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Suspeição por motivo de foro íntimo à luz do novo Código de Processo Civil

Suspeição por motivo de foro íntimo à luz do novo Código de Processo Civil

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O novo CPC reflete a jurisprudência mansa, pacífica e tranquila a respeito do tema, inserindo redundante expressão “sem necessidade de declarar suas razões”.

Resumo: O presente artigo analisa a questão inerente à suspeição por motivo de foro íntimo, debruçando-se, inicialmente, sobre sua disciplina normativa, pretérita e atual, além de examinar as críticas alusivas ao instituto em questão. Posteriormente, enfoca a absoluta intangibilidade da declaração de suspeição por motivo de foro íntimo, bem como sua irretratabilidade, destacando a impossibilidade de arguição, pela parte, da mencionada suspeição.

Palavras-chave: Suspeição. Foro Íntimo. Intangibilidade. Irretratabilidade.


1. Introdução

O Código de Processo Civil de 1939, na disciplina normativa de seu art. 119, parágrafos 1º e 2º, autorizava o julgador a considerar-se suspeito, por razões de ordem íntima, sem necessidade de justificar o respectivo despacho. Obrigava-se, todavia, a comunicar os pertinentes motivos ao órgão disciplinar competente, sujeitando o Magistrado à pena de advertência caso assim não procedesse, bem como se os motivos aventados (que eram apreciados pela Corregedoria em segredo de justiça) fossem entendidos como improcedentes.

Com efeito, preceituava o Código de Processo Civil de 1939:

“Art. 119. O juiz que se declarar suspeito motivará o despacho.

§ 1º Si a suspeição fôr de natureza intima, comunicará os motivos ao orgão disciplinar competente.

§ 2º O não cumprimento desse dever, ou a improcedência dos motivos, que serão apreciados em segredo de justiça, sujeitará o juiz à pena de advertência.”

(Redação de acordo com a grafia original; grifo nosso)

A legislação processual civil que se seguiu em 1973, – apesar de manter os fundamentos básicos da hipótese de suspeição por motivo de foro íntimo elencados no Código de Processo Civil de 1939 –, acabou por aperfeiçoar o transcrito dispositivo. Assim, o art. 135, parágrafo único, do CPC de 1973 deixou de prever a obrigatoriedade da comunicação ao órgão disciplinar competente, pelo Magistrado, dos seus motivos de ordem íntima:

“Art. 135. Reputa-se fundada a suspeição de parcialidade do juiz, quando:

[...].

Parágrafo único. Poderá ainda o juiz declarar-se suspeito por motivo íntimo.”

Entretanto, o art. 135, parágrafo único, do CPC de 1973 mereceu, por parte de alguns doutrinadores, críticas pouco lisonjeiras, como a realizada por BARBI (1983, p. 567):

“[...] O Código de 1939 previa esse motivo de suspeição, e, nos parágrafos do art. 119, determinava que o Juiz não justificaria o despacho, mas comunicaria os motivos ao órgão disciplinar competente. Este apreciaria o caso em segredo de justiça. A falta de comunicação, ou a improcedência dos motivos, sujeitava o Magistrado à pena de advertência.

O Código de 1973 nada dispõe sobre esse procedimento, o que é inconveniente, porque a falta de controle dos motivos de abstenção, pelo órgão disciplinar, pode ensejar abuso por parte de Juízes menos amigos do trabalho. Terão eles um cômodo expediente para se afastarem dos volumosos e complexos casos de ação de divisão ou de prestação de contas.

Há também o risco de Juízes de menor coragem se afastarem de causas em que receiem ter de decidir contra pessoas poderosas no meio.

Sem texto legal expresso, não será fácil aos órgãos disciplinares da Magistratura exigir dos Juízes a comunicação do motivo íntimo para seu controle [...].”

Ressalte-se, contudo, que a redação dada ao art. 135, parágrafo único, do CPC de 1973 era considerada, sob a ótica de parcela amplamente majoritária da doutrina, bem como da própria jurisprudência, representativa de grande avanço na disciplina processual, considerando, sobretudo, que o julgador não deve, em nenhuma hipótese, julgar e nem realizar qualquer processamento para o qual não entenda estar na absoluta plenitude das condições objetivas (impedimento) e subjetivas (suspeição), na exata medida em que lhe cabe, em última análise, velar pela completa imparcialidade e independência em seus julgamentos, tudo como condição básica e fundamental para assegurar a inequívoca presença dos preceitos e garantias relativos ao processo, - e à prestação jurisdicional de um modo geral -, consagrados na Constituição Federal.

“Dissemos já que, entre os elementos mínimos imprescindíveis à garantia do devido processo legal, se inclui a dada imparcialidade e independência do Julgador, sem o que a jurisdicionalidade do processo inexiste substancialmente, para se tornar algo só formal e nominalmente judicial.” (PASSOS, 1982)

Ademais, cumpre registrar que uma das principais críticas dirigidas (à época) ao art. 135, parágrafo único, do CPC de 1973, – como, por exemplo, a possibilidade que a regra em tela aparentemente permitia, qual seja, de o Juiz avesso ao trabalho afastar-se do julgamento da causa –, não podia ser considerada verdadeira, visto que a cada processo em que o Magistrado declinasse sua condição de suspeito por qualquer motivo (incluindo o de natureza íntima), outro feito automaticamente lhe seria distribuído, tudo em face do instituto da compensação[1].

Por outro lado, o fato de o Magistrado hesitante, fraco e pusilânime poder eventualmente utilizar (contra a própria mens legis) o expediente da declaração de suspeição por motivo de foro íntimo, de modo a não julgar causas nas quais tenha que decidir contra pessoas poderosas, não deve, igualmente, descaracterizar os méritos do instituto sob comento, uma vez que, embora tal demonstração de covardia deva ser, de todas as formas, motivo de veemente repulsa, e até mesmo de inequívoca condenação[2], tal situação, em casos extremos, afigura-se preferível ante a inadmissível possibilidade de haver julgamento (pelo mesmo Juiz e por motivação semelhante) tendencioso, de alguma forma, em favor de uma das partes[3], em particular daquela que se mostre com maior prestígio social ou poderio político-econômico.

“O interesse, direto ou indireto, do Juiz, no tocante ao caso que lhe é oferecido para julgamento, fá-lo Juiz ilegítimo e acarreta a invalidade de quanto decidir. Processo sem Juiz imparcial não é processo jurisdicional e, nesses termos, não é devido processo legal e sim processo no qual foi violada a garantia do due process.” (PASSOS, 1982)

É importante consignar que, muitas vezes, durante a vigência do Código de Processo Civil de 1939, o Magistrado despreparado para julgar determinada demanda – sob o prisma da ausência da necessária equidistância das paixões que naturalmente nutrem as causas judiciais ou mesmo em face da presença de determinadas circunstâncias que o Juiz não devesse ou mesmo não pudesse revelar – acabava temeroso ou mesmo simplesmente constrangido pela obrigatoriedade de ter de divulgar tais razões (ainda que de forma reservada ao órgão disciplinar), optando, por conseguinte, por prosseguir no julgamento da causa, de forma parcial e comprometida, em sinérgico e lamentável prejuízo aos jurisdicionados e da própria credibilidade do Poder Judiciário.

Com efeito, COSTA (1982, p. 337), sobre os inconvenientes da obrigatoriedade da aludida comunicação, chegou mesmo a ser enfático no sentido de sua superação pelo ordenamento jurídico-processual civil inaugurado em 1973:

“[...] é possível que o legislador tenha agido bem no suprimir a exigência da lei anterior, em que podia haver quebra de sigilo da apreciação dos motivos, causando irreversível dano ao Magistrado.”

Da mesma forma, BARBI, refletindo melhor sobre a posição anteriormente registrada, acabou, mais tarde, por ceder à doutrina mais abalizada sobre a questão:

“Mas é de se esperar que os casos em que a escusa legal for indevidamente usada não serão numerosos. Por isto, é possível que o legislador tenha andado bem no suprimir a exigência da lei anterior, em que podia haver quebra do sigilo da apreciação dos motivos, causando dano ao Magistrado.

O motivo íntimo pode ser algum dos casos expressos de escusa, em que o Juiz não considere conveniente expô-lo claramente, como, v.g., a inimizade capital, ou um interesse na solução da causa, que lhe não convenha revelar; ou um parentesco ilegítimo, como o adulterino, o incestuoso, que não convém ser denunciado. Pode surgir também pelo reconhecimento de favores prestados pela parte anteriormente, mas em que houve pedido de sigilo e casos semelhantes.” (BARBI, 1983, p. 567)

Por outro lado, resta afirmar que o projeto do CPC de 1973, na redação do parágrafo único do art. 140 (texto que, na versão definitiva, ocupou o art. 135), chegava mesmo a qualificar as razões de ordem íntima, caracterizadoras da suspeição sob esta rubrica, como sendo aquele motivo cuja revelação causasse ao Juiz um grave dano moral. Não obstante, durante o processo legislativo pertinente, tal trecho restou suprimido no Congresso Nacional, permitindo concluir que, já sob a égide do referido Diploma Legal (ora revogado), inexistia qualquer obrigatoriedade quanto à revelação do aludido motivo de foro íntimo, ou mesmo algum tipo de controle jurisdicional por parte de qualquer órgão da hierarquia do Poder Judiciário.


2. Das Tentativas do Conselho Nacional de Justiça de Retornar à Disciplina Normativa do Código de Processo Civil de 1939

Não obstante algumas tentativas isoladas (e igualmente frustradas) de se retornar à disciplina legal vigente por ocasião do CPC de 1939, o que se deu através da edição de atos administrativos normativos, como, por exemplo, o Provimento nº 26, de 25 de outubro de 1993, da Corregedoria do TRF/2ª Região[4], o próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por intermédio da edição da Resolução CNJ nº 82, de 9 de junho de 2009, pretendeu, mais uma vez (e novamente ao arrepio da lei), mitigar o alcance da regra processual prevista no art. 135, parágrafo único, do CPC de 1973, buscando, em certa medida, restabelecer a regência legal anteriormente consignada no CPC de 1939:

“O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, no uso de suas atribuições,

CONSIDERANDO que durante Inspeções realizadas pela Corregedoria Nacional de Justiça foi constatado um elevado número de declarações de suspeição por motivo de foro íntimo;

CONSIDERANDO que todas as decisões dos órgãos do Poder Judiciário devem ser fundamentadas (art. 93, IX, da CF);

CONSIDERANDO que é dever do magistrado cumprir com exatidão as disposições legais (art. 35, I, da LC nº 35/1979), obrigação cuja observância somente pode ser aferida se conhecidas as razões da decisão;

CONSIDERANDO que no julgamento do relatório da Inspeção realizada no Poder Judiciário Estadual do Amazonas foi aprovada a proposta de edição de Resolução, pelo Conselho Nacional de Justiça, para que a as razões da suspeição por motivo íntimo, declarada pelo magistrado de primeiro e de segundo grau, e que não serão mencionadas nos autos, sejam imediatamente remetidas pelo magistrado, em caráter sigiloso, para conhecimento pelo Tribunal ao qual está vinculado;

CONSIDERANDO que a sistemática de controle é adotada, com êxito, há vários anos, por alguns Tribunais do País.

RESOLVE:

Art. 1º No caso de suspeição por motivo íntimo, o magistrado de primeiro grau fará essa afirmação nos autos e, em ofício reservado, imediatamente exporá as razões desse ato à Corregedoria local ou a órgão diverso designado pelo seu Tribunal.

Art. 2º No caso de suspeição por motivo íntimo, o magistrado de segundo grau fará essa afirmação nos autos e, em ofício reservado, imediatamente exporá as razões desse ato à Corregedoria Nacional de Justiça.

Art. 3º O órgão destinatário das informações manterá as razões em pasta própria, de forma a que o sigilo seja preservado, sem prejuízo do acesso às afirmações para fins correcionais.

Art. 4º Esta resolução entrará em vigor na data de sua publicação.”

A mencionada empreitada, todavia, recebeu enérgica reprimenda por parte do Supremo Tribunal Federal, que, em duas oportunidades, deferiu medidas liminares no bojo dos Mandados de Segurança nº 28.089/DF e nº 28.215/DF, afastando, assim, a necessidade de comunicação dos motivos da suspeição, conforme preconizado na citada Resolução. Pela importância, cabe transcrever parte do teor das decisões exaradas pelo STF:

“DECISÃO: Trata-se de mandado de segurança, com pedido de liminar, [...] em face da Resolução nº 82/2009 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que determina, aos magistrados de 1º e 2º grau, que comuniquem os motivos quando se declararem impedidos por foro íntimo para julgar determinado processo.

Alega o Impetrante, resumidamente, que [...] tal Resolução constitui um excesso por parte do CNJ, além de fazer uma interpretação universal normativa inadequada do artigo 135, parágrafo único, do Código de Processo Civil; e que a independência dos magistrados implica em liberdade, o que inclui não revelar razões de impedimento por foro íntimo; [...].

Entendo que são relevantes as considerações do Impetrante. Da análise do disposto no artigo 135, parágrafo único, do Código de Processo Civil, tem-se que a norma estabeleceu um núcleo de intimidade que não pode ser atingido ou devassado sob pena, inclusive, de mitigar a independência do julgador.

Motivo íntimo, como bem destacado por Pontes de Miranda, ‘é qualquer motivo que o juiz não quer revelar, talvez mesmo não deva revelar. A lei abriu brecha ao dever de provar o alegado, porque se satisfez com a alegação e não exigiu a indicação do motivo. A intimidade criou a excepcionalidade da permissão: alega-se haver motivo de suspeição, sem se precisar provar’ (‘Comentários ao Código de Processo Civil’, tomo II/430, item nº 6, 3ª ed., 1997, Forense). [...].

Como bem destacado naquela oportunidade, tal posicionamento é uníssono por parte da doutrina: vide ARRUDA ALVIM, ‘Código de Processo Civil Comentado’, vol. VI, p. 116, item nº 3.10, 1981, RT; NELSON NERY JUNIOR/ROSA MARIA ANDRADE NERY, ‘Código de Processo Civil Comentado’, p. 618, 4ª ed., 1999, RT; CELSO AGRÍCOLA BARBI, ‘Comentários ao Código de Processo Civil’, vol. I, tomo II, p. 425, item nº 744, 10ª ed., 1998, Forense; ANTONIO DALL’AGNOL, ‘Comentários ao Código de Processo Civil’, p. 166, item nº 3, 2000, RT, v.g.

Do exposto, ressalvando-me o direito a uma apreciação mais detalhada do caso quando da análise de mérito, defiro o pedido de medida liminar. [...].” (STF, MS nº 28.089 MC, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe 17/08/2009)

“DECISÃO: Vistos, etc. A Associação dos Magistrados Brasileiros, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho e a Associação dos Juízes Federais ajuízam mandado de segurança coletivo, aparelhado com pedido de medida liminar, contra ato do Conselho Nacional de Justiça (Resolução nº 82, de 09 de junho de 2009). Resolução, essa, que introduziu a obrigação de os magistrados de 1º e 2º graus revelarem, em ofícios reservados remetidos às respectivas Corregedorias, as razões de foro íntimo de suas declarações de suspeição. Ato, esse, que, ao criar uma espécie de ‘confessionário’, acabou por violar o direito à privacidade deles, magistrados.

Argumentam as impetrantes que [...] a Resolução do CNJ viola direito líquido e certo dos magistrados de manterem reserva sobre as razões que justificaram a suspeição por motivo de foro íntimo; [...].

Assim realizado este registro da causa, passo à decisão. Fazendo-o, pontuo, de saída, que o poder de cautela dos magistrados é exercido num juízo prefacial em que se mesclam num mesmo tom a urgência da decisão e a impossibilidade de aprofundamento analítico do caso. Se se prefere, impõe-se aos magistrados condicionar seus provimentos acautelatórios à presença, nos autos, dos requisitos da plausibilidade jurídica do pedido (fumus boni juris) e do perigo da demora na prestação jurisdicional (periculum in mora), perceptíveis de plano. Requisitos a serem aferidos primo oculi, portanto. Não sendo de se exigir, do julgador, uma aprofundada incursão no mérito do pedido ou na dissecação dos fatos que a este dão suporte, senão incorrendo em antecipação do próprio conteúdo da decisão definitiva.

Pois bem, transcrevo do Min. Joaquim Barbosa no citado MS 28.089: [...].

Passo a enfrentar a questão formal do cabimento do mandado de segurança. De fato, a Resolução nº 82 do Conselho Nacional de Justiça impõe uma obrigação direta aos magistrados. Obrigação essa de efeitos concretos, porquanto independe da intercalação de outros atos de menor hierarquia normativa. Logo, o dispositivo é de efeitos concretos e imediatos. Estabelece uma obrigação de fazer: os juízes devem informar, via ofício reservado, os motivos pelos quais se declararam suspeitos. Daí a presente ação mandamental enquadrar-se no que se denomina de mandado de segurança tão preventivo quanto coletivo. Ademais, plausível mostra-se a alegação de que a Resolução trata de matéria reservada à lei complementar (art. 93 da Constituição Federal), porquanto cria deveres funcionais primários. Deveres que não se acham enumerados no Capítulo II do Título III da Lei Complementar nº 35/79. Como plausível se me afigura, já no plano material, a consideração de que a escusa de julgamento por motivo de foro íntimo pode constituir a própria condição de um concreto ofício judicante imparcial. Imparcialidade, agora sim, de inescusável dever dos magistrados, a teor do próprio inciso IX do artigo 93 da Constituição Federal.

É o quanto me basta para deferir o pedido de medida liminar para que os magistrados não sejam compelidos a externar as razões de foro íntimo quando, nos termos parágrafo único do art. 135 do CPC, se declararem suspeitos. O que faço sem prejuízo de uma mais detida análise quando do julgamento do mérito da impetração. [...].” (STF, MS nº 28.215/DF, Rel. Min. Ayres Britto, DJe 01/03/2010)

Tais medidas, cumpre registrar, acabaram sendo posteriormente revogadas (em 02/10/2014 e 03/08/2015, respectivamente), fazendo com que a Resolução voltasse a ter plena eficácia, embora ainda estejam pendentes de julgamento as ADI nº 4.260 e nº 4.266, que questionam a constitucionalidade da aludida norma.

O próprio STF, em ocasião pretérita, - é oportuno consignar -, já havia se pronunciado sobre o tema, no mesmo sentido:

“Impõe-se considerar, neste ponto, que a declaração de suspeição, pelo Juiz, desde que fundada em razões de foro íntimo, não comporta a possibilidade jurídica de qualquer medida processual destinada a compelir o magistrado a revelá-las, pois, nesse tema - e considerando-se o que dispõe o art. 135, parágrafo único, do CPC -, o legislador ordinário instituiu um espaço indevassável de reserva, que torna intransitivos os motivos subjacentes a esse ato judicial.” (STF, MI nº 642/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 14/08/2001)


3. Da Absoluta Intangibilidade da Declaração de Suspeição por Motivo de Foro Íntimo

É importante frisar, em tom sublime e de modo a impedir qualquer dúvida a respeito do tema, que a declaração de suspeição do Magistrado, por razões de ordem íntima, caracteriza-se, à luz da doutrina tradicional e amplamente majoritária (se não unânime), bem como da jurisprudência pátria, em efetivo direito subjetivo próprio outorgado ao Juiz, para que este possa, em sua completa inteireza, velar pela absoluta imparcialidade e independência em seus julgamentos, tudo como condição básica e fundamental à garantia constitucional do devido processo legal.

“A regra inscrita no caput do art. 135 do Código de Processo Civil, em relação aos casos de suspeição de parcialidade do juiz, é exaustiva, porque atende a determinada casuística legal. Todavia, na hipótese do parágrafo único, em que a suspeição é jurada pelo próprio juiz, ela se torna exemplificativa e inadmite impugnação pelas partes.” (Ac. unân. da 1ª Câm. do 1º TARJ de 04/05/1982, na exc. de susp. 106, Rel. Juiz Júlio da Rocha Almeida; RT, vol. 585, p. 211) (grifo nosso)

“Não cabe a juiz do mesmo grau, ou sequer ao órgão apto a conhecer de eventual conflito de competência, aquilatar da procedência ou não dos motivos pelos quais outro magistrado jurou suspeição de natureza íntima.” (Ac. 2ª CCTA-RS, C.N. de C. 26/777/Santiago (U.), Rel. Juiz Adroaldo Furtado Fabrício, JB nº 119, Ed. Juruá, p. 79)

“A afirmativa de suspeição por motivo íntimo é de exclusivo arbítrio do Juiz, senhor único da sua conveniência, porque, assim não fosse, o motivo íntimo se enquadraria em uma das hipóteses dos incisos do art. 135 e dependeria de prova.” (Ac. unân. da 8ª Câm. do 1º TARJ de 04/10/1983, na exc. de susp. 104, Rel. Juiz José Edvaldo Tavares)

“A suspeição por motivo íntimo, declarada pelo juiz, é sempre respeitada.” (Ac. unân. da 2ª Câm. do TARS de 16/03/1982, no CC 26.777, Rel. Juiz Adroaldo Furtado Fabrício; JTARS 43/197)

Por outro lado, é importante lembrar que, em nenhuma hipótese, cabe à parte, ou a quem quer que seja, inclusive ao novo Juiz a quem for redistribuída a causa, discutir os motivos que levaram o Magistrado à declaração de suspeição por motivo de foro íntimo, consoante asseveram a doutrina e a jurisprudência clássicas e mais abalizadas sobre o assunto.

“Do ato do juiz, declarando-se suspeito por motivo íntimo e passando a causa ao seu substituto, não cabe qualquer recurso das partes, nem é lícito ao substituto discutir os motivos da suspeição, que o juiz não está obrigado a declarar, nem mesmo ao Tribunal.” (DE PAULA, 1988, p. 606)

Resta também dizer que a faculdade de se declarar suspeito, por motivo íntimo, é um efetivo direito, embora também se constitua em inexorável dever[5] conferido ao Magistrado, pelo qual não é necessário produzir provas.

“Ao juiz confere o art. 135, parágrafo único, o direito (não só a faculdade) de se declarar suspeito, ‘por motivo íntimo’. Motivo íntimo é qualquer motivo que o juiz não quer revelar, talvez mesmo não deva revelar. A lei abriu brecha ao dever de provar o alegado, porque se satisfez com a alegação e não exigiu a indicação do motivo. A intimidade criou a excepcionalidade da permissão: alega-se o motivo de suspeição, sem se precisar provar.” (PONTES DE MIRANDA, 1995, p. 408) (grifo nosso)


4. Da Irretratabilidade da Declaração de Suspeição por Motivo de Foro Íntimo

Muito embora a doutrina defenda o ponto de vista da ampla irretratabilidade da declaração de suspeição, independentemente do motivo elencado, a declaração por razão de ordem íntima, – por se constituir, entre as hipóteses previstas na legislação processual civil em vigor, naquela de maior aspecto subjetivo –, apresenta-se como a mais característica do fenômeno jurídico em questão.

A razão desta assertiva é relativamente simples: a subjetividade implícita na razão de foro íntimo, – e, acima de tudo, a intangibilidade desta declaração (que se manifesta, em última instância, de forma pouco concreta) –, não permitem uma criteriosa aferição, admitindo, ao contrário, uma razoável dose de arbítrio do Juiz que deve ser, de algum modo e em algum momento, restringida.

“A imparcialidade do juiz é princípio básico do processo, pressuposto para que a relação processual se instaure validamente. O juiz que se declara suspeito por motivos de natureza íntima, fica afastado definitivamente do processo e não mais pode retornar ao mesmo.” (Ac. da 1ª Câm. do TARS de 06/09/1983, Ap. 183.023.969, Rel. Juiz Lio Cézar Schmitt, JTARS, vol. 48, p. 443)

“O juiz, uma vez que se declara suspeito, fica impedido definitivamente de prosseguir no processo, ainda quando ao seu substituto pareça infundado o motivo da suspeição jurada. Não importa que, ao declarar-se suspeito, o magistrado tenha agido certa ou erradamente.” (Ac. 1ª T./TRF – 3ª R., Ap. 91.03.04179/SP (U.), Rel. Juiz Jorge Scartezzini, Rev. Adcoas, BJA 25 (10/09/1991), 133.337, p. 384)

Todavia, não podemos deixar de registrar, por dever de ofício, algumas vozes discordantes, particularmente na jurisprudência processual penal[6].

“As causas ensejadoras da declaração de suspeição por motivo de foro íntimo podem ser reavaliadas pelo magistrado, a quem compete averiguar se elas persistem ou não.”

(STJ, REsp nº 1.109.148/RJ, 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJe 03/09/2010)

“As razões da declaração de suspeição por motivo de foro íntimo não podem ser aferidas objetivamente. Apenas o magistrado que a declarou pode reconhecer que ainda persiste, ou o que não mais subsiste. [...].”

(STJ, REsp nº 785939/ES, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJe 28/09/2009)


5. Impossibilidade de Arguição, pela Parte, de Suspeição do Juiz por Motivo de Foro Íntimo

Consoante entendimento praticamente unânime da doutrina, inexiste a possibilidade de haver arguição, pela parte, da suspeição fundada em razão de foro íntimo, isto porque, como a própria expressão sugere, foro íntimo possui natureza de cunho estritamente pessoal. Ademais, a declaração, pelo Magistrado, de suspeição por razão íntima, configura facultas de seu exclusivo arbítrio (e, em grande medida, dever indeclinável de sua consciência zeladora da imperatividade da absoluta isenção de seus julgamentos), condicionado apenas e tão somente à irrestrita defesa pela permanente presença, na sua atividade jurisdicional, dos elementos mínimos imprescindíveis à garantia do devido processo legal.

“[...] É obvio que a parte não pode argüir suspeição do juiz por foro íntimo, pois isto só o magistrado pode fazer. [...].”

(TRF/2ª Região, REO 200202010349629, 2ª T., Rel. Des. Fed. Antonio Cruz Netto, DJU 14/10/2003)

Sob o mesmo diapasão, a jurisprudência também aparenta ser unânime em afirmar quanto à efetiva impossibilidade de arguição de exceção de suspeição do Juiz, fundada em motivação de foro íntimo, concluindo pela possibilidade apenas nas demais hipóteses expressamente contempladas na lei processual.

“As hipóteses em que a parte pode arguir a suspeição do juiz são as taxativamente enumeradas no CPC.” (Ac. unân. da Câm. Esp. do TJSP, de 15/10/1981, na exc. de susp. 1.000-0, Rel. Des. Dalmo do Valle Nogueira; RT, vol. 565, p. 95)

“Os dispositivos referentes à suspeição, por constituírem normas de exceção, não admitem interpretação extensiva e as causas que a justificam são exclusivamente as enumeradas em lei.” (Ac. unân. da 1ª Câm. do TJMT, de 22/08/1983, na exc. de susp. 87, Rel. Des. Carlos Avalone, RT, vol. 590, p. 232)

“A exceção de suspeição é matéria de direito estrito. Assim, só podem ser invocadas, para a recusa do julgador, as hipóteses previstas em lei.” (Ac. unân. da 2ª Câm. Crim. do TJGO, de 27/05/1980, na exc. de susp. 128, Rel. Des. Arinan de Loyola Fleury; Rev. Goiana de Jurisp., vol. 16, p. 9)


6. Do Novo Texto Legal Introduzido com o Código de Processo Civil de 2015

De certa forma, - após toda a sorte de considerações expostas -, o Novo CPC (Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015) consignou (expressamente) a desnecessidade de o Juiz declinar as respectivas razões de sua suspeição por motivo de foro íntimo, conforme previsão contida no art. 145, parágrafo 1º:

“Art. 145. Há suspeição do juiz:

[...].

§1º.  Poderá o juiz declarar-se suspeito por motivo de foro íntimo, sem necessidade de declarar suas razões.” (grifo nosso)

Tal dispositivo legal, como se vê, reflete a jurisprudência mansa, pacífica e tranquila a respeito do tema, corroborando o lamentável fato de que a jurisprudência, mesmo quando oriunda de tribunais superiores e da própria Suprema Corte, revela-se como uma fonte do Direito brasileiro constantemente negligenciada, quando não simplesmente desprezada, quer pelo fato de seu simples desconhecimento, quer pelo fato de uma persistente desobediência judiciária.

Também não se pode olvidar que uma das razões decisivas que ensejaram a (redundante) inserção da expressão “sem necessidade de declarar suas razões”[7] no novo texto legal repousa justamente na reconhecida carência de conhecimentos técnico-processuais por parte dos atuais e mais jovens operadores do Direito (juízes, membros do Ministério Público e advogados), problemática que é fruto de um ensino jurídico de péssima qualidade e que negligencia a importância da disciplina hermenêutica, reduzindo-a a condenáveis debates político-ideológicos[8].

Nada obstante a clareza da regra consubstanciada no Novo CPC, o CNJ, por meio do Ofício Circular nº 22, de 3 de junho de 2016, determinou a observância da Resolução nº 82/2009, o que ensejou o ajuizamento de Mandado de Segurança Coletivo (nº 34.316) junto à Corte Suprema, tendo o Ministro Teori Zavascki, em sede de pedido de liminar, decidido da seguinte forma:

“DECISÃO: 1. Trata-se de mandado de segurança coletivo, com pedido de liminar, impetrado pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA) e pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE) contra ato da Corregedora Nacional de Justiça ‘consubstanciado no Ofício Circular n. 22, de 3 de junho de 2016, que determinou a observância da Resolução nº 82 do CNJ’ (fl. 1). Inicialmente, as impetrantes apresentam os seguintes fatos: (a) por meio da Resolução 82, havia o Conselho Nacional de Justiça criado norma exigindo dos magistrados que informassem às corregedorias a que estivessem vinculados as razões do ‘foro íntimo’ invocado nos processos em que afirmassem suspeição; (b) essa resolução foi atacada por meio de ação direta de inconstitucionalidade (ADI 4.260), tendo, a Relatora, Min. Rosa Weber, determinado a observância do rito do art. 12 da Lei 9.868/1999, o que inviabilizou a apreciação do pedido de medida cautelar; (c) assim, apresentaram Pedido de Providências perante o CNJ para suspender a eficácia dessa resolução, o qual não foi apreciado; (d) em seguida, impetraram mandado de segurança nesta Corte (MS 28.215), tendo o então Relator, Min. Ayres Britto, deferido o pedido de liminar; (e) em 2015, o mandado de segurança teve seu pedido negado com base na Súmula 266/STF, o que resultou na revogação da liminar; (f) intimados pela autoridade impetrada para que se manifestassem nos autos do referido Pedido de Providências, postularam a suspensão da eficácia da resolução ante a superveniência do novo código de processo civil (CPC/2015), o qual dispensa o magistrado de declarar as razões da declaração de suspeição por motivo de foro íntimo; (g) distribuídos os autos ao Conselheiro Arnaldo Hossepian Júnior, o pedido foi indeferido pelo fundamento de que a matéria fora judicializada na ADI 4.260; (h) em 3/6/2016, a autoridade impetrada expediu o Ofício Circular 22 determinando a observação da Resolução 82, sendo esse o ato atacado no presente mandado de segurança. Quanto ao mérito, sustentam as impetrantes que: (I) o CPC/15 (Lei n. 13.105/2015), indo além do CPC/73, deixa claro que, ao declarar a suspeição por motivo íntimo, o magistrado assim o fará sem necessidade de declarar suas razões; (II) nos termos do § 1º do art. 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, ‘a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior’; (III) ‘o § 1º do art. 145 não apenas regulou inteiramente a matéria de que trata a Resolução nº 82, como também a nova redação da lei se mostra incompatível com o da Resolução n. 82’; (IV) também nos processos de natureza penal a norma aplicável sobre a suspeição por motivo íntimo era e continua sendo a do CPC (fl. 9). No mais, informam que (i) ‘há procedimento em curso perante o CNJ visando a obter o pronunciamento do seu Plenário sobre a ocorrência ou não da revogação da Resolução n. 82’; e (ii) o Grupo de Trabalho formado no CNJ para discutir o novo CPC sugere a revogação dessa resolução (fl. 7). Requerem a concessão de liminar para a suspensão dos efeitos do Ofício Circular 22/2016 até o final julgamento do mandado de segurança, invocando, a título de periculum in mora, o conteúdo do ato impetrado, que reitera a exigência dos termos da Resolução 82 do CNJ. Pedem, ao final, seja concedida a ordem para ‘declarar inexigível aos magistrados as normas contidas na Resolução n. 82 do CNJ, uma vez que foi revogada pelo § 1º do art. 145 do Código de Processo Civil de 2015’ (fl. 12).

Atendendo a despacho da Presidência proferido em 25/7/2016, a autoridade impetrada prestou informações (doc. 31).

2. O deferimento de medidas liminares pressupõe presentes a relevância jurídica da pretensão, bem como a indispensabilidade da providência antecipada, como forma de garantir a efetividade de futuro e provável juízo de procedência. No caso, está configurada a relevância do direito afirmado pelas impetrantes, tendo em vista que o ato normativo que a autoridade coatora exige seja cumprido tornou-se, à primeira vista, incompatível com a superveniência do novo código de processo civil (CPC/2015), segundo o qual ‘Poderá o juiz declarar-se suspeito por motivo de foro íntimo, sem necessidade de declarar suas razões’ (art. 145, § 1º). Nessas circunstâncias, deve ser suspensa a eficácia do ato impetrado (Ofício Circular 22/2016, da Corregedora Nacional de Justiça), ressaltando-se, ademais, que não está o CNJ impedido de examinar, em procedimento próprio, o tema da revogação da Resolução 82 pelo CPC/2015.

3. Ante o exposto, defiro a liminar para suspender os efeitos do Ofício Circular 22/2016 da Corregedora Nacional de Justiça. Solicitem-se informações, procedendo-se aos demais atos previstos no art. 7º, I e II da Lei 12.016/09. Dê-se vista, oportunamente, ao Procurador-Geral da República.

Publique-se. Intime-se.

Brasília, 22 de agosto de 2016.”

Cumpre registrar, por derradeiro, que o CNJ, na 18ª Sessão do Plenário Virtual (25/08/2016 à 30/08/2016), finalmente revogou a malsinada Resolução, tendo o Relator, o Conselheiro Gustavo Alkmim, expressamente reconhecido que “o legislador, quando modificou o normativo processual sobre o tema, buscou preservar a intimidade do Magistrado, garantindo a sua independência e imparcialidade, sem presumir, de plano, o uso abusivo do seu direito de se afastar do processo por motivo de foro íntimo.”


7. Conclusões

Conforme afirmado, o Magistrado não deve, em nenhuma hipótese, julgar e nem realizar qualquer processamento para o qual não entenda estar na absoluta plenitude das condições objetivas (impedimento) e subjetivas (suspeição), na exata medida em que cabe ao próprio Juiz velar pela completa imparcialidade e independência em seus julgamentos, como condição básica e fundamental para assegurar a inequívoca presença dos preceitos e garantias, relativos ao processo, consagrados na Constituição Federal.

Neste diapasão, resta importante registrar, - de forma definitiva e derradeira -, que a declaração de suspeição do Magistrado, por razões de ordem íntima, se caracteriza, à luz da doutrina amplamente majoritária (se não unânime) e da jurisprudência pátria, em efetivo direito subjetivo próprio, outorgado ao Juiz, para que este possa, em sua completa inteireza, velar pela absoluta imparcialidade e independência em seus julgamentos, como condição básica e fundamental à garantia constitucional do devido processo legal.

O Novo Código de Processo Civil, ao consolidar no seu texto a desnecessidade de o Magistrado justificar ou explicitar as razões íntimas que o levaram a se declarar por suspeito, bastando apenas a afirmativa de suspeição, demonstrou, de forma inequívoca, tratar-se de uma faculdade sujeita a seu exclusivo arbítrio, condicionada  apenas e tão somente à irrestrita defesa pela permanente presença, na sua atividade jurisdicional, dos elementos mínimos imprescindíveis à garantia do devido processo legal.


Referências Bibliográficas

BARBI, Celso Agrícola. Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983.

COSTA, Lopes da. Manual Elementar de Direito Processual Civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1982.  

MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de Processo Penal Interpretado. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2003.

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil, vol. III. Rio de Janeiro: Forense, 1995.

PASSOS, José Joaquim Calmon de. Revista Forense, v. 277 – 01, 02, 03 de 1982.

PAULA, Alexandre de. Código de Processo Civil Anotado, vol. I. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1988.


Notas

[1] Muito embora a previsão normativa da compensação de distribuição considere apenas o aspecto quantitativo, evitando que os diversos juízes de uma determinada Comarca (Justiça Estadual) ou Seção Judiciária (Justiça Federal) tenham para si um número diferente de processos distribuídos em determinado período, não é verdade que o julgador avesso ao trabalho pudesse – de forma segura – “trocar” o eventual processo complexo, originariamente distribuído ao seu juízo, – através da prática distorcida de declaração leviana de suspeição por motivo de foro íntimo –, por outro processo de maior simplicidade, posto que o sorteio – implícito na distribuição – se não considera o aspecto qualitativo das demandas a serem distribuídas uniformemente para os diversos juízos, não deixa de permitir, por considerações de ordem probabilística, que um outro processo – muito mais complexo que o primeiro – seja distribuído, por compensação, ao Juiz que se julgou suspeito para decidir a demanda originária.

[2] Não é por outra razão que o processo de seleção do magistrado deve ser constantemente aperfeiçoado e perseguido em sua própria plenitude. O julgador deve – além da efetiva comprovação de conhecimentos técnico-jurídicos – demonstrar durante o processo de recrutamento a necessária aptidão para o exercício da função, o que corresponde, em outras palavras, à presença de certas qualidades, tais como a moralidade, a ética, a firmeza de caráter, a consciência reta (não perplexa, a hesitar ante as dificuldades dos textos e a contradição entre as alegações e as provas), a serenidade, o domínio absoluto sobre as paixões, a coragem moral e a permanente disposição de enfrentamento diante das contínuas pressões políticas.

Não podemos nos esquecer de que, em grande medida, a observância de um rigoroso processo de seleção e recrutamento de juízes, - quando efetivamente existente -, tem se mostrado, ao longo do tempo, sinérgico mecanismo apto a coibir, de forma preventiva, a indesejável presença, no Poder Judiciário, de magistrados com desvios de caráter suficientemente acentuado para o comprometimento, ainda que parcial, da prestação jurisdicional.

[3] Apesar de ambas as situações – a do magistrado que se acovarda diante das pressões que envolvem o julgamento de uma demanda determinada e que, por conta disso, utiliza-se (levianamente) do expediente da declaração de suspeição por motivo íntimo, e a do Juiz que simplesmente julga parcialmente (com ausência de isenção e independência) a demanda em favor daquela parte que se apresenta como “pessoa poderosa do meio”, em face de seu incontestável prestígio e capacidade político-econômica – se constituírem em motivos igualmente ensejadores de veemente repulsa, sem a menor sombra de dúvida, numa situação de inexorável opção, deve ser preferível a primeira situação (caracterizadora do Juiz covarde) à segunda (evidenciadora da prestação jurisdicional completamente exposta à plena ausência de sua própria legitimidade), até porque, a absoluta isenção, imparcialidade e independência do Juiz (e do julgamento conduzido pelo mesmo) constituem-se em condição sine qua non para o efetivo exercício da função judicante.

Ademais, é importante ressaltar que o comportamento particular – fraco, covarde e pusilânime – do magistrado (condenável em todas as circunstâncias) pode, no máximo, comprometer o julgamento quanto ao caráter de sua própria pessoa, por parte dos jurisdicionados, ao passo que, com toda a certeza, o julgamento tendencioso, conduzido ao sabor da parcialidade (sobretudo em favor da parte visivelmente mais forte) e da ausência de isenção e independência por parte do julgador pode comprometer seriamente toda a estrutura do Poder Judiciário, sua própria legitimação e, acima de tudo, sua indispensável credibilidade social.

Já prelecionava, a respeito, MORTARA que “se os resultados da função jurisdicional não fossem assegurados pela absoluta honestidade, imparcialidade e diligência dos juízes, inútil seria pôr o mais profundo estudo e a mais meditada cautela a serviço de construir, com os mais sólidos materiais e segundo as melhores regras de arquitetura, o edifício da hierarquia judiciária”.

[4] Não obstante a exegese interpretativa do art. 135, parágrafo único, do CPC de1973, bem como a conotação de absoluta intangibilidade da declaração de suspeição do magistrado por motivo de foro íntimo, a Egrégia Corregedoria do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (Rio de Janeiro e Espírito Santo) entendeu por bem editar o Provimento nº 26/1993, aparentemente ressuscitador – através de ato administrativo normativo – do preceito legal registrado no art. 119, parágrafos 1º e 2º, do CPC de 1939:

“Provimento nº 26, de 25 de outubro de 1993

O Vice-Presidente-Corregedor do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, no uso de suas atribuições legais;

Considerando que é dever indeclinável do Juiz cumprir e fazer cumprir suas próprias decisões, bem como as do Tribunal a que estiver funcionalmente vinculado (art. 35, I, da Lei Complementar nº 35, de 1979);

Considerando a necessidade de preservar a competência e a autoridade de superior instância;

Considerando que o inconformismo do Magistrado com a reforma de suas sentenças ou decisões pelo Tribunal competente constitui ato de indisciplina;

Considerando que não é correta a conduta do Magistrado que, sob pretexto de suspeição por motivo íntimo, se recusa a cumprir as decisões superiores que contrariam suas convicções jurídicas ou filosóficas, determinando a redistribuição dos autos, imediatamente após seu retorno à primeira instância e antes de qualquer providência;

Resolve:

I – Será considerado como ato de indisciplina a omissão ou negativa do Juiz, que vinha funcionando no processo, em dar imediato cumprimento às decisões ou acórdãos do Tribunal Regional Federal da 2ª Região ou dos Tribunais Superiores, sob a alegação de suspeição por motivo íntimo.

II – Ocorrendo motivo superveniente à reforma de sua decisão, que o incapacite psicologicamente para o cumprimento do julgado da instância superior, deverá o Juiz, ao determinar a redistribuição do feito, comunicar o fato, em caráter confidencial, ao Vice- Presidente-Corregedor.

III – O Juiz que, mediante redistribuição, receber autos nas condições explicitadas no inciso I, deverá dar conhecimento do fato ao Vice-Presidente-Corregedor para providência correicional cabível.” (grifo nosso)

Vale registrar que, em face de veementes críticas ao aludido provimento, a própria Corregedoria, à época, reconheceu o equívoco e a inadequação de sua iniciativa, revogando, prontamente, o mencionado Provimento.

Por fim, cumpre consignar que o atual Regimento Interno do TRF/2ª Região expressamente prevê, em seu art. 226, parágrafo único, que “a suspeição por motivo de foro íntimo independe de qualquer justificação”, pacificando de vez a questão no âmbito deste Tribunal.

[5] É importante esclarecer que, para parcela significativa da doutrina, não é correto afirmar que o magistrado possui simplesmente o direito derradeiro de se afastar do processo por motivo de foro íntimo (ou por qualquer outro que lhe deixe em posição de suspeição). Em essência, o Juiz possui, na verdade, o dever, a obrigatoriedade de assim proceder, especialmente quando não se sinta plenamente livre para atender às condicionantes constitucionais de um julgamento absolutamente isento, impessoal e independente, como exige a nossa Lei Maior.

[6] É importante registrar que, diferentemente da disciplina processual civil – onde a possibilidade de o magistrado declarar-se suspeito, por razões íntimas, é previsão expressa do Código em questão e resultado de uma incontestável evolução do instituto em relação, sobretudo, à anterior previsão do vício no Código de Processo Civil, de 1939 –, a matéria normativa da espécie, no processo penal, se encontra consignada, acima de tudo, em algumas leis de organização judiciária, não obstante a maior parte dos doutrinadores defender o ponto de vista segundo o qual é possível, in casu, a utilização da analogia – como fator de integração (e não simples interpretação) da norma –, para permitir a aplicação do dispositivo legal expresso no art. 135, parágrafo único, do CPC de 1973 e, agora, a nova previsão legal ínsita no art. 145, §1º, do CPC de 2015, ao Direito Processual Penal.

“Muito embora a suspeição por motivo íntimo não esteja prevista no Código de Processo Penal, se o Juiz criminal se sentir, em consciência, impedido de presidir determinado feito, poderá jurar suspeição por motivo íntimo.” (MIRABETE, 2003, p. 643)

[7] Em essência, as razões, - e a consequente motivação (fundamentação) -, da decisão em que o Juiz declara-se suspeito por motivo de foro íntimo encontram-se exatamente na própria natureza do “foro íntimo” consignado expressa e obrigatoriamente pelo Julgador, revelando-se, desta feita, uma verdadeira impropriedade técnica a expressão registrada no novo texto legal, “sem necessidade de declarar suas razões”, posto que as mesmas estão implicitamente declaradas na própria expressão legal “por razões de foro íntimo”, tanto é assim que, acaso o Julgador venha a, voluntariamente, declinar o conteúdo do “foro íntimo” alegado, o poder discricionário que lhe permite, em última análise, a autêntica facultas de se declarar suspeito por motivo de foro íntimo sem ter de justificar sua conduta, se descaracteriza, transmutando em autêntico poder vinculado, passível, por efeito, de julgamento pelo grau jurisdicional superior.

“[...] O Magistrado não precisa dizer porque se declara suspeito por motivo íntimo. Entretanto, desde que declarou o fato causador da suspeição, no meu entendimento, tenho que a Câmara pode apreciar este fato.” (Des. Túlio Medina Martins, RJTJ-RS, vol. 122, p. 207).

[8] É importante frisar que muitas Faculdades de Direito do Brasil sequer possuem, em seus respectivos currículos escolares, a disciplina hermenêutica jurídica, relegando esta importantíssima matéria de formação interpretativa a simples conteúdos de Introdução ao Estudo do Direito. Neste sentido, tivemos a grata satisfação de, na qualidade de Professor Titular da Universidade Veiga de Almeida (UVA), no Rio de Janeiro, ter introduzido a mencionada disciplina na grade obrigatória do curso de Direito daquela instituição de ensino.


Abstract: This article analyzes the normative discipline, previous and current, of the judicial disqualification - also referred to as recusal -, examining the criticism regarding this institute. Subsequently, it focuses on the absolute inviolability of such recusal and its irreversibility, highlighting the impossibility of complaint, by the part, in what regards the disqualification.

Keywords: Judicial Disqualification. Recusal. Inviolability. Irreversibility.


Autor

  • Reis Friede

    Desembargador Federal, Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), Mestre e Doutor em Direito e Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Graduação em Engenharia pela Universidade Santa Úrsula (1991), graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1985), graduação em Administração - Faculdades Integradas Cândido Mendes - Ipanema (1991), graduação em Direito pela Faculdade de Direito Cândido Mendes - Ipanema (1982), graduação em Arquitetura pela Universidade Santa Úrsula (1982), mestrado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988), mestrado em Direito pela Universidade Gama Filho (1989) e doutorado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1991). Atualmente é professor permanente do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Local - MDL do Centro Universitário Augusto Motta - UNISUAM, professor conferencista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, professor emérito da Escola de Comando e Estado Maior do Exército. Diretor do Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF). Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região -, atuando principalmente nos seguintes temas: estado, soberania, defesa, CT&I, processo e meio ambiente.

    Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF/2), Mestre e Doutor em Direito.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRIEDE, Reis. Suspeição por motivo de foro íntimo à luz do novo Código de Processo Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5256, 21 nov. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/62138. Acesso em: 15 maio 2024.