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Aplicação da Lei nº 8.928/2020 na atividade da Polícia Militar do Rio de Janeiro.

Ocorrências de lesão corporal ou morte por intervenção por agente do estado

Aplicação da Lei nº 8.928/2020 na atividade da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Ocorrências de lesão corporal ou morte por intervenção por agente do estado

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Em virtude da evolução dos conceitos doutrinários e atualização da legislação brasileira, urge a necessidade de renovação e inserção de novos procedimentos, em especial, quanto aos crimes militares, em razão da edição da Lei Estadual/RJ nº 8.928/20.

Sumário: 1. Introdução. 2. Conceito de autoridade policial. 3. Lesão corporal ou morte por intervenção de policial militar. 4. Procedimentos adotados pela autoridade policial. 5. Atualização de procedimentos operacionais e adminsitrativos. 6. Considerações finais. 7. Referências bibliográficas.


1. INTRODUÇÃO

Existem ocorrências policiais nas quais deverão ser tomadas medidas de polícia judiciária militar, nesse campo de atuação, a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), por meio de seus Oficiais e Praças, deve ter atenção especial à duas legislações bastante recentes no ordenamento jurídico: a Lei Federal n° 13.491, de 13 de outubro de 2017, e a Lei Estadual nº 8.928, de 9 de Julho de 2020. A primeira ampliou substancialmente o rol dos crimes militares e a segunda versa sobre os procedimentos que devem ser adotados pela autoridade policial nas ocorrências de lesão corporal ou morte por intervenção por agente do estado.

As duas leis supramencionadas trazem reflexos importantes na atividade policial militar, principalmente no que tange às medidas de polícia judiciária militar. A não adoção de medidas operacionais padronizadas causam prejuízos à administração da Corporação, bem como a condução precária de diligências de polícia judiciária militar incorre, entre outros problemas, em prejuízo da atividade pré-processual, materializada na instrução de Inquéritos Policiais Militares (IPM).

Será analisada neste artigo a aplicação da Lei Estadual nº 8.928/20 nas ocorrências policiais que envolvam os crimes militares previstos no art. 205. (Homicídio) e 209 (Lesão Corporal) do Código Penal Militar, praticados contra civis em operações policiais.


2. CONCEITO DE AUTORIDADE POLICIAL

A Lei nº 8.928 de 09 de Julho de 2020 dispõe sobre os procedimentos que devem ser adotados pela autoridade policial nas ocorrências de lesão corporal ou morte por intervenção por agente do estado. Convém inicialmente, determinar o conceito de autoridade policial.

De forma genérica, o conceito de autoridade, seja ela policial ou não, vinha esculpido na revogada Lei nº 4898/65, no seu art. 5º:

Lei do Abuso de Autoridade - revogada (Lei 4.898/1965)

Art. 5.º Considera-se autoridade, para os efeitos desta Lei, quem exerce cargo, emprego ou função pública, de natureza civil, ou militar, ainda que transitoriamente e sem remuneração.

Essa é uma Lei revogada, mas que trazia um pouco de luz para os vazios conceituais. Ampliando o raio de alcance das autoridades que podem praticar os crimes tipificados como abuso de autoridade, a nova lei (13.969/19), considera que autoridade é:

Lei do Abuso de Autoridade - em vigor (Lei 13.869/2019)

DOS SUJEITOS DO CRIME

Art. 2º [...] qualquer agente público, servidor ou não, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território, compreendendo, mas não se limitando a:

I - servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas;

II - membros do Poder Legislativo;

III - membros do Poder Executivo;

IV - membros do Poder Judiciário;

V - membros do Ministério Público;

VI - membros dos tribunais ou conselhos de contas.

Parágrafo único. Reputa-se agente público, para os efeitos desta Lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função em órgão ou entidade abrangidos pelo caput deste artigo.

Tomando por empréstimo a definição da gramática1, o termo autoridade tem como um dos significados: “Direito que determina o poder para ordenar; poder exercido para fazer com que (alguém) obedeça.”

Quando se trata especificamente da atividade policial, é que surgem pequenas controvérsias pelo fato de determinadas autoridades civis, reivindicarem a exclusividade do termo para sua função, e ainda se colocando hierarquicamente superiores às outras autoridades, independente do órgão. Em uma análise bem técnica e livre de vaidades, com fundamento na interpretação das leis, das posições dos tribunais superiores e da doutrina penal militar, é possível entender que se dividem em duas categorias:

  • Autoridade policial para efeitos penais

  • Autoridade policial para efeitos processuais.

A primeira, tomando como base o alcance Lei de Abuso de Autoridade c/c o art. 327, caput, do Código Penal comum, são os agentes públicos na atividade militar e de segurança pública que exercem poder de polícia (administrativa ou judiciária), como assevera Alves Marreiros (2015, p.611), que aduz:

Entre as autoridades policiais para efeitos penais, logo, estão incluídos todos aqueles a que aludem os arts. 42, 142 e 144 da Constituição Federal: os militares das três Forças Armadas (Marinha, Exército e Aeronáutica), tanto os Oficiais quanto os praças; os militares das instituições militares estaduais (Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares), tanto os Oficiais quanto os praças; os que ocupam cargo público policial, presidam ou não inquéritos policiais (delegados, peritos criminais, agentes, escrivães, papiloscopistas, datiloscopistas, policiais rodoviários e ferroviários); os guardas municipais.

Esse ponto não é de difícil compreensão, e não exige maiores ilações.

Quanto ao conceito de autoridade policial para efeitos processuais, há que se fazer ainda algumas ramificações, no sentido que estabelecer limites, responsabilidades e prerrogativas de função, previstas na Constituição Federal e na legislação. Para isso, tomamos por base o exercício do poder de polícia administrativa e judiciária.

O exercício do poder de polícia pode ser dividido em dois ramos distintos: a polícia administrativa e a polícia judiciária.

A polícia administrativa é uma atividade estatal restritiva de direitos, liberdades e propriedades privadas em favor do interesse coletivo. Ela é a atuação mais direta do Estado à sombra do princípio da supremacia do interesse público e tem sua definição no Código Tributário Nacional, em seu artigo 78:

Considera-se poder de polícia a atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

O poder de polícia é a autorização ou restrição legal de direitos imposta ao cidadão em benefício da coletividade. São exemplos do exercício do poder de polícia administrativa as disposições da Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012, o Código Florestal, que estabelece normas gerais para exploração das florestas, entre outras finalidades. Outro exemplo é a aplicação de limitações administrativas, como a atividade de vigilância sanitária, a polícia de trânsito, a concessão de autorização pelo Corpo de Bombeiros para regularização de edificações, etc.

A polícia administrativa tem seu caráter predominantemente preventivo, podendo ser desenvolvida por todos os agentes públicos com poder de polícia, sejam eles civis ou militares.

Nesse sentido, inserido no conceito de autoridade policial para efeitos processuais, é que exsurge a autoridade de polícia administrativa. O policial militar (Oficiais e Praças) exerce a autoridade de polícia administrativa quando efetua atividades de polícia ostensiva preventiva e pela imediata restauração da ordem pública, atuando nos crimes em flagrante, tumultos, nas abordagens policiais etc.

A autoridade de polícia judiciária é a outra ramificação do conceito de autoridade policial para efeitos processuais. A polícia judiciária, diferentemente da polícia administrativa, não pode ser exercida por todas as autoridades de polícia administrativa. Logo, essa responsabilidade é atribuída, em regra, às autoridades de polícia judiciária e seu exercício se inicia após a ocorrência de um fato criminoso.

Segundo a conceituação de Lazzarini (1987, p.36), “polícia judiciária é repressiva, porque atua após a eclosão do ilícito penal, funcionando como auxiliar do Poder Judiciário”.

Coimbra Neves (2014, p.175), corrobora com esse entendimento, narrando que “essa polícia judiciária pode ser atrelada à ocorrência de um crime militar ou de um crime que não seja militar (“crime comum”), de maneira que se pode falar em polícia judiciária comum e polícia judiciária militar”.

A polícia judiciária comum incumbe aos delegados de polícia federal e civil, por força constitucional do art. 144, § 1º, IV e § 4º:

Art. 144. [...]

§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a: [...]

IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União; [...]

§4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

A polícia judiciária militar, por disposição legal do art. 7º do Código de Processo Penal Militar, compete às autoridades castrenses, conforme sua área de atribuição:

Art. 7º A polícia judiciária militar é exercida nos termos do art. 8º, pelas seguintes autoridades, conforme as respectivas jurisdições: [...]

h) pelos comandantes de forças, unidades ou navios;

Na esfera estadual são autoridades de polícia judiciária militar os Comandantes, Chefes e Diretores das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares. Esta atribuição não é relativa ao cargo, e sim vinculada à função exercida pelo Oficial, que a exercerá de maneira originária ou delegada.

Originariamente, competem às autoridades supracitadas, as medidas de polícia judiciária militar, sendo possível delegar esses poderes aos Oficiais da ativa para fins especificados e por tempo limitado. Normalmente, esses poderes são delegados para fins de instauração de IPM. Tais atribuições estão previstas no art. 8° do CPPM, em um rol considerado exemplificativo.

Sua principal função, dentre outras, é apurar as infrações penais militares e sua autoria por meio da investigação policial.

Art. 8º Compete à Polícia judiciária militar:

a) apurar os crimes militares, bem como os que, por lei especial, estão sujeitos à jurisdição militar, e sua autoria; [...]

O CPPM outorga ainda, os poderes de autoridade de polícia judiciária militar ao oficial de dia, de serviço ou autoridade correspondente, por ocasião da lavratura do auto de prisão em flagrante nos crimes militares e na adoção das medidas preliminares ao inquérito previstas no art. 12. do CPPM:

Lavratura do auto

Art. 245. Apresentado o preso ao comandante ou ao oficial de dia, de serviço ou de quarto, ou autoridade correspondente, ou à autoridade judiciária, será, por qualquer deles, ouvido o condutor e as testemunhas que o acompanharem, bem como inquirido o indiciado sobre a imputação que lhe é feita, e especialmente sobre o lugar e hora em que o fato aconteceu, lavrando-se de tudo auto, que será por todos assinado.

Modos por que pode ser iniciado

Art. 10. O inquérito é iniciado mediante portaria: [...]

Providências antes do inquérito

§ 2º O aguardamento da delegação não obsta que o oficial responsável por comando, direção ou chefia, ou aquele que o substitua ou esteja de dia, de serviço ou de quarto, tome ou determine que sejam tomadas imediatamente as providências cabíveis, previstas no art. 12, uma vez que tenha conhecimento de infração penal que lhe incumba reprimir ou evitar.

Na concepção de Alves Marreiros (2015, p.613), são autoridades policiais para efeitos processuais:

[...] Já a denominação autoridade policial para efeitos processuais – e, logo, para efeitos de estudo e de aplicação das prerrogativas de função – é aquela que se ocupa, preponderante ou eventualmente, com a instauração, a presidência e a condução de inquéritos policiais ou de inquéritos policiais-militares, incumbindo-lhe, na persecução penal extrajudicial, a apuração da infração penal e de sua respectiva autoria [...]

Mais precisamente quanto à atividade policial, essencial à segurança pública, ela finca suas bases constitucionais no art. 144, caput, incisos e §§ 7.º e 8.º da Carta Política [...]

Por conseguinte, conforme acepção doutrinária supramencionada e legislação processual penal comum e militar, para o estudo e a aplicação das prerrogativas de função – são autoridades policiais (polícia judiciária), unicamente:

  • Os Delegados de Polícia Federal;

  • Os Delegados das Polícias Civis;

  • Os Oficiais das Polícias Militares, Corpos de Bombeiros Militares e das Forças Armadas quando exercem função de Comando, Chefia ou Direção de Unidades ou função de Encarregados de Inquérito Policial Militar;

  • Os Oficiais da citadas Forças, quando empenhados em serviço de oficial de dia ou correspondente.

Sobre o conceito de autoridade policial é possível concluir então, no seguinte resumo:

AUTORIDADE POLICIAL - Subdivide-se em: Autoridade policial para efeitos penais e Autoridade policial para efeitos processuais

1. AUTORIDADE POLICIAL PARA EFEITOS PENAIS - Não possui subdivisão. (Ex.: todos aqueles a que aludem os arts. 42, 142 e 144 da Constituição Federal, conforme supramencionado.

2. AUTORIDADE POLICIAL PARA EFEITOS PROCESSUAIS - Se subdivide em: Autoridade de polícia administrativa / Autoridade de polícia judiciária:

2.1. Autoridade de polícia administrativa - Não possui subdivisão (Ex.: Oficiais e praças da Polícia e Corpos de Bombeiro Militar, Guardas Municipais, Juízes durante as audiências etc.)

2.2. Autoridade de polícia judiciária - Se subdivide em autoridade de polícia judiciária comum e militar:

2.2.a - Autoridade de polícia judiciária comum – em regra, delegados de polícia civil e federal (podendo haver outras autoridades atuando com esses poderes. Ex.: Promotores de Justiça, Comissões Parlamentares de Inquérito etc.)

2.2.b - Autoridade de polícia judiciária militar – Oficiais das Forças Armadas e Forças Auxiliares, conforme supramencionado.

Ao contrário do que delegados de polícia civil e federais afirmam, o termo autoridade policial não é exclusivo de suas carreiras. Esse é o entendimento consolidado na Suprema Corte do país.

Em 2017, no julgamento do RECURSO EXTRAORDINÁRIO 1.050.631, da relatoria do Exmo. Ministro do STF Gilmar Mendes, que afirmou: “A Polícia Militar é autoridade policial e pode lavrar o Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO)”, ficou decidida a inexistência de nulidade em ato de lavratura de Termo Circunstanciado de Ocorrência pela Polícia Militar do Estado de Sergipe:

[...] Em caso idêntico por mim já julgado, RE 1.051.393/SE, DJe 1º.8.2017, transitado em julgado em 13.9.2017, destaco do parecer ofertado pela PGR o seguinte trecho: “28. A interpretação restritiva que o recorrente quer conferir ao termo ‘autoridade policial’, que consta do art. 69. da Lei nº 9.099/95, não se compatibiliza com o art. 144. da Constituição Federal, que não faz essa distinção. Pela norma constitucional, todos os agentes que integram os órgãos de segurança pública – polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal, policias civis, polícia militares e corpos de bombeiros militares –, cada um na sua área específica de atuação, são autoridades policiais”. [...]

No julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade impetrada pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil, em 2004, questionando o art. 51. da Lei 15.301/04 do Estado de Minas Gerais, que versava sobre medidas administrativas da Lei de Drogas (§ 3º do art. 48. da Lei n. 11.343/2006), as quais seriam adotadas por autoridade judicial, os delegados alegavam que essas providências seriam de competência privativa da autoridade policial, não podendo ser conferidas à autoridade judicial.

A discussão foi evidenciada como sendo análoga à existente quanto ao art. 69. da Lei 9.099/95. No voto da Exma. Ministra Cármem Lúcia, destacou posicionamento doutrinário no sentido da possibilidade de outras autoridades adotarem essa providência, inclusive o Poder Judiciário. Cita Damásio (2010. p. 53-55):

[...] Entendemos, portanto, que, para os fins específicos do disposto no art. 69. da Lei n. 9.099/95, a expressão “autoridade policial” significa qualquer agente público regularmente investido na função de policiamento preventivo ou de polícia judiciária [...] A conclusão coincide com a da Comissão Nacional de Interpretação da Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995, sob Plenário Virtual, coordenação da Escola Nacional da Magistratura e presidida pelo Ministro do Superior Tribunal de Justiça Sálvio de Figueiredo Teixeira. A 9ª conclusão indica que “a expressão autoridade policial, referida no art. 69, compreende quem se encontra investido em função policial, podendo a Secretaria do Juizado proceder à lavratura do termo de ocorrência e tomar as providências previstas no referido artigo”

Em junho de 2020, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3807, impetrada pela Associação de Delegados de Polícia do Brasil, tendo como Relatora a Exma. Ministra Cármen Lúcia, os Ministros por maioria, assentaram o entendimento que a lavratura do Termo Circunstanciado de ocorrência (TCO), do artigo 69 da Lei nº 9.099/95, não é ato de polícia judiciária, ratificando entendimento que o termo “autoridade policial” consignado no citado diploma legal, não se refere exclusivamente a delegados de polícia.

Atualmente o Termo Circunstanciado de Ocorrência é lavrado e encaminhado diretamente para o Poder Judiciário por Polícias Militares em 12 estados do Brasil. Cabe destaque para Brigada Militar do Rio Grande do Sul e para a Polícia Militar de Santa Catarina, que estão na vanguarda desse procedimento, ambas atuando na lavratura do TCO desde a década de 1990. A Polícia Militar do Rio de Janeiro ainda não implementou a medida.

Cumpre esclarecer, que o legislador ao referendar o termo autoridade policial no Código de Processo Penal comum, quando trata do inquérito policial, ainda que não deixe expresso, estará se referindo a delegados de polícia, por razão bem simples, que é a sua prerrogativa de função na investigação de infrações penais comuns. Fora dessas hipóteses, como ficou constatado neste estudo, o termo autoridade policial não é exclusivo de nenhum agente público, civil ou militar.


3. LESÃO CORPORAL OU MORTE POR INTERVENÇÃO DE POLICIAL MILITAR

Outro ponto em que cabem ao menos breves considerações: a natureza dessa lesão causada por policial militar em serviço.

Diante da definição legal do crime militar delineada na CF, bem como no CPM, é de fácil compreensão que, em se tratando de Lesão Corporal em desfavor de civil, a tipificação, prima facie, encontra respaldo no art. 209. c/c art. 9º, inciso II, alínea c do CPM, e em caso de intervenção letal, o resultado morte é tipificado no art. 205. c/c art. 9º, inciso II, alínea c do CPM.

Insta salientar, que o policial militar em serviço, por força da Lei nº 13.491/17, somado à inteligência do art. 9º do CPM, não incorre na prática de crime comum, portanto, qualquer medida de polícia judiciária deverá ser adotada pela autoridade policial militar.


4. PROCEDIMENTOS ADOTADOS PELA AUTORIDADE POLICIAL

Após a conceituação de autoridade policial, e considerando que nas ocorrências em que haja danos causados à civis, é de responsabilidade da autoridade policial militar as medidas de polícia judiciária, se faz necessário buscar na Lei nº 8.928/20 as atribuições referentes à Polícia Militar, por meio de seus Oficiais de serviço, ou por outra autoridade militar competente. Nesse ponto há um complicador, pois o legislador, pouco técnico no sentido de definir e delimitar, expressamente, as funções de cada Órgão: Polícia Civil e Polícia Militar, nas medidas administrativas pré-processuais, não o fez. E por que motivo isso seria relevante? Por tudo que foi exposto acima: Tanto o Delegado de Polícia quanto os Oficiais da PMERJ, são autoridades policiais para efeitos processuais nos casos previstos nesta lei, com a ressalva que, quando se tratar de policiais militares, a autoridade competente será o Oficial da Polícia Militar.

O que torna menos complexa essa questão, mas que não afasta totalmente essa lei de uma Ação de Inconstitucionalidade por afronta ao art. 144, § 4º, ou ao art. 22, inc. I da CF ou por incorrer em inconstitucionalidade reflexa em relação ao CPPM, é a determinação consignada no art. 1º, § 5º da lei, in verbis:

Art. 1º - Quando da ocorrência de fato violento no curso de operações policiais, a Autoridade Policial ao tomar conhecimento de ocorrência de lesão corporal ou homicídio decorrente de oposição à intervenção policial deverá, imediatamente, observar as seguintes diretrizes básicas: [...]

§ 5º - Deverão ser observadas as competências constitucionais e legais da Polícia Militar e da Polícia Civil em cada caso.

Portanto, a Lei nº 8.928/20 deve ser interpretada à luz da Constituição Federal e do Código de Processo Penal Militar. Ante o exposto, cumpre ressaltar que o art. 144, § 4º da CF, proíbe aos delegados de polícia a investigação de crimes militares, logo, não podem adotar medidas de polícia judiciária em relação à ocorrência de lesão corporal ou morte resultante de atuação de policial militar em serviço contra qualquer pessoa.

Outra premissa óbvia, mas que é pertinente destacar, é que o CPPM, que tem força de Lei Federal e tem abrangência em âmbito nacional, é especial em relação à Lei nº 8.928/20, logo, quando houver convergência dos atos pré-processuais de autoridade de polícia, ou seja, medidas iguais ou semelhantes estipuladas nas duas normas, prevalece a legislação especial militar, quando se tratar de lesão causada por policial militar em serviço (crime militar). Isso porque, é o mandamento do CPPM:

Código de Processo Penal Militar

Art. 1º O processo penal militar reger-se-á pelas normas contidas neste Código, assim em tempo de paz como em tempo de guerra, salvo legislação especial que lhe for estritamente aplicável.

Interpretação literal

Art. 2º A lei de processo penal militar deve ser interpretada no sentido literal de suas expressões. Os termos técnicos hão de ser entendidos em sua acepção especial, salvo se evidentemente empregados com outra significação.

Suprimento dos casos omissos

Art. 3º Os casos omissos neste Código serão supridos:

a) pela legislação de processo penal comum, quando aplicável ao caso concreto e sem prejuízo da índole do processo penal militar;

Ante o exposto, a Lei nº 8.928/20 é suplementar à aplicação do CPPM, podendo haver a consonância com a legalidade, apenas nos casos omissos, ademais, sem prejuízo da índole do processo penal militar. Urge ressaltar, que os casos omissos do CPPM deverão ser preenchidos por legislação processual comum e a União é competente exclusivamente para editar tais regramentos, como será ratificado a diante neste estudo.

Com isso, quando a lei se referir à autoridade policial, deve ser observada a competência constitucional e legal da PMERJ, que exercerá essa função, por meio de seus Oficiais de serviço, pelo próprio Comandante, Chefe ou Diretor de Unidades, ou por outro Oficial designado para esse fim, conforme prevê o CPPM.

Lei nº 8928/20 - Principais artigos e atribuição de responsabilidades

► Medidas sob responsabilidade da autoridade policial militar

Art. 1º - versa sobre as diretrizes básicas que é suplementar em relação às medidas do art. 12. do CPPM, e serão observadas as seguintes:

  • I – Requisitar imediato deslocamento de equipe de apoio policial, para garantir o isolamento e preservação do local, caso ainda não tenha sido providenciado, identificando os responsáveis pela conservação do local e o estado de conservação das coisas (PMERJ).

  • II – Acionamento de socorro especializado, sempre que possível, bem como o acompanhamento de testemunha (PMERJ).

As medidas supra elencadas estão inseridas no rol do art. 12. do CPPM:

Art. 12. – Medidas preliminares ao inquérito:

a) preservação do local

b) apreensão dos objetos do crime (em relação aos crime militares)

c) prisão do infrator

d) colheita de provas

► Responsabilidade implicitamente concorrente, devendo ser observada pela autoridade policial militar, bem como por delegado de polícia
  • III – Requisitar o concurso da Polícia Técnico-científica perícia para o local (responsabilidade concorrente – PMERJ e PCERJ)

  • IV – Dirigir-se a autoridade policial para o local do fato para colheita de provas e informações (responsabilidade concorrente – PMERJ e PCERJ)

  • V, VI e VII – Proceder à oitiva das partes envolvidas; Requisição de perícia (responsabilidade concorrente – PMERJ e PCERJ)

  • § 1º - Motivação escrita na inobservância de qualquer das medidas (responsabilidade concorrente – PMERJ e PCERJ)

  • § 2º - Dirigir-se a autoridade policial para o hospital a fim de colher esclarecimentos dos médicos (responsabilidade concorrente – PMERJ e PCERJ)

  • § § 3º e 4 - Preservação de prova, identificação e apreensão das armas envolvidas no contexto da ocorrência (responsabilidade concorrente – PMERJ e PCERJ)

  • § 5º - Observância das competências constitucionais e legais da PMERJ e PCERJ

► Responsabilidade EXPRESSAMENTE concorrente, devendo ser observada pela autoridade policial militar e por delegado de polícia
  • Art. 3º - Em caso de alteração do estado das coisas, deverá a Autoridade Policial Civil ou Militar adotar as medidas legais cabíveis (PMERJ ou PCERJ)

► Responsabilidade implicitamente concorrente, devendo ser observada pela autoridade policial militar, bem como por delegado de polícia
  • Art. 5º - versa sobre o registro da ocorrência – normalmente, se trata de crime comum praticado por civil e crime militar praticado por policial – logo são 02 registros do fato.

Responsabilidade concorrente entre PMERJ e PCERJ, em operações policiais militares, significa que, no mesmo evento, poderá haver a ocorrência de crime comum (civil), ex.: tráfico de drogas, associação para o tráfico, corrupção de menores etc., e crime militar (policiais militares), ex.: lesão corporal, tortura, homicídio etc., e quanto às medidas em face dos militares a atribuição será de autoridade policial militar, como a apreensão do armamento de policiais militares, e as medidas em desfavor de civil será adotada por delegado de polícia. Essa responsabilidade concorrente na maior parte dos artigos é implícita, mas é facilmente compreendida, desde que a leitura do art. 1º da Lei 8.928/20, e dos demais, seja revisitada após interpretação do § 5º do art. 1º desta.

O art. 3º é o único que traz, expressamente, a responsabilidade concorrente das duas instituições, o que poderia ter sido feito em toda lei, minimizando conflitos de atribuição no caso concreto por falha na interpretação da lei.

Logicamente, quando se tratar de operação apenas da Polícia Civil, na qual não haverá a possibilidade de ocorrência de delitos militares, não há que se falar em responsabilidade da PMERJ e de seus Oficiais.

Outro artigo que merece comentário neste estudo é o art. 6º, que determina que todas essas ocorrências sejam encaminhadas para Delegacia de Homicídios. Em princípio, o local que será realizado o registro civil de ocorrência não tem grande importância, pois se trata de administração Interna Corporis da Polícia Civil, inconcebível é que essa apresentação ou perícia de local de azo ou precedente para instauração de investigação em face da conduta de policial militar em paralelo à investigação conduzida pela Polícia Militar. Isso porque, nos crimes dolosos conta a vida de civil, deve prevalecer o exercício exclusivo da polícia judiciária militar, o IPM é o único meio adequado a apurar essa espécie de crime, isso já ficou demonstrado ao longo dos anos por meio da legislação, da doutrina e da jurisprudência, não podendo haver concomitantemente instauração de inquérito da Polícia Civil. Policial militar não pode responder a dois procedimentos administrativos pela prática do mesmo fato, pois este ato é eivado de flagrante ilegalidade, caracterizando constrangimento ilegal face a insegurança jurídica provocada nos investigados.

A jurisprudência ratifica esse pensamento, vide o Recurso de Habeas Corpus 1999.03990776390, da Quinta Turma do Tribunal Regional Federal:

[...] bem se sabe que para cada fato delituoso corresponde um inquérito para apurá-lo. Assim como ninguém pode ser acusado ou condenado por idêntico fato duas vezes, também é certo que dois inquéritos para investigar o mesmo fato constituem-se em constrangimento ilegal.

A dupla investigação fere o princípio do non bis in idem, ninguém pode sofrer dois inquéritos policiais pelo mesmo fato. O Inquérito Policial da Polícia Civil, instaurado para apurar crime militar, vai contra o ordenamento jurídico, é inconstitucional e ilegal, impõe flagrante constrangimento ilegal aos investigados, o qual tem risco ao seu status libertatis, podendo, a qualquer momento, ser alvo de medidas constritivas de prisão e violação de seus direitos fundamentais amparados na Lei Maior.

Nesse sentido, aliás, já decidiu o Tribunal de Justiça do Paraná (TJ/PR):

“HABEAS CORPUS CRIME – ALEGAÇÃO DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL ANTE A DUPLICIDADE DE INQUÉRITO INSTAURADO, MILITAR E CIVIL – CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO – TRANCAMENTO DO INQUÉRITO INSTAURADO PELA POLICIA CIVIL - ORDEM CONHECIDA E CONCEDIDA.”

(TJ/PR - 1ª Câmara Criminal - HC n.0016048-86.2018.8.16.0000 - Rel. Des. Benjamim Acácio de Moura e Costa - J. 23.08.18)

A exclusividade a polícia judiciária militar na investigação dos crimes dolosos contra a vida de civil encontra pacífica jurisprudência na Suprema Corte, cabendo destacar:

  • ADI 1.494-3 de 1997;

  • Recurso Extraordinário 804.269/SP, j. 24.03.2015, da relatoria do Ministro Roberto Barroso;

  • Recurso Extraordinário 1.062.591/SP, j. 23.08.2017, da relatoria do Ministro Dias Toffoli, e o

  • Recurso Extraordinário 1.146.235/SP, j. 17/12/2018, da relatoria do Ministro Edson Fachin

A decisão mais recente, com trânsito em julgado no ano de 2019, é materializada pelo RECURSO EXTRAORDINÁRIO 1.146.235/SP, da relatoria do ministro do Supremo Tribunal Federal, Edson Fachin:

POLICIAL MILITAR - RECURSO EM SENTIDO ESTRITO - INTERPOSIÇÃO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO CONTRA DECISÃO DO JUIZ DE DIREITO QUE INDEFERIU O PEDIDO PARA ENCAMINHAMENTO DO FEITO À VARA DO JÚRI - EXAME EFETUADO PELA JUSTIÇA MILITAR QUE RECONHECEU INEXISTIR CRIME MILITAR DOLOSO COMETIDO CONTRA A VIDA DE CIVIL RECURSO QUE NÃO COMPORTA PROVIMENTO - DECISÃO POR MAIORIA DE VOTOS. A Justiça Militar é competente para efetuar a análise prévia do cometimento de crime apurado pela polícia judiciária militar. Legislação que prevê o encaminhamento dos autos ao Tribunal do Júri apenas quando do reconhecimento da existência de crime militar doloso praticado contra a vida de civil. Exame efetuado pela Justiça Militar que verificou a existência de excludentes de ilicitude. Legítima defesa e estrito cumprimento do dever legal. O controle externo exercido pelo Ministério Público sobre a atividade policial não é afetado pela referida decisão. (grifei)

No seu parecer o Ex. mo Ministro da corte suprema negou seguimento a RE do MP/SP, que impugnava julgado que manteve a competência da Justiça Militar quanto a Inquérito Policial conduzido por delegado de polícia, relativo a crime praticado por PM contra a vida de civil. O MPF conferiu ciência ao decisum do referido RE. Eis os fundamentos:

“(...) A irresignação não merece prosperar. Verifico que o Tribunal a quo decidiu a um só tempo que:

a) a Justiça Militar estadual é competente pra exercer um juízo prévio acerca da configuração ou não de crime doloso praticado por militar contra a vida de civil e, na hipótese de exercer juízo positivo (ou seja, entender que houve prática de crime doloso contra a vida de civil), encaminhar os autos ao Tribunal do Júri e

b) o Juiz Militar, após concluir que não houve crime doloso, poderá determinar o arquivamento do inquérito policial militar, independente de haver requerimento do Ministério Público nesse sentido. Observo, inicialmente, que o recorrente impugna somente o segunda matéria assentada no acórdão recorrido, arguindo que o arquivamento indireto implicou violação às atribuições constitucionais do Ministério Público. O Tribunal, por sua vez, analisou a questão nestes termos (...)

Assim fundamentada a decisão em tela, na jurisprudência consolidada deste e. STF quanto aos requisitos de admissão de RE, devolvo os autos.

O precedente mais atual do Poder Judiciário Estadual, do mês de julho de 2020, é do Ex.mo juiz Ronaldo João Roth, da 1ª Auditoria do Tribunal de Justiça Militar de São Paulo (Processo Judicial Eletrônico nº 0800006-62.2020.9.26.0010 (LSA)), que concedeu Habeas Corpus coletivo permitindo que todos os Oficiais da PM ignorem uma Resolução da Secretaria de Segurança Pública e possam, em caso de morte decorrente de intervenção policial, apreender os instrumentos e objetos que tenham relação com o fato, além de colher provas que sirvam para esclarecê-lo. Essa medida não seria necessária, pois a apreensão dos objetos do crime estão revistas no art. 12. do CPPM, se não houvesse uma Resolução do Estado de São Paulo que afrontasse a legislação militar e as atribuições de polícia judiciária militar. Essa realidade se aproxima bastante do teor da Lei nº 8.928/20, uma vez que pode interferir em atribuição definida em lei federal.

A primazia de investigação por parte da Polícia Militar nos crimes dolosos contra a vida de civil permanece em consolidada jurisprudência na Suprema Corte, como ficou demonstrado acima.

A autoridade policial civil, mais especificamente, delegado de polícia, que submete policial militar à investigação policial ou qualquer outra medida exclusiva de polícia judiciária militar, é passível de responsabilização criminal e administrativa, prima facie, incide nos delitos de usurpação de função pública, abuso de autoridade, constrangimento ilegal e ato ilícito de improbidade administrativa, a depender do elemento subjetivo e do caso concreto.

Do mesmo modo a autoridade militar que se omite diante desses fatos, permitindo que delegados atuem na esfera de atribuição destinada aos Oficias de polícia, pratica em tese os crimes de prevaricação, caso fosse verificada a desídia, visando simplesmente ter menos trabalho ou interesse particular. Pode incidir em um dos crimes contra o dever funcional, como: Inobservância de lei, regulamento ou instrução, previsto no art. 324. do CPM:

Inobservância de lei, regulamento ou instrução

Art. 324. Deixar, no exercício de função, de observar lei, regulamento ou instrução, dando causa direta à prática de ato prejudicial à administração militar:

A prática de ato prejudicial à administração militar se materializa em não cumprir as normas do CPPM, dando azo para violação do art. 144. § 4º da CF, permitindo que haja a instauração de inquérito da Polícia Civil para apuração de crime militar em paralelo ao IPM ou permitir que se pratique diligências que não competem à autoridade civil.

A autoridade militar omissa, pode incidir também, assim como o delegado de polícia, no em ato ilícito de improbidade administrativa:

Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992

Dos Atos de Improbidade Administrativa que Atentam Contra os Princípios da Administração Pública

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:

I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência;

II - retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício;

Relevante ainda comentar o art. 7º da Lei 8.928/20, que conforme o § 1º :

A autoridade pública com atribuições legais deverá determinar a imediata instauração de procedimento apuratório, para apurar possíveis desvios ou excessos de condutas sempre que houver resultado morte ou lesão corporal grave no curso das operações policiais sob seu comando ou chefia.

Não necessita grandes ilações, a autoridade militar deverá instaurar IPM, bem como, conforme preconiza o § 2º do art. 7º, comunicar o ocorrido ao Ministério Público, à Defensoria Pública e ao Órgão do Poder Executivo responsável pela promoção dos Direitos Humanos.

Importante salientar que os artigos 8º, 9º e 10 atribuem responsabilidade de Polícia Técnico-Científica aos departamentos de órgão civil (DGPTC, Institutos de Criminalística Carlos Éboli, Médico Legal, Afrânio Peixoto e de Identificação Félix Pacheco - ICCE, IMLAP e IIFP). O emprego de perícia civil, quando envolve ocorrências de crime miliar, não afronta, prima facie, o ordenamento jurídico, do contrário, existe previsão legal no próprio CPPM, sendo uma das competências da autoridade de polícia judiciária militar prevista na alínea g do art. 8º, in verbis:

Competência da polícia judiciária militar

Art. 8º Compete à Polícia judiciária militar:

a) apurar os crimes militares, bem como os que, por lei especial, estão sujeitos à jurisdição militar, e sua autoria;

b) prestar aos órgãos e juízes da Justiça Militar e aos membros do Ministério Público as informações necessárias à instrução e julgamento dos processos, bem como realizar as diligências que por eles lhe forem requisitadas;

c) cumprir os mandados de prisão expedidos pela Justiça Militar;

d) representar a autoridades judiciárias militares acerca da prisão preventiva e da insanidade mental do indiciado;

e) cumprir as determinações da Justiça Militar relativas aos presos sob sua guarda e responsabilidade, bem como as demais prescrições deste Código, nesse sentido;

f) solicitar das autoridades civis as informações e medidas que julgar úteis à elucidação das infrações penais, que esteja a seu cargo;

g) requisitar da polícia civil e das repartições técnicas civis as pesquisas e exames necessários ao complemento e subsídio de inquérito policial militar;

h) atender, com observância dos regulamentos militares, a pedido de apresentação de militar ou funcionário de repartição militar à autoridade civil competente, desde que legal e fundamentado o pedido.

Em contrapartida, a PMERJ possui um Centro de Criminalística (CCrim), capaz até certo ponto, de atender algumas demandas nesse tipo de ocorrência. Logo, o mais adequado é sempre haver o concurso da perícia militar, e em caso de incapacidade técnica ou material, requisitar também (requisição remete à ordem, poder de mando legal) a atuação da perícia civil. O motivo real da omissão do CCrim nesse tipo de ocorrência, quando envolver policiais militares, ficaria apenas no campo especulatório. O que até o momento é possível concluir, é que, como um todo, essa lei apresenta diversos problemas técnicos quando não aludiu a possibilidade da ocorrência de crimes militares e a aplicação de normas especiais já preconizadas.

Dessa forma, os artigos 8º, 9º e 10, nem sempre serão aplicados em sua integralidade para a PMERJ, não significando descumprimento de lei e sim cumprimento de legislação mais específica ao caso, o CPPM. Cabe esclarecer que no local de confronto armado, quase sempre também haverá a ocorrência de crimes comuns, e a autoridade policial civil também poderá determinar perícia no local, com objetivo precípuo de apurar as infrações penais praticadas por civis.

Por fim, nota-se, contudo, que mesmo cumprindo estritamente essa lei à luz da CF e da legislação processual penal militar, haverá margem de questionamento quanto à sua constitucionalidade, pois de certo, invade competência exclusiva da União ao tratar de procedimentos de polícia judiciária que deveriam estar preconizados no CPP ou no CPPM:

Constituição Federal

Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:

I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;

Destarte, apenas a União pode legislar sobre direito processual, e diversos artigos infringiram essa regra constitucional, como é o caso do art. 7º, § 1º.


5. ATUALIZAÇÃO DE PROCEDIMENTOS OPERACIONAIS E ADMINSITRATIVOS

A PMERJ adota um protocolo peculiar de padronização de procedimentos em ocorrências policiais, é o VADE MECUM DE OCORRÊNCIAS POLICIAIS MILITARES, com uma última versão republicada no Aditamento ao Boletim da PMERJ n.º 034, de 22 de fevereiro de 2013 e uma atualização de códigos no Bol da PM n.º 076 - 10 JUL 18. Entretanto, o que salta aos olhos é que o VADE MECUM tratou de maneira inepta os crimes militares, trazendo à baila acepções equivocadas e escassos protocolos adotados em ocorrências envolvendo crimes militares praticados contra civis, além de não abordar nenhum protocolo quanto aos crimes militares praticados por civil contra as instituições militares estaduais.

Cabe ressaltar, a omissão no Vade Mecum de dois dos crimes militares mais registrados e que são hoje objeto de atenção da Lei nº Estadual nº 8.928/20: o Homicídio e a Lesão Corporal praticados contra civil. Não é tratado também, o desenvolvimento das atividades operacionais e administrativas quando há concurso entre crimes comuns e crimes militares na mesma ocorrência, bastante comum em operações policiais, na qual tem como desfecho um dos dois delitos supracitados.

Com o objetivo de alinhar os procedimentos operacionais e diligências de polícia judiciaria militar com ordenamento jurídico vigente, bem como aprimorar a construção e a atualização de um Procedimento Operacional Padrão (POP) ideal, os pontos abaixo devem ser considerados:

1) Atualização dos procedimentos operacionais e administrativos considerando a Lei nº 13.491/17

O Vade Mecum não contempla o novo rol dos crimes militares, são exemplos que devem passar a existir protocolo: Aborto, porte ilegal de armas, disparo de arma de fogo, tortura, racismo etc. São crimes que estão previstos apenas na legislação penal comum. Aqui também cabe uma observação relevante quanto a procedimento administrativo interno para eliminação de munições. Sempre se foi exigido registro em delegacia para isso, no entanto, depois de 2017, o disparo de arma de fogo em serviço não é considerado mais um crime comum, portanto dispensa a confecção RO da DP, mas a gestão da PMERJ, ainda não observou tal fato, mantendo esse procedimento desnecessariamente.

2) Criação de tópico para procedimentos em casos de crimes militares praticados por policiais militares de folga e em serviço

Na parte do Vade Mecum que trata dos crimes militares, os procedimentos estão todos misturados quando o agente é militar federal ou estadual, mas não elenca a hipótese dos crimes praticados por militares da PMERJ, ficando subentendido que estariam ali incluídos. Entretanto, carece de detalhes quanto à: Lavratura de APFD em Unidade do agente ou em DPJM, ocorrências que envolvam integrantes do Corpo de Bombeiros, militares de outros estados, crimes militares praticados em concurso com crimes comuns, e outras questões relevantes. Na PMESP, existe um manual específico apenas para esses casos, é o Manual I-40-PM-INSTRUÇÕES PARA O ATENDIMENTO DE OCORRÊNCIA EM QUE HAJA O COMETIMENTO DE INFRAÇÃO PENAL PRATICADA POR POLICIAL MILITAR.

3) Inclusão dos crimes deliberadamente omitidos no Vade Mecum, em especial o Homicídio e Lesão Corporal Decorrente de Intervenção Policial Militar

O Vade Mecum omitiu diversos procedimentos em ocorrências. Os Crimes Contra a Pessoa – Título IV do CPM, foram muito prejudicados, os quais diversos tipos penais ocorrem com grande recorrência. Parece uma seletividade direcionada com exclusão do alguns crimes principais, em especial os crimes previstos nos artigos 205 e 209 do CPM, e dando atenção a crimes extremamente distantes da realidade policial militar e muito difíceis e improváveis de serem executados, com pouquíssimos ou nenhum registro nos últimos anos, como GENOCÍDIO, código 38.208 e a HOSTILIDADE CONTRA PAÍS ESTRANGEIRO, código 38.136.

Os códigos de ocorrência pulam do crime previsto no art. 204. (Exercício de Comércio por Oficial) para o 208 do CPM (Genocídio) e depois pula deste para o art. 235. do CPM (Pederastia). A pergunta que perpassa é: qual será o procedimento então na ocorrência desses crimes militares que foram omitidos?

Artigos do CPM omitidos:
  • [205] e 206 – Homicídio doloso e culposo

  • [207] – Provocação ou auxilio a suicídio

  • [209] e 210 – Lesão corporal dolosa e culposa

  • [211] – Participação em rixa

  • [214] – Calúnia

  • [2150] – Difamação

  • [216] – Injúria

  • [222] – Constrangimento ilegal

  • [223] – Ameaça

Esses são só alguns delitos militares que não tem protocolo descrito, não é à toa que muitos casos de crimes militares foram direcionados para registro em delegacia de polícia, inclusive crimes entre militares da ativa ocorridos no interior de unidades da PMERJ.

Nota-se também a omissão do crime previsto no art. 172. do CPM: Uso indevido de uniforme, distintivo ou insígnia militar por qualquer pessoa, pois pula do art. 171. para o 173 do CPM, evidentemente negando a premissa que o civil pode praticar esse crime.

4) Inclusão dos procedimentos referentes à Lei Estadual nº 8.928/20

Fundamental incluir os protocolos desta lei a fim uniformizar as ações da Autoridade Policial Militar, para que atenda ao dispositivo, respeitando os aspectos penais e processuais penais militares para os casos de Homicídio e Lesão Corporal Decorrente de Intervenção Policial Militar, que serão tratados, inicialmente, como delitos militares, e durante a investigação em IPM, poderá haver a desclassificação da conduta dentro de uma das hipóteses de excludentes de crime previstas no art. 42. do CPM.


6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Lei Estadual nº 8.928/20 tangencia perigosamente as atribuições da Autoridade Policial Militar, flertando com a inconstitucionalidade, e com pouco tempo inserida no ordenamento jurídico, já é notório na prática que induz os Oficiais da PMERJ para a condução das diligências de polícia judiciária militar de maneira errônea, permitindo que delegados de polícia atuem dentro da esfera de atribuição que é reservada às autoridades policiais da PMERJ no art. 12. do CPPM.

A inclusão dos novos procedimentos da Lei nº 8.928/20 em caso de ocorrência, em tese, dos crimes previstos no art. 205. e 209 do CPM, é fundamental para que as ações adotados por Oficiais e Praças da PMERJ não continuem ocorrendo de forma totalmente errada, muito disso em razão da omissão desses protocolos no Vade Mecum da PMERJ.

O resultado negativo disso é observado por anos: a dupla investigação pela PMERJ e PCERJ de policiais militares pelo mesmo fato, superexposição na mídia, a precariedade na instrução dos IPM’s conduzidos pelos Oficiais, pois não são adotadas as medidas preliminares do art. 12. do CPPM: não há perícia militar no local, não há perícia militar nos armamentos, isso porque essas diligencias são feitas em outra instituição, que ao arrepio da CF, estão investigando os fatos, e ademais, não há inteiração entre os órgãos, o que facilitaria a requisição dessas perícias no caso incapacidade técnica ou pessoal do CCrim.

Ademais, mesmo se debruçando sobre esta lei, interpretando à luz da CF e adequando às normas do CPPM em vigência, a aplicação prática é muito complexa, pois a atribuição de perícia civil às ocorrências da prática de crimes militares, em tese, em operações policiais, apesar de haver previsão legal, atualmente encontra obstáculos administrativos em razão do diálogo precário entre as duas instituições: Polícia Militar e Polícia Civil, e um sistema integrado e prático de informação de ocorrências e solicitação de perícias.

Cumpre salientar, que em razão dos problemas desta lei aqui apresentados, ainda poderão surgir diversas questões controversas e discussões nos tribunais, quanto à implementação no caso prático, pois não é uma possibilidade distante a revogação da Lei 8.928/20, desde que, as autoridades militares não se omitam diante desses problemas.


7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Nota

1 Conceito de autoridade: disponível em <https://www.dicio.com.br/autoridade/ > Acesso em 20 ago 2020


Autor

  • Leone Pinheiro Borges

    Oficial da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (CFO-PMERJ); Ex-Oficial da Reserva do Exército Brasileiro (CFOR-MatBel); Especialista em Operações de Choque – (COPC-PMERJ); Paraquedista Militar (C Bas Pqdt); Bacharel em Direito; Pós-graduado em Direito Penal Militar e Processo Penal Militar; Pós-graduado em Ciências Jurídicas; Pós-graduando em Medicina Legal

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