deve ser fruto de um raciocínio jurídico universal. Deve ser obra de um trabalho científico. A norma há de ser elaborada com base nos princípios jurídicos existentes. A rigor, a norma já existe em estado latente, competindo ao magistrado apenas descobri-la, e não propriamente criá-la.


A EQUIDADE NA INTERPRETAÇÃO DAS LEIS

A equidade como elemento interpretativo da lei é perfeitamente admissível. Como ensina Serpa Lopes, não se golpeia o Direito positivo, não se abre a menor brecha na norma, cuja essência é respeitada, mas simplesmente esta, ao sopro vivificador da equidade, recebe nova coloração, rejuvenesce mais adaptada às exigências da vida. Trata-se de um movimento natural de interpretação, movimento científico que prescinde do lastreamento de uma autorização legal.

A equidade, na sua função de interpretar as leis, tem o significado de amenização do vigor excessivo das leis, dulcificando-as, adaptando-as ao caso concreto. Não se trata de elaboração de uma norma, mas de mera interpretação da lei, suavizando-a com o fito de desvendar a ratio legis. Modernamente, não se sustenta o pensamento dos exegetas que negam à equidade qualquer valor, fundados na idéia de que dentro da lei se encontra todo o sistema do direito.

Esse tipo de raciocínio impede o progresso do direito, porque se encontra apegado excessivamente à vontade do legislador, transformando em permanente uma realidade social provisória. O fim da lei, como adverte Serpa Lopes, não é buscado nela mesma ou no legislador, mas em função da sua adaptação aos fins sociais. Assim, a vontade do legislador não pode ser considerada senão na proporção de sua força interpretativa das necessidades sociais. Destinada a reger as relações dos indivíduos em sociedade, a lei deve ter um conteúdo dúctil, fluido, flexível, de modo a torná-la adaptável a todas as necessidades jurídicas e sociais que sobrevierem.


A JUSTIÇA ALTERNATIVA

A justiça alternativa é o movimento que preconiza a aplicação do direito, valendo-se de duas premissas:

1º. O juiz deve deixar de aplicar uma lei inconstitucional;

2º. A interpretação da lei deve atender aos fins sociais e às exigências do bem comum.

A primeira premissa nada mais é do que o controle difuso ou aberto de constitucionalidade das leis. Qualquer magistrado, para decidir o caso concreto, pode declarar, incidentalmente, a inconstitucionalidade de uma lei, de modo que nenhuma novidade, nesse aspecto, apresenta a justiça alternativa.

A segunda premissa encontra-se prevista no art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil. Portanto, o próprio ordenamento jurídico recomenda que a lei seja interpretada de acordo com os fins sociais e as exigências do bem comum. Por consequência, não se trata de uma inovação da justiça alternativa.

O aludido movimento ganhou corpo no Poder Judiciário do Rio Grande do Sul. O mérito da escola gaúcha não consiste propriamente na fixação das duas premissas acima, mas no questionamento do modelo tradicional de interpretação do direito. Com efeito, no modelo tradicional o julgamento é feito pelo processo de subsunção da norma ao fato concreto. A justiça alternativa inverte a relação entre a norma e o fato, tomando o fato como objeto principal do conhecimento. Noutras palavras, a justiça alternativa parte do pressuposto de que a norma regula uma situação padrão de fato, escusando-a de aplicá-la em relação a certos fatos que destoam da situação normal para qual a lei foi criada.


Referências bibliográficas

BRASIL, Decreto Lei nº. 4.657, de 4 de setembro de 1942 Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657compilado.htm, último acesso em 01 de agosto de 2021.

DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, 18 ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, Parte Geral. V. 1, 14ª Ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Saraiva, 2012.



Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GALINDO, Guilherme Marques. Interpretação da lei. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6705, 9 nov. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/94650. Acesso em: 10 maio 2024.