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Providências preliminares, saneamento e julgamento conforme o estado do processo

Providências preliminares, saneamento e julgamento conforme o estado do processo

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A nova disciplina desses procedimentos impõe um esforço conjunto entre todos os partícipes do processo, para que se obtenha, sem protagonismos e em tempo razoável, uma decisão de mérito justa e efetiva.

I – Consideração inicial:

O presente trabalho aborda a temática das providências preliminares, do saneamento e o julgamento conforme o estado do processo disciplinada nos capítulos IX e X do Livro I da Parte Especial da Lei 13.105/2015, que instituiu o novo Código de Processo Civil (NCPC) em cotejo analítico com o diploma revogado (Código de Processo Civil de 1973 – CPC/1973).

Valendo-se da militância advocatícia e das experiências acadêmicas vivenciadas ao longo do primeiro ano de vigência da nova sistemática processual, o presente trabalho apresenta os institutos em tela e as inovações específicas, sua interpretação doutrinária e jurisprudencial e, sobretudo, o impacto gerado na atuação dos atores do processo, sem a pretensão de esgotar o assunto ou trazer soluções definitivas.

Com efeito, a nova disciplina do tema abordado impõe um esforço conjunto entre todos os partícipes do processo, para que se obtenha, sem protagonismos e em tempo razoável, uma decisão de mérito justa e efetiva.


I – Atividade de saneamento e providências preliminares:

Escoado o prazo de resposta do réu, inicia-se uma nova fase do procedimento comum denominada “fase de saneamento ou ordenamento do processo” na qual o juiz adotará uma série de medidas prévias que deixarão o processo apto a receber uma decisão: o “julgamento conforme o estado do processo” (DIDIER JR., 2017, p. 769).

Tanto no CPC/1973 quanto no NCPC de 2015 prepondera o método concentrado de saneamento do processo. Porém, o expurgo de vícios processuais pode (e deve) ser realizado ao longo do procedimento (saneamento difuso), desde o recebimento da Petição Inicial (MOREIRA, 1985, p. 109).[1]

Com efeito, não se confunde saneamento com fase de saneamento, momento processual em que os atos profiláticos tornam-se mais concentrados.

O art. 347 do NCPC é substancialmente idêntico ao art. 323 do CPC/1973. Traz, contudo, duas sutis mudanças.

Conquanto o novo Diploma tenha afastado, em várias passagens de seu texto, a confusão técnica entre contestação e resposta, respectivamente espécie e gênero, fê-lo equivocadamente em relação ao art. 347 constando que as providências preliminares serão tomadas após o prazo da “contestação”, e não da “resposta”, como corretamente previsto no dispositivo revogado.[2]

Por outro lado, não há mais o prazo de 10 (dez) dias para que o juiz determine as providências preliminares, aplicando-se supletivamente a regra geral dos arts. 226 e 227 do atual Código.

São inúmeras as providências preliminares que podem ser tomadas pelo juiz e elas variarão segundo a postura adotada pelo réu ao ser convocado para integrar a relação processual. Ei-las:

  1. Se o réu apresenta defesa indireta, ou seja, deduz fato novo à demanda ou questões atinentes à admissibilidade, juntando ou não documento, o juiz deverá intimar o autor para manifestar-se no prazo de 15 (quinze) dias (réplica), o qual poderá produzir qualquer meio de prova para impugnação da citada modalidade de defesa, nos moldes dos arts. 350, 351 e 437, §1º, ambos do NCPC.[3]
  2. Se o réu apresenta defesa direta, ou seja, não agrega fato novo à demanda, mas se limita a negar os fatos constitutivos da pretensão ou, embora os admita, nega-lhes as consequências jurídicas e junta documento aos autos, o juiz também deverá ouvir o autor no interstício de 15 (quinze) dias, a teor do art. 437, §1º, do NCPC. Se o réu não apresenta documento, não haverá motivo para a réplica do autor.[4]
  3. Se há defeitos processuais que possam ser corrigidos, o juiz determinará a sua retificação em prazo não superior a 30 (trinta) dias (art. 352, NCPC).
  4. Se o réu reconveio, a providência será intimar o Autor, na pessoa do advogado constituído, para oferecer resposta em 15 (quinze) dias (art. 343, §1º, NCPC).
  5. Se o réu alegar ilegitimidade passiva e indicar o legitimado correto (antiga figura da nomeação à autoria) ou se promover denunciação da lide, chamamento ao processo ou requerer intervenção de amicus curiae, o juiz adotará as providências necessárias para adequação do polo passivo ou as intervenções pertinentes.
  6. O magistrado deverá, ainda, verificar se é o caso de intervenção do Ministério Público (MP) como fiscal da ordem jurídica (art. 178, NCPC); da Comissão de Valores Imobiliários (CVM) na forma do art. 31 da Lei nº 6.385/1976, do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) na forma do art. 118 da Lei nº 12.529/2011 ou de qualquer outro órgão/entidade cuja presença no processo seja obrigatória por força de lei.
  7. O juiz decidirá sobre eventual impugnação ao valor da causa apresentada pelo réu na contestação.
  8. O juiz decidirá sobre eventual alegação de incompetência, determinando ou não a remessa dos autos ao juízo competente.
  9. O juiz decidirá sobre eventual pedido de revogação dos benefícios da gratuidade da justiça concedida ao autor, após ouvi-lo;
  10. Se houver revelia, deverá o juiz verificar, primeiramente, a validade da citação (condição de eficácia e validade do processo);
  11. Se a revelia se deu em função de citação ficta (edital ou hora certa) ou se o réu estiver preso (art. 72, II, NCPC), o juiz nomeará curador especial, múnus que será exercido pela Defensoria Pública enquanto não for constituído advogado nos autos.
  12. Se, não obstante a revelia, a presunção de veracidade dos fatos afirmados pelo autor (confissão ficta da matéria fática) não se tiver produzido (art. 345, NCPC), deve o juiz intimar o autor para especificar as provas que pretende produzir em audiência (art. 348, NCPC)[5] no prazo de 05 (cinco) dias, na forma do art. 218. §3º do NCPC, aplicado supletivamente ante a omissão legislativa.[6]

Vale o registro do fim da chamada “ação declaratória incidental”, providência preliminar prevista no CPC/1973, cujo propósito, em linhas gerais, era transformar a análise de uma questão incidental em principal cobrindo-a com o manto da coisa julgada e tornando-a indiscutível. O NCPC muda substancialmente o sistema de coisa julgada e todo o regime jurídico em relação às questões prejudiciais e incidentais. A coisa julgada agora pode estender-se às questões prejudiciais e incidentais e não apenas à questão principal como outrora (art. 503, §1º, NCPC).


II – Do julgamento conforme o estado do processo:

Ultrapassada a fase de saneamento, ainda que nenhuma das providências preliminares tenha sido necessária, o processo chega ao momento em que o juiz proferirá uma decisão: o julgamento conforme o estado do processo.

Abrem-se ao julgador 05 (cinco) caminhos possíveis, cujo pronunciamento poderá assumir a tanto a feição de uma sentença como de uma decisão interlocutória e dizer respeito a apenas parte do processo. Ei-los:

  • A primeira possibilidade que se descortina é a extinção do processo sem a resolução do mérito (art. 354 c/c 485, do NCPC): trata-se da hipótese da sentença que não examina o mérito ou terminativa[7], de conteúdo eminentemente processual. Ao tempo em que expressa a economia processual diante da inutilidade da continuação do processo, não deixa de ser uma decisão anômala que gera uma crise de instância, na medida em que o feito não terminará da forma esperada[8]. Nessa hipótese, o juiz não julga (o pedido) nem emite opinião sobre o mérito da causa. Seu comando limita-se a extinguir o processo.[9] Ressalta-se que essa decisão pode ser parcial, quando a extinção sem a resolução do mérito diz respeito a apenas parcela do processo, contra a qual cabe agravo de instrumento por se tratar de uma decisão interlocutória (art. 354, parágrafo único, NCPC).[10]
  • A segunda variante é a extinção do processo com a resolução do mérito pelo reconhecimento de prescrição ou decadência (art. 354 c/c 487, II, do NCPC): o legislador trata a hipótese como sentença de mérito apta a ficar imune à coisa julgada material, porém não há, necessariamente, um julgamento, ou seja, uma decisão sobre o objeto litigioso que julga procedente ou improcedente o pedido. Também se admite a extinção parcial (prescrição ou decadência parciais), ocasião em que será prolatada uma decisão interlocutória de mérito agravável por instrumento (art. 354, parágrafo único, NCPC).
  • A terceira hipótese de julgamento conforme o estado do processo é a extinção do processo com a resolução do mérito pela homologação da autocomposição (art. 354 c/c 487, III, do NCPC): assim como na hipótese anterior, não se trata de julgamento genuinamente falando, pois o juiz não aprecia o pedido (mérito), não obstante seja uma decisão apta a ficar imune à coisa julgada material. Há apenas a homologação[11] (ato que extingue o processo) da autocomposição[12] pondo fim à controvérsia que ocorre quando o réu reconhece a procedência do pedido (submissão), quando há transação (negócio jurídicos com concessões mútuas) ou renúncia à pretensão formulada na ação ou na reconvenção (abdicação). Também se admite a extinção parcial externada por decisão interlocutória de mérito agravável por instrumento (art. 354, parágrafo único, NCPC).
  • A quarta possibilidade que se revela é o julgamento antecipado do mérito (art. 355 c/c 487, I, do NCPC): aqui sim, decisão de mérito na acepção pura, fundada em cognição exauriente pela qual o magistrado decide o objeto litigioso e julga procedente ou improcedente o pedido (mérito da demanda). O CPC/1973 falava em julgamento antecipado da “lide”, defeito técnico corrigido pelo atual Diploma.

É técnica de abreviamento do processo (MOREIRA, 2005, P. 95) e manifestação do princípio da adaptabilidade do procedimento, pois o órgão jurisdicional, diante das peculiaridades da causa, encurta o procedimento, dispensa a realização de uma fase do processo (DIDIER JR, 2017, p. 773) e antecipa o julgamento.

O juiz assim procederá quando (i) não houver necessidade de produção de outras provas (orais, perícia e inspeção, por exemplo) além das eventualmente carreadas aos autos. Em outras palavras, quando não houver necessidade de dilação probatória, seja porque só há questões de direito, seja porque a prova pré-constituída (geralmente documentos) é suficiente para a formação do convencimento do magistrado. O julgamento em tela ocorrerá, também, quando (ii) o réu for revel, ocorrer o efeito material previsto no art. 344 (confissão ficta da matéria fática) e não houver requerimento de prova pelo réu.

Registra-se, por oportuno, que é importante que o juiz sinalize e comunique a intenção de julgar antecipadamente, em atenção ao princípio da cooperação (art. 6º, NCPC) e da boa-fé processual (art. 5º, NCPC), evitando-se decisão-surpresa (tu quoque) e nulidades processuais.

Essa técnica de abreviamento deve ser utilizada com parcimônia, pois o juízo de primeiro grau não é o único órgão julgador. O manejo incorreto do instituto pode implicar em restrição ilegítima ao direito à prova ou subida dos autos ao Tribunal, em grau de recurso, com insuficiente conjunto probatório. Processo mal instruído é um campo fértil para que o bacilo da nulidade triunfe. Portanto, o juiz deve evitar indeferir provas pertinentes ou indeferir provas simplesmente porque, em seu entender, a interpretação do direito não favorece a parte que a pleiteia. Se ele convoca os autos para julgamento antecipado dizendo que “o feito está maduro a receber sentença” é porque reputa provados os fatos alegados.[13]

De outra banda, o julgamento antecipado não é uma faculdade do juiz. Se for o caso, deve assim proceder em homenagem aos princípios da duração razoável do processo e da eficiência (CÂMARA, 2013, p. 394).

Ressalte-se, ainda, que, mesmo revel[14], o réu poderá intervir no processo, assumindo-o no estado em que se encontra e requerer a produção de provas (art. 349, NCPC c/c Enunciado nº 231 da Súmula do Supremo Tribunal Federal – STF). Hipótese não rara é aquela em que o réu contesta intempestivamente e, na própria peça defensiva, especifica os meios de prova que pretende produzir por ocasião da instrução do feito. Nesse caso, mesmo diante da incidência do efeito material da revelia, o juiz deverá avaliar a pertinência das provas requeridas pelo réu antes de convocar os autos para julgamento antecipado, pois a presunção de veracidade dos fatos alegados é apenas relativa e o réu poderá perfeitamente ilidi-la. Além do mais, a confissão ficta da matéria fática, por si só, não enseja a procedência do pedido.

Por derradeiro, o juiz poderá julgar (ou resolver) antecipadamente (imediatamente) apenas parcela do mérito (art. 356, NCPC), proferindo uma decisão interlocutória de mérito agravável[15], quando um ou mais dos pedidos formulados ou parcela deles (i) mostrar-se incontroverso (resolução parcial do mérito em razão da manifestação de alguma das formas de autocomposição unilateral do réu) ou (ii) estiver em condições de imediato julgamento nos termos do art. 355, já analisado acima. Está-se diante de nítido julgamento antecipado de parte do mérito, porque restrito a um ou alguns dos pedidos cumulados.

Cuidado: essa técnica não se aplica a qualquer modalidade de cumulação de pedidos. Para que se possa fragmentar o objeto da demanda, os pedidos cumulados devem ser independentes, ou seja, não guardar entre si nenhuma relação de precedência lógica ou de subordinação (pedido prejudicial ou preliminar), como é o caso de cumulação própria simples (dano material e dano moral; divórcio, alimentos e partilha, por exemplo). Portanto, em relação ao pedido controvertido, o feito prosseguirá até os seus ulteriores termos.[16]

Ademais, a decisão sobre a parcela incontroversa (não impugnada) é caso de julgamento parcial de mérito e não de tutela antecipada, como outrora se cogitava (art. 273, §6º, CPC/1973). Faculta-se a parte liquidar ou executar, desde logo, a obrigação reconhecida na decisão que julgar parcialmente o mérito, podendo os autos tramitar em apartado (art. 356, §§2º e 4º, NCPC), inclusive eletronicamente (art. 4º, III da Portaria Conjunta nº 411/PR/2015 do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais – TJMG).

O cumprimento poderá ser definitivo (§3º) ou provisório, quando a parte exequente estará dispensada de prestar caução idônea tão somente para deflagrar a fase executiva, pois lhe será exigida tal garantia caso queira ultimar os atos expropriatórios, a exemplo do levantamento de dinheiro, por expressa exigência do art. 520, IV, NCPC, e também por uma questão de isonomia e lógica do sistema processual. Detalhe: esse entendimento torna letra morta o §2º do art. 256 do NCPC (BUENO, 2015, p. 297-298).

  • A quinta e última variante do julgamento conforme o estado do processo é a prolação de decisão interlocutória de saneamento e organização do processo (art. 357, NCPC): não sendo o caso de nenhuma das quatro hipóteses acima, deverá o magistrado proferir uma decisão de saneamento e organização do processo, antes realizada na chamada audiência preliminar (art. 331, CPC/1973). O órgão jurisdicional terá de decidir o objeto litigioso. Contudo, ainda não há elementos probatórios suficientes que lhe permitam fazer isso nesse momento processual, razão pela qual canalizará os esforços para preparação da atividade (fase) instrutória.

O NCPC se preocupou muito com essa organização. Se bem aplicado, pode revolucionar a gestão dos processos. Uma decisão de organização bem feita define bem os rumos do processo e evita retrocessos. Um processo bem saneado enseja uma fase instrutória mais precisa, célere e econômica, que concretiza o ideal constitucional de efetividade e duração razoável.

Nessa decisão, o órgão jurisdicional:

  1. resolverá as questões processuais pendentes, se houver, a fim de deixar o processo apto ao início da audiência de instrução, para colheita de novas provas. Não raro, algum defeito processual pode surgir após a tomada das providências preliminares, como um vício de representação, por exemplo;
  2. delimitará as questões de fato sobre as quais recairá a atividade probatória, especificando os meios de prova admitidos. Identificará o fato probando (controvertido, relevante e determinado) e determinará qual o meio de prova serve a cada um deles[17]. É conveniente que o juiz determine que a parte informe o fato sobre o qual recairá cada testemunho, a fim de se evitar perguntas inúteis e tumulto na audiência.
  3. definirá a distribuição do ônus da prova, observado o art. 373, do NCPC. Trata-se de inovação do atual Diploma que prestigia o saneamento como momento propício[18] para a redistribuição judicial (ope judicis) do ônus da prova, que seguirá o roteiro do §1º do referido art. 373 (distribuição dinâmica do ônus da prova). Se for o caso de aplicação da convenção sobre ônus da prova, o juiz esclarecerá isso nesse momento (art. 373, §§3º e 4º, NCPC). Caberá agravo de instrumento apenas na hipótese de redistribuição do ônus da prova (art. 1.015, XI, NCPC).
  4. delimitará as questões de direito relevantes para a decisão do mérito, em clara inovação e concretização ao dever de consulta previsto no art. 10 do NCPC. Cabe ao juiz expor às partes, de forma clara e aberta, quais as questões jurídicas relevantes, inclusive as prejudiciais incidentais (art. 503, §1º, NCPC), para a solução do objeto litigioso, às quais estará vinculado no momento de decidir. Identificadas na decisão de saneamento, as partes terão mais segurança jurídica sobre as consequências do processo e o juiz poderá calibrar mais a atuação delas. Um último detalhe: essas questões de direito não constituem objeto de prova pelas partes, pois vigora o princípio de que o juiz conhece o direito (iura novit curia).
  5. designará, sempre que necessária, audiência de instrução e julgamento (AIJ). Essa atividade processual só será realizada quando for necessária a produção de prova oral (depoimento pessoal, testemunhos e, raramente, a presença do perito para prestar esclarecimentos acerca do laudo).

Proferida a decisão de saneamento e organização do processo isoladamente, as partes podem pedir, por petição simples, sem maiores formalidades, esclarecimentos ou solicitar ajustes, no prazo comum de 05 (cinco) dias, findo o qual a decisão se torna estável (art. 357, §1º, NCPC). Não se trata de embargos de declaração nem de sucedâneo recursal. Muito menos se cogita de efeito interruptivo do prazo para agravo de instrumento, eventualmente cabível (DIDIER JR, 2017, 2017, p. 779). A estabilidade característica atingirá apenas a organização da atividade instrutória (delimitação dos fatos probandos, meios de prova, designação da AIJ), não havendo preclusão nem coisa julgada para outras questões, como a redistribuição do ônus da prova, por exemplo.

Embora seja a regra, o NCPC permite que o saneamento e a organização do processo ocorram de outras duas maneiras, como se verá adiante.


III – Da audiência de saneamento e organização em cooperação com as partes:

Inovando, o NCPC permite que o juiz saneie e organize o processo em cooperação com as partes (art. 357, §3º c/c 6º, NCPC).

O juiz é um terceiro estranho ao litígio. Inegável que as partes são os sujeitos processuais que mais bem conhecem a controvérsia. Ao chamá-las para dialogar, o juiz coloca-se numa posição mais humilde. Logo, o saneamento dialógico ou plurilateral tende a ser mais fácil e útil, lídimo qualificador da prestação jurisdicional.

Não se trata de audiência de conciliação ou mediação nem de instrução e julgamento. A audiência é específica para se atingir um consenso sobre quanto à organização do processo.

O juiz poderá convocá-la independentemente da complexidade da causa[19]. O saneamento compartilhado tende a ser mais frutuoso sempre. No mínimo servirá como mais um momento para se tentar a autocomposição. Porém, ainda se mostra mais frequente, na prática, ver juízes saneando processos complexos por escrito em seus gabinetes, do que vê-los saneando de forma compartilhada processos singelos.

Pergunta-se: saneado e organizado o processo em audiência, ainda assim as partes poderiam pedir esclarecimentos no prazo de cinco dias? Didier Jr. (2017, p. 779), Marinoni; Arenhart; Mitidiero (2015, p. 382) entendem que os esclarecimentos devem ser solicitados até o fim da sessão, sob pena de preclusão, opinião com a qual discordamos. Isso porque, o juiz procurará atingir soluções de consenso quanto às questões controvertidas e os meios de prova e, não sendo possível, prevalecerá o entendimento do magistrado. Logo, não se pode subtrair das partes a única forma que têm de buscar esclarecimento ou integração da decisão saneadora. [20]

As audiências de saneamento deverão ser marcadas com intervalo mínimo de uma hora entre elas (art. 357, §9º, NCPC), a fim de evitar que o ato não receba a atenção que merece, conspirando contra a efetividade e a cooperação.

Para esta audiência as partes também deverão levar os respectivos róis de testemunhas (art. 357, §5º, NCPC), mesmo sem saber se haverá prova testemunhal. Nada impede que o rol seja posteriormente modificado em função do disposto no §6º do mesmo dispositivo, já comentado alhures, ou da ocorrência de alguma das situações previstas no artigo 451, NCPC.


IV – Do acordo de saneamento e organização do processo:

Inovando novamente, o NCPC permite que as partes levem ao juiz, para homologação, uma organização consensual do processo (art. 357, §2º, c/c art. 6º, NCPC).

Está-se diante de um típico negócio jurídico bilateral (negócio processual[21]) entabulado pelas partes que chegam a um consenso em torno da controvérsia, da divergência fática e jurídica da demanda. É um dissenso acordado que prestigia o dever de cooperação.

Elas podem escolher o direito aplicável a caso, à moda do processo arbitral. Podem, ainda, encartar distribuição convencional do ônus da prova, nos caso permitidos, perito consensual, calendário processual, etc.[22]

Essa inovação reclama também uma mudança de postura dos advogados, que devem redimensionar a sua atuação e abandonar a cultura do litígio.

Observados os pressupostos gerais da negociação processual, o órgão jurisdicional (em qualquer de suas instâncias) também fica vinculado a essa delimitação, caso a homologue, nos exatos termos em que vincula a decisão de saneamento e organização do processo prolatada unilateralmente pelo juiz ou dialogada com as partes em audiência.

O que levaria o juiz a não homologar esse acordo de saneamento? Em caso de fraude ou de ausência do mínimo de verossimilhança nos fatos consensualmente havidos como ocorridos, sob pena de impor ao órgão jurisdicional o dever de julgar com base em absurdo. Enfim, se o juiz entender que sem determinada questão de fato ou de direito não tem como decidir com qualidade a demanda judicial então não deve homologar o acordo de saneamento e organização trazido à baila pelas partes. A autonomia da vontade cede espaço ao interesse público que também norteia o processo.  


V – Conclusão:

O processo não é “coisa das partes”, como diziam os antigos. Muito menos “coisa do juiz”, como se pretendeu no momento de sistematização científica e afirmação publicística do direito processual.

A velha dicotomia adversarial-inquisitorial cede lugar ao modelo cooperado de processo, o que deve ser observado na nova sistematização das providências preliminares, do julgamento conforme o estado do processo e, sobretudo, do saneamento e ordenamento em suas variadas formas.

O NCPC, sem dúvida alguma, deflagra um novo paradigma: o juiz como gestor do processo. Ele não poderia ficar meramente a reboque das partes. Precisa organizar o processo, assim como qualquer outro agente público tem de se esforçar para que a sua atuação, respeitando os direitos e garantias fundamentais, seja racional e eficiente.

De todo o exposto, mais do que uma exigência de simples organização do modo de atuação do agente jurisdicional, a nova disciplina das providencias preliminares, do julgamento conforme o estado do processo e do saneamento impõe um esforço conjunto entre todos os partícipes do processo, sem protagonismos, para que se obtenha, em tempo razoável, uma decisão de mérito justa e efetiva.


VI – Referências bibliográficas:

BUENO, Cássio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 2015.

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 24ª ed. São Paulo: Atlas, 2013.

DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 19ª ed. Salvador: JusPodvm, 2017, v. 01.

MOREIRA, José Carlos Barbosa. Saneamento do processo e audiência preliminar. Revista de Processo, v. 40, p. 109, out. 1985.

_________. O Novo Processo Civil Brasileiro. 23ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. 8ª ed. Salvador: JusPodvm, 2016.


Notas

[1] Determinação de Emenda da Inicial (art. 321, NCPC); controle das questões da admissibilidade do procedimento (art. 485, §3º, NCPC); complementação do preparo recursal (art. 1.007, §2º, NCPC) são exemplos de saneamento difuso.

[2] Resposta do réu é a designação genérica e não se confunde com a defesa, que é apenas uma forma de o réu responder à demanda. São exemplos de resposta do réu, além da contestação: a) reconhecimento da procedência do pedido; b) arguição de impedimento ou suspeição; c) reconvenção; e d) inércia/silêncio do réu.

[3] Se a réplica do autor contiver fatos novos, instruída ou não com documentos, o juiz deverá abrir vista ao réu para a tréplica, em homenagem ao contraditório. A fim de evitar esse vaivém, o juiz poderá limitar tais alegações. Caso contrário, não haverá escapatória: terá que garantir o contraditório. (REDONDO, 2013, p. 88 apud DIDIER JR, 2017, p. 770).

[4] Na praxe forense, entretanto, percebe-se indevida generalização da réplica, abrindo-se prazo para manifestação do autor mesmo quando a resposta do réu seja fundada tão somente na defesa direta. Tal postura, além de contrariar o texto legal, não encontra nenhuma justificativa plausível, merecendo críticas.

[5] O art. 348 do NCPC continuará a ser aplicado de forma ampliativa como era seu antecessor, permitindo que o juiz determine às partes a especificação de provas mesmo diante de réu não revel. Por outro lado, mesmo revel, poderá o réu intervir no processo, assumindo-o no estado em que se encontra, requerer e participar da produção das provas, como prevê o art. 349 do NCPC em sintonia com o Enunciado nº 231 da Súmula jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal (STF).

[6] Em sentido contrário, há quem entenda que o prazo para especificação das provas deveria ser de 15 (quinze) dias, a exemplo do prazo expresso para as demais providências preliminares (NEVES, 2016, p. 620).

[7] A rigor, toda sentença “termina”. Daí melhor a expressão “sentença que não examina o mérito”.

[8] O NCPC consagra expressamente no art. 4º o princípio da primazia da decisão de mérito, deixando claro que a solução de mérito prefere à solução que não é de mérito.

[9] Há um claro equívoco quando se diz: “julgo extinto o processo sem julgamento do mérito”. A expressão que melhor representa seria “extingo o processo sem exame do mérito”.

[10] O dispositivo não merece elogios e demanda uma recapitulação das definições dos pronunciamentos do juiz constantes do art,. 203, §§1º e 2º do NCPC. Se o provimento terminativo parcial não tem o condão de extinguir o processo ou qualquer de suas fases, logo a sua natureza jurídica será de decisão interlocutória e não de sentença recorrível por agravo de instrumento, como poderia transparecer.

[11] Somente poderá ser homologada a autocomposição se a situação jurídica litigiosa a permitir. O órgão jurisdicional deverá observar se a própria autocomposição é possível, se não há colusão ou simulação das partes (art. 142, NCPC) e se os advogados têm poderes específicos para tanto (art. 105, NCPC). Por fim, o negócio jurídico produz efeitos entre as partes independentemente da homologação, cuja eficácia se restringe a determinar a extinção do processo e dar azo à formação da coisa julgada. As partes podem condicionar a eficácia da transação à homologação judicial, mediante disposição expressa no termo de autocomposição.

[12] É possível que a autocomposição verse sobre aspecto que esteja fora dos limites do objeto litigioso, podendo as partes incorporar outra lide, estranha a que está sendo discutida assim como outros sujeitos (art. 515, §2º, NCPC).

[13] Enunciado nº 297 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC): O juiz que promove julgamento antecipado do mérito por desnecessidade de outras provas não pode proferir sentença de improcedência por insuficiência de provas. (Grupo: Petição inicial, resposta do réu e saneamento).

[14] Adota-se aqui o entendimento de que revelia é a ausência de contestação tempestiva.

[15] Curioso que temos no sistema, por conta do art. 356, §5º, NCPC, dois recursos distintos ao segundo grau para reexame de decisões de mérito, aptas à coisa julgada material e, consequentemente, alvos de ação rescisória.

[16] Ao consagrar decisões parciais, o NCPC consagra também a chamada coisa julgada múltipla.

[17] Caso tenha sido determinada prova testemunhal, o juiz fixará prazo comum não superior a quinze dias para que as partes apresentem o rol (art. 357, §4º, NCPC). O número de testemunhas arroladas não pode ser superior a dez, sendo três, no máximo, para cada fato probando, repetindo a regra do CPC/1973. Todavia, e aqui é uma novidade, o juiz poderá limitar ou ampliar o número de testemunhas, considerando a complexidade da causa dos fatos individualmente considerados (Enunciado nº 300 do FPPC).

Caso tenha determinada a produção de prova pericial, o juiz observará o disposto no art. 465 e, se possível, estabelecerá, de logo, calendário para sua realização (357, §8º, NCPC),

[18] Se o juiz decidir redistribuir o ônus da prova em momento posterior, o que não é o ideal, deverá reabrir a instrução, por amor ao contraditório e à ampla defesa.

[19] Enunciado nº 298 do FPPC: A audiência de saneamento e organização do processo em cooperação com as partes poderá ocorrer independentemente de a causa ser complexa. (Grupo: Petição inicial, resposta do réu e saneamento).

[20] Nesse sentido, também pela aplicação do §1º do art. 357 do NCPC, mesmo no saneamento compartilhado (NEVES, 2016, p. 630).

[21] Contra essa designação de “negócio processual”: NEVES, 2016, p. 631.

[22] Como ocorre em transação firmada entre as partes sobre o objeto litigioso, seja extra-autos submetido a posterior homologação pelo juízo ou em audiência, o saneamento consensual não precisa ser adstrito aos delineamentos objetivos postos no processo, isto é, pode ser mais amplo e agregar questões de fato e de direito até então não deduzidas.


Autor

  • Eluiz Antonio Ribeiro Mendes e Bispo

    Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES, onde exerce o magistério superior desde 2007. Advogado militante e sócio fundador da banca “Danilo Borges Advogados” (OAB/MG 2.441). Especialista em Direito Público e Direito Econômico-Empresarial. Membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais (IAMG).

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Informações sobre o texto

Artigo elaborado a partir da palestra ministrada no "Seminário Novo Código de Processo Civil - Reflexões no Primeiro Ano de Vigência" promovido pela EJEF - Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes, do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG) em parcerias com instituições de Ensino Superior e com a 11a Subseção mineira da Ordem dos Advogados do Brasil.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BISPO, Eluiz Antonio Ribeiro Mendes e. Providências preliminares, saneamento e julgamento conforme o estado do processo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6164, 17 maio 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/62897. Acesso em: 14 maio 2024.