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A inadequação da presunção absoluta de fraude à execução fiscal estabelecida pelo Superior Tribunal de Justiça

A inadequação da presunção absoluta de fraude à execução fiscal estabelecida pelo Superior Tribunal de Justiça

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Analisou-se julgado no âmbito do STJ que afastou a presunção absoluta de má-fé, que considerou inaplicável o precedente firmado com o julgamento do REsp nº. 1141990/PR.

RESUMO: O objetivo desse trabalho é realizar discussão a respeito da fraude à execução, buscando-se inferir quais seriam os limites para a persecução do bem alienado indevidamente, discutindo-se acerca da aplicabilidade da súmula nº 375 do STJ, das distinções entre a fraude à execução que ocorre em processos fiscais ou não fiscais, das modificações trazidas pelo Código Processual de 2015, e das consequências que poderiam eventualmente ser impostas a terceiros, dando-se atenção especial sobretudo para aquele que adquire o bem imóvel sem gravame no Registro Imobiliário a fim de que se obtenha uma solução mais condizente com o Ordenamento Jurídico Brasileiro.

Palavras-chave: presunção absoluta - fraude - má-fé - execução fiscal

ABSTRACT:The main goal of this study is to embrace the discussion concerning the legitimacy of the absolute presumption of tax fraud established by the decision of the superior court “Superior Tribunal de Justiça” dispensing proof of bad faith involved in economic transaction after the procedure of credit formation by the Public Administration is concluded, due to the promulgation of the legislation LC 118/2005, altering the art. 185 of the “Código Tributário Nacional”, in abandonment of the precedent “Súmula nº375”. The objective of the study is to obtain a solution that is in accordance with the Brazilian Judicial System, which means in that the persecution of the credit must respect the civil rights protected by the legislation.  

Keywords: presumption - tax fraud - bad faith - tax execution


INTRODUÇÃO

De início, sendo fundamental para o presente trabalho, cumpre relembrar o conceito de fraude à execução: instituto processual que consiste na atuação ilícita de um devedor que, em estado de insolvência ou na iminência de assim se tornar, dispõe de seu patrimônio, a fim de furtar-se da responsabilidade pelo adimplemento das obrigações contraídas, apesar da pendência de processo de execução[1].

Com base nesse conceito, é válido esclarecer a diferença fundamental entre à fraude à execução e o fenômeno conhecido por fraude contra credores, qual seja: a existência ou não de um processo de execução no momento em que ocorre a alienação fraudulenta. Para que se constate fraude à execução, a instauração do processo de execução em face do alienante deve preexistir à disposição maliciosa de bens, ao passo que, no caso da fraude contra credores, o devedor também procura se eximir ilicitamente da obrigação contraída, mas o dispõe de seus bens antes da propositura do processo de execução.

Ademais, o instituto processual independe de a obrigação a que o devedor busca se esquivar ter sido originada a partir de relação com o poder público ou de realização de negócio jurídico entre particulares, havendo, no entanto, regulamentação especial a depender do credor (se particular ou se Fazenda Pública): tratando-se de execução não fiscal, segue-se o disposto no art. 792 do CPC (art. 593 no CPC/73), já no tocante à execução fiscal, o regramento é pautado no art. 185 do Código Tributário Nacional.

Não obstante a distinção, a partir da leitura dos textos normativos, percebe-se que ambas as disposições possuem a mesma finalidade: garantir o adimplemento das obrigações, punindo o devedor imbuído de má-fé que aliena seus bens de forma fraudulenta, consistindo a diferença apenas quanto ao momento em que seria presumida a fraude à execução.

Tratando-se de execução não fiscal, presumir-se-ia a fraude a partir da citação do devedor para integrar o processo de execução tal como ocorria nos casos de fraude à execução fiscal até o advento da LC 118/2005, que a antecipou para o momento da regular inscrição do crédito tributário em dívida ativa.

No entanto, e aqui repousa o ponto central do presente estudo, a jurisprudência passou a entender que, a despeito de não existir previsão expressa nesse sentido, a presunção de fraude, no tocante às execuções fiscais, seria absoluta, inadmitindo-se, portanto, prova em contrário, traduzindo-se, em alguns julgados como uma faculdade de o Poder Público perseguir os bens alienados fraudulentamente em qualquer patrimônio, inclusive nos casos envolvendo terceiros de boa-fé.

Percebendo o potencial lesivo desse tipo de interpretação, é necessário rememorar o óbvio: a persecução do bem alienado (ou onerado) ilicitamente para a efetivação do adimplemento das obrigações deve encontrar limites nas garantias constitucionalmente asseguradas ao devedor e aos terceiros que com ele realizaram negócios jurídicos, mormente se os realizaram com boa-fé, sob pena de violar os preceitos de justiça que permeiam o ordenamento brasileiro.

É à luz do compromisso constitucional que se analisará a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, proferida em sede de recursos repetitivos, em que se pretende estabelecer uma presunção absoluta de fraude à execução nos casos alienação de bens em sede de execução fiscal, desconsiderando, portanto, qualquer exame probatório, para, em seguida, discutir soluções mais consentâneas com o ordenamento jurídico brasileiro, tanto sob o viés do direito tributário quanto sob o viés dos direitos constitucional e processual.

Por fim, será feito ainda aprofundamento no que se refere às alienações de bens imóveis, sobretudo no tocante às alienações sucessivas, hipóteses em que o adquirente originário aliena o bem para terceiro alheio à relação jurídica que teria ensejado fraude à execução.


ANÁLISE DO POSICIONAMENTO DO STJ - FRAUDE À EXECUÇÃO

O Superior Tribunal de Justiça, firmando seu entendimento sobre fraude à execução na Súmula nº 375, sob vigência do CPC/73, explicitou que “o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”. Beneficiava-se o terceiro de boa-fé que adquirisse bem imóvel que se encontrava desimpedido no Registro Imobiliário, cabendo ao credor a responsabilidade de provar a má-fé desse adquirente, hipótese em que o bem adquirido responderia pela dívida.

O entendimento sumular, contudo, foi afastado pelo Tribunal Superior com o julgamento do Recurso Especial Repetitivo nº 1.141.990/PR[2], para os casos referentes a execuções fiscais, sob a justificativa de que a norma especial, o art. 185 do CTN, a partir da nova redação dada pela LC 118/2005, indicaria uma presunção absoluta (jure et de jure) de alienação fraudulenta de bens quando já houvesse inscrição na dívida ativa de crédito da Fazenda Pública em face do sujeito passivo alienante.

De acordo com a fundamentação do acórdão, a referida transformação teria ocorrido precipuamente: 1) em virtude da alteração do art. 185 do CTN pela LC118/2005, e 2) do interesse público decorrente da natureza do débito discutido em juízo. A consequência, segundo o tribunal, seria o fim do espaço para discussão acerca do reconhecimento da boa-fé, nem mesmo, por exemplo, quando houvesse sido realizada consulta perante o órgão notarial, na alienação imobiliária.

Após análise do artigo que trata da fraude à execução fiscal, percebe-se que ambos os argumentos trazidos na decisão são insustentáveis do ponto de vista exegético, posto que incapazes de servir de alicerce teórico sólido para uma guinada do entendimento. Tal afirmação é feita porque a alteração da redação do art. 185 do CTN pela LC 118/2005 se consubstancia exclusivamente na supressão do termo “em fase de execução”, antecipando o lapso temporal em que se passa a presumir a fraude:

Redação antiga: Art. 185. Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa em fase de execução.

Redação nova: Art. 185. Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa.  

Em relação ao primeiro argumento, como adiantado, observa-se que a alteração do texto do artigo apenas se referiu ao momento em que se presume a fraude à execução, não abrindo margem para a caracterização do tipo de presunção de má-fé, se absoluta ou se relativa. O segundo argumento é igualmente insustentável, pois a natureza fiscal do débito sempre foi a mesma, sempre foi permeada pelo interesse público, não sendo per si, justificativa para garantir uma presunção absoluta de fraude à execução.

Sendo assim, a partir de uma interpretação clássica do dispositivo sob exame, diversamente da conclusão a que chegou o STJ, o resultado da ilação é de que a única alteração advinda da LC 118/2005, é de que a presunção, que ocorria a partir da citação (ato que o integra ao processo de execução), passaria a ocorrer no instante da inscrição em dívida ativa, mas jamais que passou a ser absoluta, e desse modo, imutável[3].

Volvendo à perspectiva da Corte Superior, quanto ao viés prático, depreende-se a imposição de nova obrigação de cautela para realização de negócio jurídico às partes, de maneira a evitar surpresas oriundas da persecução de crédito da Fazenda Pública: a obtenção de Certidão Negativa de Débitos Fiscais, na órbita de todos os Entes Federativos.

Neste ponto, mesmo que se pudesse admitir fazer parte da máxima de experiência a exigência de certidões de débitos fiscais daquele que celebra com cautela negócio jurídico, seria irrazoável defender que, para realizar um negócio com a devida segurança jurídica, o terceiro adquirente seria obrigado a obter certidões fiscais em todos os entes federados, sendo a República Federativa do Brasil constituída por mais de 5 mil municípios, além dos 26 estados e da União[4]. Configurar-se-ia ingerência burocrática extremamente danosa na órbita das relações privadas em afronta aos princípios da eticidade, socialidade e operabilidade, aplicáveis à luz da eficácia vertical dos direitos fundamentais.

Tanto é assim que, caso se seguisse rigorosamente a decisão do STJ, esse terceiro não estaria resguardado nem se consultasse Cartório de Registro Imobiliário e constatasse a ausência de gravame/penhora no registro do imóvel a ser transferido, posto que a cautela seria incapaz de afastar a presunção absoluta da prática do ato ilícito. Desta maneira, imprescindível que a espécie de presunção prevista no art. 185 do CTN seja estabelecida à luz da Carta Magna, consoante será exposto adiante.

Ademais, jamais se poderia, de igual modo, presumir de forma absoluta que um terceiro adquirente que sequer participou da alienação fraudulenta viesse a responder com seu patrimônio por dívida proveniente de relação jurídica da qual não fez parte, tendo tolhido de si o direito de provar sua boa-fé, sendo esse tipo de interpretação claramente ilegal e inconstitucional.


FRAUDE À EXECUÇÃO NO CPC/15

O Novo Código de Processo Civil de 2015, a fim de satisfazer os anseios pela efetividade das normas relativas à satisfação dos direitos dos credores, através, por exemplo, previsão da multiplicidade de foros competentes para a propositura da execução fiscal (art.46, §5º), estabeleceu o enrijecimento de regras garantidoras da execução, afastando, em parte, o preceito cristalizado pelo STJ na Súmula nº 375 no tocante às execuções não fiscais.

Como mencionado, de acordo com a previsão sumular, preponderava a presunção relativa de boa-fé em favor do terceiro adquirente de imóvel, cabendo ao exequente provar a má-fé dos envolvidos na transação ou de já existir registro de penhora alienado antes da alienação. O posicionamento, no entanto, tende a ser modificado em face da previsão contida no art. 792 do NCPC:

Art. 792.  A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução:

I - quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver;

II - quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, na forma do art. 828;

III - quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude;

IV - quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência;

V - nos demais casos expressos em lei.

§ 1o A alienação em fraude à execução é ineficaz em relação ao exequente.

§ 2o No caso de aquisição de bem não sujeito a registro, o terceiro adquirente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem.

§ 3o Nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar.

§ 4o Antes de declarar a fraude à execução, o juiz deverá intimar o terceiro adquirente, que, se quiser, poderá opor embargos de terceiro, no prazo de 15 (quinze) dias.

O artigo transcrito, ao tratar das hipóteses em que será constatada a fraude à execução, prevê que ela passará a ser presumida “quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência”, aduzindo também, no inciso V, que o rol do artigo não é exaustivo, mas admite a previsão em legislação esparsa.

Ao se analisar o trabalho do legislador responsável pela elaboração do Novo Código Processual, percebe-se a consecução do objetivo que teria sido pretendido pelo Superior Tribunal de Justiça: endurecer as normas que versam acerca da cautela ao se realizar negócio jurídico com a finalidade de evitar a fraude à execução, sem, contudo, desrespeitar uma série de direitos e garantias.

Em dissonância com a conclusão a que chegou o STJ no recurso especial nº 1.141.990/PR, analisado anteriormente, de que existiria uma presunção absoluta de má-fé do terceiro adquirente, o Diploma Processual, embora tenha estabelecido a consubstanciação da fraude à execução nos casos em que se encontrava em trâmite ação capaz de reduzir o devedor à insolvência, deixa clara a necessidade de averbação no registro público (incisos I, II e III).

Ademais, no §2º do art. 792, referiu-se expressamente que a cautela exigida do terceiro adquirente para a aquisição de bens, mediante a exibição das certidões pertinentes, restringidas aos locais de domicílio do vendedor e ao local onde se encontra o bem apenas para os bens que não estariam sujeitos a registro, já que, a contrario sensu, as precauções relativas aos bens sujeitos a registro seriam observadas com o seu exame em Cartório.

Assim, é forçoso concluir que, a partir da visão do CPC/15, a súmula nº 375 do STJ deverá ser cancelada, devendo ser afastada ao menos a presunção relativa de boa-fé do terceiro adquirente que, consoante disposição legal, transladaria, posicionando-se em favor do exequente[5].


INCONSTITUCIONALIDADE DA INTERPRETAÇÃO QUE ADOTA A PRESUNÇÃO ABSOLUTA DO TERCEIRO NA FRAUDE À EXECUÇÃO

É tema livre de controvérsias a aquisição de força normativa pelos princípios no Ordenamento Jurídico Brasileiro e indiscutível que, sendo eles de órbita constitucional, são hierarquicamente superiores à legislação infraconstitucional nos casos de conflitos de normas. Partindo dessa premissa, não deve ser controvertido o ponto de que, sendo demonstrado que uma interpretação do art. 185 do CTN é nociva ao ordenamento jurídico a ponto de esvaziar o conteúdo de diversos princípios e direitos fundamentais, não há como admiti-la. Não obstante, é justamente o que acontece quando se propõe uma presunção absoluta de má-fé!

4.1 VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ

A presunção absoluta de má-fé é inaceitável, antes de tudo, porque viola direta o princípio da boa-fé objetiva que, embora não esteja previsto expressamente na Constituição Federal, é princípio intrinsecamente ligado à dignidade da pessoa humana, à democracia, ao devido processo legal, entre outras normas, dado que, consoante propõe o STJ, seria indiferente se a atuação do terceiro foi intencional ou não, se teve relação ou não com aqueles que praticaram a fraude à execução, inviabilizando sua defesa.

No Brasil, a adoção dos preceitos da boa-fé objetiva, de origem alemã, passou a prevalecer a partir do Código Civil de 2002, sendo responsável por afastar considerações subjetivas concernentes ao responsável pela obrigação, exigindo-se uma conduta sempre pautada na confiança e lealdade, teoria que passou a ser aplicada como cláusula geral para além das convenções particulares e se alastrando para todas as relações jurídicas[6].

No mesmo sentido, entende o STJ, reconhecendo que a proteção à confiança ultrapassa os limites do Código Civil e influencia na interpretação do Direito Público:

“PRINCÍPIO DA CONFIANÇA, PRETENSÃO À PROTEÇÃO E MORALIDADE ADMINISTRATIVA. Prestigia-se o primado da confiança, assente no § 242, Código Civil alemão, e constante do ordenamento jurídico brasileiro como cláusula geral que ultrapassa os limites do Código Civil (arts.113, 187 c/c art.422) e que influencia na interpretação do Direito Público, a ele chegando como subprincípio derivado da moralidade administrativa. Ao caso aplica-se o que a doutrina alemã consagrou como "pretensão à proteção" (Schutzanspruch) que serve de fundamento à mantença do acórdão recorrido”. (grifo nosso). (REsp Nº 944.325/RS).

Nesse contexto, a doutrina pátria aponta a existência de uma Tríplice Função da Boa-fé Objetiva, complementares entre si, quais sejam: a função interpretativa, presente no art. 113 do CC, “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”; a função de fonte de criação de deveres anexos à prestação principal, materializado em deveres como os de informação, de sigilo ou colaboração; “impedir o exercício de direitos em contrariedade à lealdade e confiança”, vedando-se comportamentos que, apesar de admitidos por lei ou contrato, colidem com o conteúdo geral de boa-fé[7].

Como explicado, com base em entendimento do próprio STJ, a atuação pautada na confiança e boa-fé transborda o Direito Privado, permeando o Direito Público através do princípio da moralidade administrativa, devendo-se ser também aplicáveis às funções interpretativas, supletivas e limitativas quando se aufere o significado normativo do art. 185 do CTN.

Sendo assim, de acordo com o referido dispositivo, quando se afirmar que se presume “fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas”, para apurar a natureza dessa presunção, frente a interpretações diversas, “o intérprete deve privilegiar aquelas mais condizentes com a verdadeira intenção das partes e que esteja de acordo com a atuação segundo a boa-fé”[8], ou seja, espera-se que a norma seja suplementada, tendo como base a expectativa de uma conduta leal e confiável, de acordo com os parâmetros de conduta para as relações jurídicas. Parâmetros estes, que configuram fatores limitativos impostos com base na cláusula geral de boa-fé além dos preceitos constitucionais.

A par da necessidade de observância das esferas do princípio da boa-fé, com base em entendimento consolidado pelo próprio STJ, parte-se para um visão mais geral, apontando os danos decorrentes de uma interpretação que presume de forma absoluta a fraude à execução fiscal, que fere diversas normas constitucionais.

4.2 DESRESPEITO A OUTROS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Desde logo, denuncia-se o desrespeito ao devido processo legal, em virtude dos obstáculos desproporcionais à defesa de terceiros que realizaram negócios jurídicos de boa-fé, consoante se infere da previsto no art. 5º, LIV, da CF: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Isso porque é evidente que não pode ser considerado processo devido aquele em que não se admite o livre exercício dos subprincípios do contraditório e da ampla defesa.

Ainda mais, porque, conforme elucida Daniel Assumpção, “além do aspecto processual, também se aplica atualmente o devido processo legal como fator limitador do poder de legislar da Administração Pública”[9], combatendo-se entendimentos que concederiam privilégios inconstitucionais à Fazenda Pública.

Seguindo essa linha de raciocínio, não havendo direito ao devido processo legal e se ignorando o comportamento pautado na boa-fé, ter-se-ia como consectário o descumprimento do direito fundamental do Acesso à Ordem Jurídica justa, extraído do art. 5º, XXXV, da CF, posto que não basta que o Poder Judiciário analise a lesão, mas é fundamental que o faça de maneira justa, sob pena de os tribunais servirem apenas para legitimar a execução de atos arbitrários.

Somado a isso, rememora-se que a presunção absoluta de fraude à execução do terceiro adquirente foi alicerçada no interesse público, mas que o fez, com a devida vênia, por um viés restrito, servindo exclusivamente como justificativa para os anseios arrecadatórios do Estado. É dessa forma, pois olvidou-se da faceta do princípio cuja função é a limitação da supremacia do interesse público sobre o particular, em garantia da concretização das diretrizes constitucionais.

Assim, com base nesses princípios, que servem de Pedras de Toque para o Direito Administrativo, entende-se que o Estado, para que atinja a seus fins, dentre os quais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, deve atuar com fundamento na dignidade da pessoa humana e em observância aos direitos e às garantias dos administrados. É sob essa ótica que deve ser protegido o interesse público, visto que, de outro modo, serviria tão somente como fundamento para extirpar direitos do administrado.

Não se pode aceitar interpretação em sentido contrário, pois, estar-se-ia concedendo poder incondicionado à Administração Pública para adentrar na esfera patrimonial dos particulares independentemente dos direitos que lhe conferem à Lei Maior citados acima, além de outros, como o da legalidade e o da propriedade (art. 5º, XXII, da CF).

Estar-se-ia, na realidade, operando-se um retrocesso a um sistema análogo ao dos governos absolutistas em que o Rei não se submetia à lei e era protegido pela irresponsabilidade em relação a seus atos, em desrespeito aos princípios federativos e em desprezo ao Princípio da Proibição ao Retrocesso, já reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal.


 INTERPRETAÇÃO DO ART. 185 DO CTN À LUZ DO DIREITO TRIBUTÁRIO PENAL – RESPONSABILIDADE POR INFRAÇÕES

Os artigos 136 e 137 do Código Tributário Nacional, disciplinam a denominada responsabilidade tributária por infrações. Nos termos do art. 136 do CTN, a regra, para que ocorra a responsabilização do agente que age em desacordo com a legislação tributária, é de que “independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato”, motivo pelo qual a doutrina vem entendendo se tratar de responsabilidade objetiva[10]. Isso significa dizer que, havendo nexo causal entra a conduta danosa do infrator e o resultado, haverá responsabilização, desconsiderando-se a existência de dolo ou culpa[11].

A regra de responsabilização objetiva, todavia, não é preceito absoluto e vem sendo afastada pelo Superior Tribunal de Justiça em casos em que o acusado agiu com boa-fé[12], posicionamento este que foi sedimentado inclusive na Súmula nº 509: “É lícito ao comerciante de boa-fé aproveitar os créditos de ICMS decorrentes de nota fiscal posteriormente declarada inidônea, quando demonstrada a veracidade da compra e venda”.

Em julgado que tratou da situação sumulada, o STJ chegou à conclusão de que a verificação da idoneidade das notas fiscais é atribuição do Fisco, entendendo que “a responsabilidade objetiva prevista no art. 136 do CTN aplica-se ao alienante e não ao adquirente[13]”. Ou seja, chegou-se à conclusão de que não deveriam ser desconsiderados os elementos subjetivos da responsabilização nos casos em que o terceiro agiu com boa-fé, situação agravada ainda pelo fato de que persistia a obrigação da Administração Pública em verificar a validade das notas fiscais. 

Analisando a ratio do julgado, não há razão para não aplicá-la aos casos das fraudes às execuções fiscais, caso comprovado que o terceiro não tinha condições identificar a atividade maliciosa do alienante, mormente em razão de omissão da Fazenda Pública em penhorar bens ou emitir certidões, ainda mais quando se trata de registro de gravame no Cartório de Registro Imobiliário.

Isso porque, para que se realize a transferência de bens sujeitos a registro, como os imóveis, é imprescindível que o oficial de registro exija certidões que atestem a inexistência de registros de crédito tributário vencidos e não quitados referentes ao bem objeto da transferência[14]. Isso significa que, para que o bem seja transferido, é necessário comprovar que o alienante esteja em situação de regularidade fiscal e, nesse caso, a ausência de inscrição de gravame sobre o imóvel, que denunciaria o contrário, apenas poderia ser imputada a erro do Tabelião ou à inércia da Fazenda Pública. Sendo assim, excluída a responsabilização do adquirente de boa-fé, caso persista algum débito, a Administração deverá cobrá-lo do anterior proprietário.

Em outro sentido, mesmo que se admitisse a existência de dúvida quanto à natureza da presunção de fraude à execução estampada no texto do art. 185 do CTN, que não define de forma expressa se tratar de presunção absoluta ou de presunção relativa, a despeito de todos os argumentos levantados para rechaçar a primeira, ainda assim, não se poderia alcançar a conclusão de que ela seria inafastável, pois se feriria o princípio de direito tributário penal de interpretação benigna em matéria de infrações, em caso de dúvida, aplicado às leis que definem infrações ou cominam penalidades e positivado no art. 112 do CTN[15].

 Art. 112. A lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto:

I - à capitulação legal do fato;

II - à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos;

III - à autoria, imputabilidade, ou punibilidade;

IV - à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação.

De acordo com o dispositivo, existindo incertezas quanto à correta aplicação das normas, estas devem ser interpretadas maneira favorável ao acusado. Portanto, havendo dúvida decorrente da omissão legislativa, dentre as quais as que atingem a imputabilidade e a punibilidade, como é o caso daquela relativa à natureza da presunção, não é escorreito selecionar a interpretação mais gravosa ao acusado, exclusivamente por conveniência do Estado, mas aplicar aquela mais favorável ao acusado, qual seja, a de que a presunção de fraude à execução seja relativa.


6. AUSÊNCIA DE INSCRIÇÃO DE GRAVAME/PENHORA NO CARTÓRIO DE REGISTRO IMOBILIÁRIO – ATUAÇÃO CONFORME A LEI

Como se sabe, deve-se sempre exigir a adoção de uma postura diligente pelo terceiro na realização de negócios jurídicos. A atuação cautelosa é configurada com a consulta no Registro Público, em relação aos bens em que necessitem registro, ou, nos demais casos, a verificação de certidões fiscais que possibilitem a identificação inscrição na dívida ativa.

No tocante aos bens não sujeitos à registro objetos de transação, para a prevenção da fraude à execução, é razoável a exigência de obtenção de certidões, mas, em regra, apenas àquelas obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem, tal como passa a ocorrer no caso das execuções não fiscais após a edição do Código Processual de 2015. Não se deve, desse modo, presumir absolutamente a fraude à execução, sob pena de engessar ou inviabilizar dos atos negociais, através da burocratização excessiva relativa à obtenção de certidões ou da ausência de segurança jurídica.

No tocante aos bens sujeitos a registro, é ainda mais evidente o descompasso entre a interpretação conferida ao art. 185 do CTN pelo STJ e o restante do ordenamento jurídico, visto que, caso impere uma presunção absoluta de fraude à execução, estar-se-ia quebrando da confiança do administrado com pessoa jurídica prestadora de serviço público, esvaziando de eficácia sua função precípua: a de conferir segurança jurídica através de atos registrais.

Ademais, qualquer dúvida acerca de tal observação pode ser dirimida ao se observar a Lei nº7.433/85 (alterada pela Lei 13.097/15), relativa à lavratura de atos notariais, que atribui ao Tabelião a responsabilidade de consignação de certidões fiscais e de certidões de ônus reais:

Lei nº 7.433/85

Art 1º - Na lavratura de atos notariais, inclusive os relativos a imóveis, além dos documentos de identificação das partes, somente serão apresentados os documentos expressamente determinados nesta Lei.

(...)

§2ºo Tabelião consignará no ato notarial a apresentação do documento comprobatório do pagamento do Imposto de Transmissão inter vivos, as certidões fiscais e as certidões de propriedade e de ônus reais, ficando dispensada sua transcrição”. (Redação dada pela Lei 13.097/2015).

§ 3º - Obriga-se o Tabelião a manter, em Cartório, os documentos e certidões de que trata o parágrafo anterior, no original ou em cópias autenticadas. (grifo nosso)[16].

A partir do dispositivo transcrito, percebe-se que a previsão legal obriga o registro de qualquer gravame/penhora sobre o imóvel e exige expressamente, inclusive, a manutenção das certidões de débitos fiscais, de propriedade e de ônus reais relativas ao imóvel em cartório.

A partir dessa constatação, no caso de não haver consignação de qualquer gravame/penhora na lavratura da escritura pública de compra e venda, chega-se a duas conclusões relevantíssimas: 1) a omissão do registro de certidões fiscais e ônus reais pode ser imputada ao Tabelião ou à Fazenda Pública, mas jamais ao terceiro adquirente de boa-fé 2) A lei deve ser aplicada tanto nos casos que envolvem execuções fiscais, quanto naqueles que envolvem execuções não fiscais, em virtude da menção expressa a débitos fiscais.

Em relação ao primeiro ponto, percebe-se que, uma vez que fosse admitida uma presunção absoluta de má-fé em face do terceiro adquirente, estar-se-ia, em verdade, punindo que aquele que a todo tempo agiu em estrita observância à legalidade em sua atuação negocial e ferindo o princípio da confiança do administrado, já que a embargante concretizou o negócio jurídico perante a tutela de órgão que exercia serviço público por delegação.

Já no tocante à segunda constatação, destaca-se que não só a lei deixou de fazer qualquer ressalva a respeito de sua aplicação aos casos de execução fiscal, como tratou explicitamente acerca da responsabilidade do Tabelião de consignar as certidões fiscais, sendo incabível o argumento de que a norma teria sua aplicabilidade afastada em razão da especialidade no tocante às execuções fiscais.

Conclui-se, dessa forma, que, embora se possa admitir uma presunção legal relativa de fraude à execução fiscal de imóvel por sujeito inscrito na dívida ativa nas alienações diretas, não é plausível tornar tal presunção absoluta, impossibilitando a defesa do terceiro de boa-fé, posto que contrário ao ordenamento jurídico brasileiro.


TERCEIRO DE BOA-FÉ – ALIENAÇÕES SUCESSIVA

Outro ponto relevante a se discutir é o caso das alienações sucessivas, que se refere àqueles casos em que o sujeito que sofreria a perda do bem sequer teria participado da relação jurídica que teria ensejado a fraude à execução, trata-se de situações em que o terceiro de boa-fé adquire imóvel de pessoa diversa da qual houve imputação do ato ilícito fraudulento.

Tais casos não são análogos ao do REsp nº. 1.141.990/PR, no entanto, alguns tribunais passaram a utilizar a decisão paradigmática para embasar a persecução do bem alienado fraudulentamente na relação jurídica originária, mesmo quando posteriormente alienados a terceiros de boa-fé que figuram em posição distante da relação ilícita do ponto de vista da cadeia dominial do imóvel.

Há diversos julgados afastando esse tipo de interpretação, a exemplo de decisão que espelha o entendimento da Terceira Turma do Egrégio Tribunal Regional Federal da 5ª Região, denunciando não ser razoável exigir do último comprador que investigue toda a cadeia dominial do imóvel, em busca de certidões negativas dos proprietários anteriores, acrescentando ainda que não pode o embargante ser penalizado pela inércia da Fazenda que não realizou o registro da penhora na matrícula do imóvel:

PROCESSO CIVIL. TRIBUTÁRIO. EMBARGOS DE TERCEIRO EM EXECUÇÃO FISCAL. ALIENAÇÃO SUCESSIVA DE IMÓVEL. INEXISTÊNCIA DE REGISTRO DA PENHORA. BOA-FÉ DO ADQUIRENTE. FRAUDE À EXECUÇÃO NÃO CONFIGURADA. APELAÇÃO NÃO PROVIDA.

1. Insurgência recursal contra sentença que julgou procedente o pedido formulado em embargos de terceiros para determinar o levantamento da penhora realizada nos autos da execução fiscal nº. 0002053-55.2005.4.05.8001 sobre o imóvel de matrícula nº. 39740.

2. O Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar o REsp nº. 1141990/PR, consolidou o entendimento de que "(...) a alienação engendrada até 08.06.2005 exige que tenha havido prévia citação no processo judicial para caracterizar a fraude à execução; se o ato translativo foi praticado a partir de 09.06.2005, data de início da vigência da Lei Complementar nº. 118/2005, basta a efetivação da inscrição em dívida ativa para a configuração da figura da fraude; (...)".

3. A aplicação do entendimento adotado no REsp nº. 1141990/PR não deve ser automática, devendo-se atentar para as peculiaridades de cada caso, podendo a presunção de fraude ser afastada quando o terceiro comprovar de forma inequívoca a sua boa-fé, a qual somente pode ser alegada quando não houver o registro de penhora ou de qualquer gravame sobre o bem.

4. Não se vislumbra a má-fé do embargante, ora apelado, uma vez que adquiriu o imóvel objeto de venda sucessiva, sem que houvesse qualquer indício de ocorrência de conluio fraudulento entre ele e o vendedor ou entre ele e o executado originário.

5. No caso de alienações sucessivas de imóveis, não é razoável exigir do último comprador que investigue toda a cadeia dominial do imóvel, em busca de certidões negativas dos proprietários anteriores, sendo suficiente que a última compra tenha seguido todos os trâmites legais.

6. O embargante não pode ser penalizado pela inércia da Fazenda Nacional que não realizou o registro da penhora na matrícula do imóvel, deixando de dar publicidade a terceiros acerca da constrição realizada.

7. Não se pode olvidar que o artigo 8º do Código de Processo Civil preceitua que o juiz, ao aplicar o ordenamento jurídico, atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando, dentro outros princípios, a proporcionalidade e a razoabilidade.

8. É válida, portanto, a alienação à terceiro, que adquiriu o bem sem conhecimento da constrição judicial, amparado pela boa-fé, de modo que, não constatada a existência de fraude à execução na aquisição feita pelo mesmo, é de se considerar como ilegítima a penhora levada a efeito nos autos da execução fiscal, sendo a manutenção da sentença medida que se impõe.

9. Honorários recursais, previstos no art. 85, parágrafo 11 do Código de Processo Civil, a cargo da apelante, devendo a verba honorária sucumbencial ser majorada de 10% para 12% sobre o valor da condenação.

10. Apelação não provida. (...)[17]

No julgado, por entender que a interpretação e a aplicação da norma jurídica tenham como corolário a boa-fé, na Turma citada, chegou-se à conclusão de que “não haveria como considerar irrelevante eventual inexistência de registro de gravame/penhora, à época da alienação”, afastando a presunção absoluta da fraude em tais casos.

Ademais, há entendimento em sede decisões monocráticas no próprio STJ, afastando a presunção absoluta de fraude à execução no caso das alienações sucessivas. Para chegar a tal conclusão, o Excelentíssimo Ministro Relator Herman Benjamin[18] utilizou como justificativa o fato de que, de acordo com a previsão legal do art. 185 CTN, a presunção de fraude à execução só ocorreria em relação ao sujeito em débito com a Fazenda Pública. Ou seja, em relação a crédito regularmente inscrito como dívida ativa, o que não ocorreria no caso das alienações sucessivas, dado que só haveria inscrição de débito em dívida ativa do alienante originário, mas não daqueles que revenderam o imóvel em seguida.

Trata-se, na verdade, de afastamento, por vias oblíquas, da aplicação irrestrita da presunção absoluta de fraude à execução sedimentada em sede de recursos repetitivos pelo STJ, buscando-se salvaguardar os direitos do terceiro de boa-fé, que participou de alienação em estrita observância do ordenamento jurídico, através do isolamento do contexto de fraude à execução à alienação fraudulenta originária, considerando-se válidas as demais, sem, contudo, afrontar diretamente o precedente estabelecido pela Corte.

Sendo assim, no tocante às alienações sucessivas, a situação é diferente, uma vez que a presunção relativa deve militar a favor da boa-fé do terceiro que adquiriu imóvel sem qualquer gravame/penhora no Cartório de Registros Imobiliários, dado que sequer participou da relação fraudulenta originária.


CONCLUSÃO

Consoante exposto, o Superior Tribunal de Justiça, objetivando coibir as fraudes às execuções, sobretudo, às execuções fiscais, firmou o entendimento de que a sua súmula de nº 375 seria inaplicável no caso destas últimas, passando a admitir que, a partir da inscrição de crédito da Fazenda Pública em dívida ativa, a alienação realizada pelo devedor insolvente, ou a ponto de se tornar insolvente, em prejuízo a credores, seria presumivelmente fraudulenta e que essa presunção seria absoluta.

Na prática, o posicionamento do STJ garantiria uma persecução incondicionada do bem pela Fazenda Pública, ignorando qualquer discussão a respeito da boa-fé do terceiro adquirente, despindo-o de segurança nas relações jurídicas, mesmo que travadas em regular exercício de seus direitos, e impedindo-o de dispor de qualquer meio de defesa relativas à sua responsabilização por deveres decorrentes de relação obrigacional que jamais fez parte.

Tal situação chegou ao cúmulo de existirem decisões proferidas pelos tribunais pátrios que estendiam o entendimento de que a presunção absoluta de fraude à execução fosse aplicada inclusive para os casos de terceiros que adquiriram imóveis em cadeias sucessivas de alienação e aquisição, hipótese em que, mesmo que se realizasse consulta acerca da existência de processos pendentes em face do alienante imediato e constatação da resposta negativa, esta não seria suficiente, posto que se passaria a exigir o procedimento para todos os participantes anteriores da cadeia dominial.

No tocante a tais casos, analisou-se julgado no âmbito do próprio Superior Tribunal de Justiça que afastou a presunção absoluta de má-fé, que considerou inaplicável o precedente firmado com o julgamento do REsp nº. 1141990/PR, com base precipuamente no fato de que, nessa hipótese, não estaria presente o requisito básico da fraude à execução fiscal, qual seja, a inscrição em dívida ativa do nome do alienante do imóvel. A partir dessa conclusão, já se percebe uma ponderação da presunção, que não seria mais absoluta, mas relativa.

Ademais, como exposto ao longo do artigo, a impossibilidade de se provar a boa-fé do adquirente no em caso sob deslinde, vai de encontro ao princípio da confiança, posto que a legislação pátria atribui a obrigação de os órgãos públicos impedirem a própria transferência em caso de pendências fiscais relativas a bens imóveis. Sendo assim, embora louvável o esforço do Tribunal Superior em endurecer as regras que objetivavam o combate às fraudes às execuções fiscais, é inadmissível que essa mudança de postura seja feita ao arrepio dos direitos fundamentais estabelecidos pela Constituição Federal de 1988.

Destarte, com o fito de atingir o propósito aparentemente almejado pelo STJ, defende-se a reaproximação do regramento referente à fraude à execução fiscal daqueles concernentes às execuções não fiscais, reconhecendo os avanços positivados no artigo 792 do Código de Processo Civil de 2015, que enrijecem as regras concernentes às fraudes às execuções fiscais, mas impõe condições para que prevaleça a presunção de fraude à execução e não a apresenta como sendo absoluta.


REFERÊNCIAS

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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 08 de janeiro de 2018.

BRASIL. Lei federal nº 7.433, de 18 de dezembro de 1985, que dispõe sobre os requisitos para a lavratura de escrituras públicas e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7433.htm. Acesso em: 08 de janeiro de 2018.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.148.444/MG, Relator: Ministro Luiz Fux, data do julgamento: 14 de abril de 2010, publicação no DJe: 27 de abril de 2010.

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TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 6ª ed. São Paulo: Método, 2016.


Notas

[1] TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 6ª ed. São Paulo: Método, 2016, p. 284.

[2]PETERSEN, Raphael de Barros. A presunção absoluta da má-fé na fraude à execução fiscal. Disponível em: <http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/index.htm?http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao062/Raphael_Petersen.html>. Acesso em: 26 de dezembro de 2017.

[3] PETERSEN, Raphael de Barros. A presunção absoluta da má-fé na fraude à execução fiscal. Disponível em: <http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/index.htm?http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao062/Raphael_Petersen.html>. Acesso em: 26 de dezembro de 2017.

[4]PETERSEN, Raphael de Barros. A presunção absoluta da má-fé na fraude à execução fiscal. Disponível em: <http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/index.htm?http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao062/Raphael_Petersen.html>. Acesso em: 26 de dezembro de 2017.

[5] SOBRAL, Cristiano. O atual CPC e a Súmula 375 do STJ. Disponível em: <http://blog.cristianosobral.com.br/o-atual-cpc-e-sumula-375-do-stj/>. Acesso em: 16 de outubro de 2017.

[6]DINIZ, Carlos Eduardo Iglesias. A boa fé objetiva no direito brasileiro e a proibição de comportamentos contraditórios. Disponível em: http://www.emerj.tjrj.jus.br/serieaperfeicoamentodemagistrados/paginas/series/13/volumeI/10anosdocodigocivil_61.pdf. Acesso em: 23 de outubro de 2017.

[7] DINIZ, Carlos Eduardo Iglesias. A boa fé objetiva no direito brasileiro e a proibição de comportamentos contraditórios, p. 65 a 68. Disponível em: <http://www.emerj.tjrj.jus.br/serieaperfeicoamentodemagistrados/paginas/series/13/volumeI/10anosdocodigocivil_61.pdf>. Acesso em: 23 de outubro de 2017.

[8] Ibidem, p. 61 e 66.

[9] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil Comentado. Salvador: Editora Juspodivm 2016, p. 19.

[10] ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 9ª Edição. São Paulo: Editora Método, 2017, p. 417.

[11] Ibidem, p. 418 e 419.

[12] Ibidem, p. 419.

[13] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.148.444/MG, Relator: Ministro Luiz Fux, data do julgamento: 14 de abril de 2010, publicação no DJe: dia 27 de abril de 2010.

[14] ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 9ª Edição. São Paulo: Editora Método, 2017, p. 388 e 389.

[15] ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 9ª Edição. São Paulo: Editora Método, 2017, p p. 313.

[16] BRASIL. Lei federal nº 7.433/85, que dispõe sobre os requisitos para a lavratura de escrituras públicas e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7433.htm. Acesso em: 08 de janeiro de 2018.

[17] BRASIL. Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Embargos de Terceiro em Execução Fiscal. Processo nº 08006321120164058001 AC/AL. Apelante: Apelado: Relator: Desembargador Federal Carlos Rebêlo Júnior, 3ª Turma. Julgamento: 31/07/2017. https://www5.trf5.jus.br/boletins/jurisprudencia/arquivos/A2017_10.pdf. Acesso em: 08 de janeiro de 2018.

[18] BRASIL. REsp 1666827/PR, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 13/06/2017, DJe 30/06/2017.



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