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O que sobrou da lei dos crimes hediondos

O que sobrou da lei dos crimes hediondos

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Estuda-se a Lei dos Crimes Hediondos sob a ótica constitucional, notadamente à luz do princípio da proteção suficiente.

1.Introdução

 Dois anos após a promulgação da Constituição Federal, veio à lume a Lei 8072/90, a chamada Lei dos Crimes Hediondos. Atendendo a uma ordem constitucional (art. 5º, XLIII da CF), a Lei 8072/90 possui o nítido objetivo de tratar de forma rigorosa os crimes mais graves do direito penal brasileiro. A Constituição Federal assim dispõe no art. 5º XLIII:

A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;

O constituinte expressamente elencou três infrações penais como hediondas: tráfico, tortura e terrorismo, determinando que outros crimes fossem considerados hediondos pela lei, dando a todos esses crimes tratamento jurídico rigoroso. A própria Constituição se encarregou de vedar alguns benefícios penais e processuais penais: a fiança, a graça e a anistia, cabendo ao legislador infraconstitucional estabelecer outras hipóteses de rigidez e recrudescimento em matéria penal e processual penal, aos crimes considerados hediondos.

 Todavia, nos últimos anos, a interpretação judicial, sobretudo dos Tribunais Superiores, vem glosando – algumas vezes de forma acertada, outras não - inúmeros dos artigos da Lei dos Crimes Hediondos, sob a pecha da inconstitucionalidade, retalhando sua aplicação e inviabilizando seu emprego, que tem como fim, a severidade de tratamento jurídico aos crimes mais graves do ordenamento jurídico brasileiro. É disso que se tratará adiante.


2.A inconstitucionalidade da vedação da liberdade provisória

A redação original da Lei dos Crimes Hediondos assim previa:

Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: II - fiança e liberdade provisória.

Críticas não faltaram à redação do dispositivo, que além de vedar a fiança, vedava, ainda, a liberdade provisória. Em outras palavras, aquele que fosse preso em flagrante por crime hediondo ou equiparado, sendo legal o flagrante, deveria responder todo o processo provisoriamente preso, sem a necessidade de qualquer fundamentação judicial cautelar.  

A CF (art. 5º XLIII) ao vedar a fiança aos crimes hediondos, não vedou a liberdade provisória, afinal, conforme o art. 5º, LXVI, da CF, percebe-se que a liberdade provisória pode ocorrer com ou sem fiança. Enfim, a CF apenas vedou a fiança aos crimes hediondos (art. 5º XLIII). Foi a Lei 8072/90 (art. 2º II) que vedou a liberdade provisória aos crimes hediondos. E essa vedação, mesmo que dirigida aos mais graves crimes do ordenamento jurídico, é inconstitucional, pois equivale a uma  prisão ex lege, sem a necessidade de fundamentação judicial cautelar (art. 93 IX da CF), violadora do princípio da presunção de inocência (art. 5º LVII da CF).

A presunção de inocência ou presunção de não culpabilidade significa que todos são presumidamente inocentes até a condenação criminal transitada em julgado. Em outras palavras, ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

O princípio da presunção de inocência possui três implicações: como regra de processo (o ônus da prova é da acusação), regra de julgamento (in dubio pro reo) e regra de tratamento (que impede que o suspeito, o indiciado, o denunciado ou o réu, sejam tratados como se estes já houvessem sido condenados, definitivamente, por sentença do Poder Judiciário). Na vertente da regra de tratamento é que se impede restrições antecipadas aos direitos dos cidadãos (salvo a concessão de cautelares em caráter excepcional). Daí a possibilidade de prisão processual em situações excepcionais e devidamente justificadas com base no fumus delicti e periculum libertatis.

 Ora, a prisão provisória, qualquer que seja a espécie, deve possuir fundamento cautelar. Não havendo o periculum libertatis, devidamente fundamentado e justificado à luz princípio da motivação das decisões judiciais, não se justifica a prisão provisória durante o trâmite da persecução penal. Outro entendimento violaria o princípio da presunção de inocência, equivalendo a uma pena antecipada.

A jurisprudência - é certo, de forma vacilante - não demorou para visualizar essa anomalia e rechaçar tal entendimento.

CRIMINAL. HC. HOMICÍDIO. PRISÃO EM FLAGRANTE. LIBERDADE PROVISÓRIA. INDEFERIMENTO. HEDIONDEZ DO DELITO. MOTIVAÇÃO INIDÔNEA A RESPALDAR A CUSTÓDIA. AUSÊNCIA DE CONCRETA FUNDAMENTAÇÃO. ORDEM CONCEDIDA. A prisão preventiva é medida excepcional e deve ser decretada apenas quando devidamente amparada pelos requisitos legais, em observância ao princípio constitucional da presunção de inocência ou da não culpabilidade, sob pena de antecipar a reprimenda a ser cumprida quando da condenação. O fato de se tratar de crime hediondo não basta, por si só, para justificar a custódia cautelar, sendo necessária a devida fundamentação. Precedente. Precedente desta Corte. Deve ser cassado o acórdão recorrido, bem como a decisão monocrática por ele confirmada, para conceder aos pacientes o benefício da liberdade provisória, mediante as condições estabelecidas pelo Juiz de 1º grau, se por outro motivo não estiverem presos, sem prejuízo de que venha a ser decretada novamente a custódia cautelar, com base em fundamentação concreta. Ordem concedida, nos termos do voto do Relator. (STJ. HC 68.196/PA, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 05/12/2006, DJ 05/02/2007, p. 317)

Prisão em flagrante. Liberdade provisória. Fundamentação (falta). 1. Toda medida cautelar que afete pessoa haverá de conter os seus motivos, por exemplo, a prisão preventiva haverá de ser sempre fundamentada, quando decretada e quando denegada (Cód. de Pr. Penal, art. 315). 2. Sendo lícito ao juiz, no caso de prisão em flagrante, conceder ao réu liberdade provisória (Cód. de Pr. Penal, art. 310, parágrafo único), o seu ato, seja ele qual for, não prescindirá de fundamentação. 3. Tratando-se de ato (negativo) sem suficiente fundamentação, é de se reconhecer, daí, que a paciente sofre a coação ensejadora do habeas corpus. 4. Recurso provido, concedendo-se à paciente liberdade provisória. (STJ. RHC 17.551/DF, Rel. Ministro NILSON NAVES, SEXTA TURMA, julgado em 16/06/2005, DJ 06/03/2006, p. 442)

Tanto é assim, que vedações semelhantes, previstas no Estatuto do Desarmamento (art. 21) e Lei de Tóxicos (art. 44), foram consideradas inconstitucionais pelo STF:

HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. TRÁFICO DE ENTORPECENTES. PRISÃO PREVENTIVA. PRISÃO EM FLAGRANTE[...] A vedação da concessão de liberdade provisória ao preso em flagrante por tráfico de entorpecentes, veiculada pelo artigo 44 da lei n. 11.343/06, consubstancia afronta escancarada aos princípios da presunção da inocência, do devido processo legal e da dignidade da pessoa humana [arts. 1º, III, e 5º, LIV e LVII, da CB/88]. Daí a necessidade de adequação desses princípios à norma veiculada no artigo 5º, inciso XLIII, da CB/88. A inafiançabilidade, por si só, não pode e não deve constituir-se em causa impeditiva da liberdade provisória. Não há antinomia na Constituição do Brasil. Se a regra nela estabelecida, bem assim na legislação infraconstitucional, é a liberdade, sendo a prisão a exceção, existiria conflito de normas se o artigo 5º, inciso XLIII estabelecesse expressamente, além das restrições nele contidas, vedação à liberdade provisória. Nessa hipótese, o conflito dar-se-ia, sem dúvida, com os princípios da dignidade da pessoa humana, da presunção de inocência, da ampla e do devido processo legal. (STF. HC 97579, Relator(a):  Min. ELLEN GRACIE, Relator(a) p/ Acórdão:  Min. EROS GRAU, Segunda Turma, julgado em 02/02/2010, DJe-086 DIVULG 13-05-2010 PUBLIC 14-05-2010 EMENT VOL-02401-02 PP-00349)

Habeas corpus. 2. Paciente preso em flagrante por infração ao art. 33, caput, c/c 40, III, da Lei 11.343/2006. 3. Liberdade provisória. Vedação expressa (Lei n. 11.343/2006, art. 44). 4. Constrição cautelar mantida somente com base na proibição legal. 5. Necessidade de análise dos requisitos do art. 312 do CPP. Fundamentação inidônea. 6. Ordem concedida, parcialmente, nos termos da liminar anteriormente deferida.(STF. HC 104339, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 10/05/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-239 DIVULG 05-12-2012 PUBLIC 06-12-2012)

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 10.826/2003. ESTATUTO DO DESARMAMENTO [...] Insusceptibilidade de liberdade provisória quanto aos delitos elencados nos arts. 16, 17 e 18. Inconstitucionalidade reconhecida, visto que o texto magno não autoriza a prisão ex lege, em face dos princípios da presunção de inocência e da obrigatoriedade de fundamentação dos mandados de prisão pela autoridade judiciária competente. (STF. ADI 3112, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 02/05/2007, DJe-131 DIVULG 25-10-2007 PUBLIC 26-10-2007 DJ 26-10-2007 PP-00028 EMENT VOL-02295-03 PP-00386 RTJ VOL-00206-02 PP-00538)

Daí a nova redação do art. 2º II da Lei 8072/90, que melhor se coaduna com a exegese constitucional:

Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: II - fiança. (Redação dada pela Lei nº 11.464, de 2007)                                     


3.A inconstitucionalidade do regime integralmente fechado

O art. 2º, § 1º, da Lei 8072/90 previa que a pena por crime hediondo ou equiparado seria cumprida integralmente em regime fechado.

Embora com adesão jurisprudencial significativa, tal dispositivo, ao ser questionado no STF, recebeu a pecha de inconstitucional (em controle difuso de constitucionalidade), por violar o princípio da individualização da pena (art. 5º XLVI da CF).

PENA - REGIME DE CUMPRIMENTO - PROGRESSÃO - RAZÃO DE SER. A progressão no regime de cumprimento da pena, nas espécies fechado, semi-aberto e aberto, tem como razão maior a ressocialização do preso que, mais dia ou menos dia, voltará ao convívio social. PENA - CRIMES HEDIONDOS - REGIME DE CUMPRIMENTO - PROGRESSÃO - ÓBICE - ARTIGO 2º, § 1º, DA LEI Nº 8.072/90 - INCONSTITUCIONALIDADE - EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL. Conflita com a garantia da individualização da pena - artigo 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal - a imposição, mediante norma, do cumprimento da pena em regime integralmente fechado. Nova inteligência do princípio da individualização da pena, em evolução jurisprudencial, assentada a inconstitucionalidade do artigo 2º, § 1º, da Lei nº 8.072/90. (STF. HC 82959, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 23/02/2006, DJ 01-09-2006 PP-00018 EMENT VOL-02245-03 PP-00510 RTJ VOL-00200-02 PP-00795)

O princípio da individualização da pena possui três estágios: a) individualização legislativa: processo por meio do qual são selecionados os fatos puníveis e cominadas as sanções respectivas, estabelecendo seus limites e critérios de fixação de pena; b) individualização judicial: elaborada pelo juiz na sentença, é a atividade que concretiza a individualização legislativa que cominou abstratamente as sanções penais; c) individualização executória: ocorre durante o cumprimento da sanção penal, também pelo juiz, objetivando a ressocialização do sentenciado (LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. Juspodivm. 2ª ed. p. 76).

Na visão da Suprema Corte, por força do princípio da individualização da pena, confere-se ao legislador ordinário o poder de disciplinar a individualização penal nas fases legislativa, judicial e executória, mas não lhe autoriza excluí-la em nenhuma dessas etapas, sob pena de violação do art. 5º, XLVI, da CF.

Afinal, o juiz da execução também precisa dispor de instrumentos para buscar a individualização da reprimenda imposta ao condenado, sobretudo se considerarmos que a progressão no regime de cumprimento de pena, nas espécies fechado, semiaberto e aberto, tem como razão maior a ressocialização do preso, que mais dia ou menos dia, voltará ao convívio social. Logo, não se pode privar o preso, em abstrato, do direito à progressão. Por isso, o STF deliberou por afastar a vedação em abstrato à progressão de regimes, ficando a critério do Juiz da execução, a apreciação, no caso concreto, dos requisitos objetivos e subjetivos listados no art. 112 da LEP. (LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação Criminal Especial Comentada. Juspodivm. 2ª ed. p. 77).

Em outras palavras, entendeu o pleno do STF que o regime integralmente fechado violava a individualização da pena pelo juiz, que se via impedido de conceder a progressão quando verificado que o mérito do apenado fizesse demonstrar a adaptação do regime atual e probabilidade de adaptação ao regime mais benéfico, galgando, assim, progressivamente sua liberdade, preparando-o para o pacífico convívio em sociedade, o que atende, inclusive, a parcela dos fins da sanção penal, qual seja, a ressocialização.

Daí a nova redação do art. 2º, § 1º, da Lei 8072/90, que a meu ver, melhor se coaduna com a interpretação constitucional:

A pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado. (Redação dada pela Lei nº 11.464, de 2007)


4.A constitucionalidade do regime inicialmente fechado

Como se não bastasse, o regime inicialmente fechado, agora previsto pela Lei 11464/2007 (ao alterar o art. 2º § 1º da Lei 8072/90), passou a ser questionado judicialmente, até que o Pleno do STF (em controle difuso de constitucionalidade) entendeu ser inconstitucional também o regime inicialmente fechado, violador do princípio da individualização da pena. Para a Suprema Corte, se o regime integralmente fechado é inconstitucional, também é o regime inicialmente fechado.

Habeas corpus. Penal. Tráfico de entorpecentes. Crime praticado durante a vigência da Lei nº 11.464/07. Pena inferior a 8 anos de reclusão. Obrigatoriedade de imposição do regime inicial fechado. Declaração incidental de inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90. Ofensa à garantia constitucional da individualização da pena (inciso XLVI do art. 5º da CF/88). Fundamentação necessária (CP, art. 33, § 3º, c/c o art. 59). Possibilidade de fixação, no caso em exame, do regime semiaberto para o início de cumprimento da pena privativa de liberdade. Ordem concedida. 1. Verifica-se que o delito foi praticado em 10/10/09, já na vigência da Lei nº 11.464/07, a qual instituiu a obrigatoriedade da imposição do regime inicialmente fechado aos crimes hediondos e assemelhados. 2. Se a Constituição Federal menciona que a lei regulará a individualização da pena, é natural que ela exista. Do mesmo modo, os critérios para a fixação do regime prisional inicial devem-se harmonizar com as garantias constitucionais, sendo necessário exigir-se sempre a fundamentação do regime imposto, ainda que se trate de crime hediondo ou equiparado. 3. Na situação em análise, em que o paciente, condenado a cumprir pena de seis (6) anos de reclusão, ostenta circunstâncias subjetivas favoráveis, o regime prisional, à luz do art. 33, § 2º, alínea b, deve ser o semiaberto. 4. Tais circunstâncias não elidem a possibilidade de o magistrado, em eventual apreciação das condições subjetivas desfavoráveis, vir a estabelecer regime prisional mais severo, desde que o faça em razão de elementos concretos e individualizados, aptos a demonstrar a necessidade de maior rigor da medida privativa de liberdade do indivíduo, nos termos do § 3º do art. 33, c/c o art. 59, do Código Penal. 5. Ordem concedida tão somente para remover o óbice constante do § 1º do art. 2º da Lei nº 8.072/90, com a redação dada pela Lei nº 11.464/07, o qual determina que “[a] pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado“. Declaração incidental de inconstitucionalidade, com efeito ex nunc, da obrigatoriedade de fixação do regime fechado para início do cumprimento de pena decorrente da condenação por crime hediondo ou equiparado. (STF. HC 111840, Relator(a):  Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 27/06/2012, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-249 DIVULG 16-12-2013 PUBLIC 17-12-2013)

 Essa jurisprudência passou a ser seguida pelos demais Tribunais, inclusive pelo STJ:

PENAL E PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO. REGIME INICIAL MAIS GRAVOSO. GRAVIDADE ABSTRATA DO DELITO. FUNDAMENTAÇÃO INIDÔNEA. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. 1. No que concerne à fixação do regime fechado, cumpre asseverar que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o HC 111.840/ES, por maioria, declarou incidentalmente a inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei 8.072/1990, com a redação dada pela Lei 11.464/2007, afastando, dessa forma, a obrigatoriedade do regime inicial fechado para os condenados por crimes hediondos e equiparados, determinando, também nesses casos, a observância do disposto no art. 33, §§ 2º e 3º, c/c o art. 59 do Código Penal. 2. As instâncias ordinárias fixaram o regime fechado com base na gravidade abstrata do delito, em manifesta contrariedade ao entendimento dos Tribunais Superiores. Dessa forma, é necessária a remessa dos autos ao Juízo de primeira instância para que avalie com base em motivação concreta, a possibilidade de fixação de regime menos gravoso. 3. Agravo regimental improvido. (STJ. AgRg no REsp 1523103/SP, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 30/06/2015, DJe 03/08/2015)

Aqui o STF não agiu com seu costumeiro acerto. Ora, se o regime inicialmente fechado da Lei 8072/90 é inconstitucional, também seria inconstitucional o regime inicialmente fechado daquele que é condenado a pena superior a 8 anos (art. 33 § 2º “a” do CP), como também seria inconstitucional o regime inicialmente fechado fixado àquele condenado a pena superior a 4 anos e reincidente (art. 33 § 2º “b” do CP).

O princípio da individualização da pena, assim está previsto na CF (art. 5º XLVI):

XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos;

Como dito, o princípio da individualização da pena possui três estágios: primeiro, através do legislador, chamada de cominação da pena (individualização legislativa); segundo, através do juiz, chamada de aplicação da pena (individualização judicial); terceiro, também através do juiz, chamada de execução da pena (individualização executória).

Não há qualquer vedação ao legislador fixar tratamento penal mais rigoroso (regime inicial fechado) àquele que pratica crime hediondo ou àquele que pratica crime não hediondo, mas sofre elevada pena, superior a 8 anos, ou superior a 4 anos e reincidente, apenas para citar alguns exemplos. Trata-se de opção legítima do legislador, a quem também foi conferida parcela da individualização da pena. Afinal, a CF (art. 5º XLVI) é expressa ao estabelecer que a lei regulará a individualização da pena.

A Constituição, ao conferir ao legislador a possibilidade de cominar penas e benefícios penais, também conferiu ao legislador a possibilidade de cominar penas severas a crimes graves e a glosar benefícios penais a crimes igualmente graves. Da mesma forma, também conferiu ao legislador a possibilidade de fixar regime de cumprimento de pena severo a crimes graves, seja pela natureza do crime (hediondo, por exemplo), seja pela quantidade da pena (superior a 8 anos, por exemplo).

A questão é diversa do regime integralmente fechado. Nesse, o legislador tolheu totalmente do juiz a possibilidade de individualizar a pena em sede de execução penal, não permitindo ao magistrado a avaliação do mérito do apenado para contemplá-lo com regime mais benéfico, galgando progressivamente sua liberdade, preparando-o para o pacífico convívio em sociedade.

No regime inicialmente fechado, a individualização em sede de execução penal não resta tolhida, pois ao juiz é permitido progredir o apenado a regime menos severo, quando verificado que o mérito do apenado faz demonstrar a adaptação do regime atual e probabilidade de adaptação ao regime mais benéfico.

Em outras palavras, é possível a vedação legal de benefícios penais, bem como a fixação legal de determinado regime inicial de cumprimento de pena, desde que permaneça parcela de poder ao juiz para individualizar a pena em sede de aplicação da pena e execução penal. Por outro lado, será inconstitucional o total tolhimento legislativo do poder do juiz para aplicar e executar a pena.

Há inúmeras hipóteses de limitação legislativa da esfera de arbítrio do órgão julgador no momento da individualização judicial e executória da pena, como: a) a previsão do regime inicial fechado para penas superiores a 8 anos; b) a previsão de regime inicial fechado para penas superiores a 4 anos, sendo o réu reincidente; c) a previsão de pena mínima e máxima para todo e qualquer crime; d) a fixação de requisitos positivos e negativos para a concessão de inúmeros benefícios penais e processuais penais.  Ou seja, o legislador pode estabelecer limites à liberdade de apreciação do caso concreto pelos juízes, como imperativo de igualdade de tratamento, de segurança jurídica e de justiça, notadamente quando em análise os crimes considerados hediondos, ante a gravidade que constitucionalmente lhes é atribuída.

A norma constitucional (art. 5º XLVI) estabelece, claramente, que “a lei regulará a individualização da pena”. Portanto, confere ao legislador a possibilidade de regular a individualização da pena, desde que não anule toda e qualquer possibilidade de individualização por parte do juiz. Seria o caso, por exemplo, de um preceito secundário (pena de um crime) fixado em 5 anos, não havendo pena mínima ou máxima.

Limitar não é sinônimo de neutralizar. Limitações racionais feitas pelo legislador à individualização realizada pelo juiz são absolutamente válidas, notadamente quando fundamentadas em razão da gravidade dos crimes hediondos. Portanto, o legislador pode estabelecer, legitimamente, os standards para a individualização da pena, desde que não tolha totalmente a possibilidade de individualização pelo juiz. Daí a constitucionalidade do regime inicialmente fechado para os crimes hediondos e equiparados.


5.A inconstitucionalidade do indulto humanitário

 A CF veda a anistia e a graça aos crimes hediondos. Não fala do indulto. Nem precisaria. O indulto nada mais é do que uma variante da graça, essa individual, aquele coletivo. Ambos são espécies de clemência estatal, mediante decreto presidencial, causas de extinção da punibilidade.

A jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de que o instituto da graça, previsto no art. 5.º, inc. XLIII, da Constituição Federal, engloba o indulto e a comutação da pena, estando a competência privativa do Presidente da República para a concessão desses benefícios limitada pela vedação estabelecida no referido dispositivo constitucional. (STF. HC 115099, Relator(a):  Min. CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, julgado em 19/02/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-049 DIVULG 13-03-2013 PUBLIC 14-03-2013)

A Lei 8072/90 é expressa em vedar, nos crimes hediondos e equiparados, a anistia, a graça e o indulto (art. 2º, I). Apenas por amor ao debate, para aqueles que entendem que não está subsumida à CF a vedação do indulto aos crimes hediondos, a Lei 8072/90 tratou de colocar uma pá de cal nisso. É verdade que aqueles que entendem que não está subsumida à CF a vedação do indulto aos crimes hediondos, poderão dizer que a lei 8072/90 não poderia trazer essa vedação inovatória. Ledo engano. A CF trouxe um rol mínimo de benefícios penais que não devem ser concedidos aos praticantes de crimes hediondos, mas não vedou a proibição de outros benefícios penais, desde que compatíveis com a Constituição. Ora, se proibida a clemência estatal individual (graça) pela CF, compatível com a Constituição a proibição legal da clemência estatal coletiva (indulto).

Mesmo assim, os decretos presidenciais de indulto têm admitido o chamado indulto humanitário  (aquele concedido por razões de grave deficiência física ou em virtude de debilitado estado de saúde) aos condenados a crimes hediondos e equiparados, por razões administrativas e humanitárias, o que vem encontrando certa guarida na jurisprudência.

HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO APROPRIADO. DESCABIMENTO. EXECUÇÃO DA PENA. PLEITO PELO INDULTO HUMANITÁRIO DO DECRETO Nº 7.648/11. CEGUEIRA. COMPROVAÇÃO POR LAUDO MÉDICO. PACIENTE CONDENADA POR TRÁFICO DE DROGAS.  POSSIBILIDADE. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. 1. Nos termos do art. 1.º, inciso X, alínea a, do Decreto Presidencial n.º 7.648/11, foi concedido indulto aos apenados acometidos com paraplegia, tetraplegia ou cegueira, desde que tais condições não sejam anteriores à prática do delito e se comprovem por laudo médico oficial ou, na falta deste, por médico designado pelo juízo da execução. 2. A restrição contida no art. 8º do mencionado Decreto, que afasta a possibilidade de se conceder indulto aos condenados pela prática de tráfico de drogas, não atinge aqueles que, assim como a paciente, se enquadram na hipótese do art. 1º, inciso X, conforme ressalva contida no próprio art. 8º, § 1º. 3. Habeas corpus concedido de ofício para cassar o acórdão impugnado e deferir à paciente o benefício do indulto humanitário, nos termos do Decreto Presidencial nº 7.648/11. (STJ. HC 291.275/SP, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, QUINTA TURMA, julgado em 07/08/2014, DJe 14/08/2014)

Sob minha ótica, tal entendimento viola frontalmente a CF e a Lei 8072/90, que determinou tratamento rígido e severo aos crimes hediondos, não cabendo, sobretudo por ato infralegal (decreto presidencial), flexibilizar vedação prevista na Constituição e na Lei, que proíbem taxativamente a clemência estatal a crimes hediondos e equiparados, mesmo que seja por razões administrativas (superlotação e déficit carcerário) ou humanitárias. Ademais, tais situações de precária saúde já encontram tratamento mais brando em sede de execução penal, por exemplo, a prisão domiciliar (art. 117 da LEP).

Revela-se inconstitucional a possibilidade de que o indulto seja concedido aos condenados por crimes hediondos, de tortura, terrorismo ou tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, independentemente do lapso temporal da condenação (STF. Plenário. Medida cautelar na ADI 2.795/DF. Rel.: Min. MAURÍCIO CORRÊA. 8/5/2003, un. DJ, 20 jun. 2003, p. 56)

Habeas corpus. 2. Tráfico e associação para o tráfico ilícito de entorpecentes (arts. 33 e 35 da Lei 11.343/2006). Condenação. Execução penal. 3. Sentenciada com deficiência visual. Pedido de concessão de indulto humanitário, com fundamento no art. 1º, inciso VII, alínea a, do Decreto Presidencial n. 6.706/2008. 4. O Supremo Tribunal Federal já declarou a inconstitucionalidade da concessão de indulto a condenado por tráfico de drogas, independentemente da quantidade da pena imposta [ADI n. 2.795 (MC), Rel. Min. Maurício Corrêa, Pleno, DJ 20.6.2003]. 5. Vedação constitucional (art. 5º, inciso XLIII, da CF) e legal (art. 8º, inciso I, do Decreto n. 6.706/2008) à concessão do benefício. 6. Ausência de constrangimento ilegal. Ordem denegada. (STF. HC 118213, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 06/05/2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-149 DIVULG 01-08-2014 PUBLIC 04-08-2014)

 Daí a inconstitucionalidade do indulto aos crimes hediondos e equiparados, ante a necessidade de tratamento rígido a esses delitos, por mandamento constitucional.


6.Lei dos Crimes Hediondos - Mandado Constitucional de Criminalização e Princípio da Proteção Suficiente.

Ante a interpretação dos tribunais acerca da Lei 8072/90, pouco sobrou da lei dos crimes hediondos. Pouco ou quase nada. Só restaram a diferenciação dos critérios objetivos de progressão (2/5 se primário e 3/5 se reincidente – art. 2º, § 2º) e livramento condicional (art. 83, V, CP) e o prazo estendido de prisão temporária (30 dias prorrogável por igual período – art. 2º, § 4º). Além disso, apenas o aumento da pena do art. 288 do CP, quando se tratar de associação criminosa que visar a prática de crimes hediondos e equiparados (art. 8º), sendo certo que o próprio art. 288 do CP não é considerado hediondo. Nada mais sobrou, afinal, a vedação da anistia, graça e indulto (art. 2º I) e da fiança (art. 2º II), são previsões que já constavam da Constituição, sendo certo que o art. 9º está revogado pela revogação do art. 224 do CP.

Assim, a conclusão que se chega é que a lei dos crimes hediondos merece uma releitura constitucional. Como sabido, o constitucionalismo contemporâneo – neoconstitucionalismo - apresenta algumas características: a) a normatividade das regras e dos princípios; b) a superioridade das normas constitucionais; c) a centralidade da Constituição, assumindo o papel de norma centralizadora do sistema (BARCELLOS, Ana Paula de. Neoconstitucionalismo, Direitos Fundamentais e Controle das Políticas Públicas. In Leituras Complementares de Direito Constitucional. Direitos Humanos e Direitos Fundamentais. JusPodivm. 3ª ed. p. 152). Ante a superioridade das normas constitucionais, bem como o papel da Constituição de norma central do sistema, toda a legislação infraconstitucional deve ser obrigatoriamente interpretada à luz da Constituição, e não o contrário.

Lado outro, o art. 5º XLIII, da CF trata do que o constitucionalismo moderno chama de mandato (rectius: mandado) constitucional de criminalização. A Constituição de 1988 contém um significativo elenco de normas que, em princípio, não outorgam direitos, mas que, antes, determinam a criminalização de condutas e o tratamento rígido e duro para essas espécies comportamentais. Em todas essas normas é possível identificar um mandado de criminalização expresso, tendo em vista os bens e valores envolvidos. É exatamente o que acontece com o art. 5º, XLIII, da CF.

Mandatos Constitucionais de Criminalização: A Constituição de 1988 contém um significativo elenco de normas que, em princípio, não outorgam direitos, mas que, antes, determinam a criminalização de condutas (CF, art. 5º, XLI, XLII, XLIII, XLIV; art. 7º, X; art. 227, § 4º). Em todas essas normas é possível identificar um mandato de criminalização expresso, tendo em vista os bens e valores envolvidos. Os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como proibições de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). Pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbote), como também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote). Os mandatos constitucionais de criminalização, portanto, impõem ao legislador, para o seu devido cumprimento, o dever de observância do princípio da proporcionalidade como proibição de excesso e como proibição de proteção insuficiente. (STF. HC 104410, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 06/03/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-062 DIVULG 26-03-2012 PUBLIC 27-03-2012)

Em outras palavras, o legislador infraconstitucional, por força do art. 5º, XLIII, da CF, possui o dever constitucional de conferir tratamento rígido e severo aos crimes hediondos e equiparados. Por um imperativo constitucional, a lei 8072/90 deve conferir tratamento duro aos praticantes de crimes hediondos, afinal, o texto da Carta Política não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.

Como se não bastasse, deve-se invocar no caso o princípio da proporcionalidade, na vertente da proteção suficiente (ou proibição da insuficiência). Com base no princípio da proteção suficiente - ou proibição da insuficiência - não pode o legislador, em matéria penal ou processual penal, agir de forma insuficiente, deficitária, a ponto de desproteger os bens jurídicos tutelados pelo sistema penal ou enfraquecer a persecução penal.

O Estado – também na esfera penal – poderá frustrar o seu dever de proteção atuando de modo insuficiente (isto é, ficando aquém dos níveis mínimos de proteção constitucionalmente exigidos) ou mesmo deixando de atuar [...] É nesse sentido que  - como contraponto da assim designada proibição do excesso – expressiva doutrina e inclusive jurisprudência tem admitido a existência daquilo que se convencionou batizar de proibição da insuficiência (no sentido de insuficiente implementação dos deveres de proteção do Estado). (SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais e Proporcionalidade: Notas a respeito dos limites e possibilidades da aplicação das categorias da proibição do excesso e de insuficiência em matéria criminal. In Leituras Complementares de Direito Constitucional. Teoria da Constituição. Org. Marcelo Novelino. LumenJuris. p. 269)

Em matéria penal e processual penal, salta aos olhos a necessidade de retomarmos aqui à noção de que entre o extremo do abolicionismo desenfreado ou mesmo um minimalismo unilateral e cego, e um sistema de intervenção máxima na esfera penal, há que relembrar constantemente que também o Estado Democrático de Direito (e, portanto, o sistema jurídico estatal) haverá de atuar nos limites do necessário à consecução dos seus fins primordiais, dentre os quais assume destaque a proteção e promoção da pessoa humana de todos os integrantes da comunidade (SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais e Proporcionalidade: Notas a respeito dos limites e possibilidades da aplicação das categorias da proibição do excesso e de insuficiência em matéria criminal. In Leituras Complementares de Direito Constitucional. Teoria da Constituição. Org. Marcelo Novelino. LumenJuris. p. 281), aí incluindo não só o réu, mas também as vítimas e a coletividade.

A vítima possui direitos fundamentais, violados em razão da prática criminosa (vida, integridade física, dignidade sexual, patrimônio etc.), que devem, portanto, também ser tutelados pelo direito penal e processual penal. Lado outro, quando a sociedade não é a própria vítima do crime, inegavelmente sofre violação aos seus direitos em razão da prática criminosa (a ordem pública, a paz social, a segurança geral, etc.), que também devem ser defendidos pelo sistema penal e processual penal. Por isso, não se pode visualizar o sistema penal e processual penal tão somente como um aparato próprio à salvaguarda de direitos do réu. No crime, a vítima e a sociedade também têm direitos violados, que merecem tutela eficiente e adequada. No crime hediondo essa situação se potencializa.

Em outras palavras, ao se levar ao extremo o garantismo, observamos um enfraquecimento do sistema penal e processual penal, e, consequentemente, dos aparatos estatais atuantes na persecução criminal, atenuando, por conseguinte, o poder-dever estatal de punir criminosos, de desmantelar grandes organizações criminosas, de coibir graves crimes, enfim, desprotegendo os bens jurídicos tutelados e mitigando a possibilidade de transformar a realidade social em prol da paz, segurança e do bem comum, exatamente o que se espera do sistema judicial e em especial do sistema judicial-penal.

O que se propõe é uma nova perspectiva, que pode ser chamada de direito penal ou processo penal funcional-garantista. A norma penal e a processual penal não estão unicamente direcionadas às limitações e garantias atribuídas ao acusado, mas estão também estruturadas de modo que não se torne obstáculo aos objetivos de política criminal de bons resultados (MACHADO, Fábio Guedes de Paula. Culpabilidade no direito penal. Quartier Latin. p. 294-295).  Parte-se de um referencial teórico funcional-garantista, no qual os direitos fundamentais são sempre tomados em uma dupla perspectiva: sem se descurar dos direitos e garantias individuais e, a um só tempo, sem abrir mão da eficiência na proteção dos bens jurídicos pela viabilização da atuação legítima do jus puniendi (MARTELETO FILHO, Wagner. O princípio e a regra da não auto-incriminação. Os limites do nemo tenetur se detegere. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia. Disponível em http://repositorio.ufu.br/bitstream/123456789/1805/1/Princ%C3%ADpioRegraAutoincrimina%C3%A7%C3%A3o.pdf. Acesso em 24/03/2014).

Em outras palavras, a eficiência na atuação do jus puniendi pressupõe um direito penal e um processo penal garantista e, a um só tempo, funcional, no qual os direitos fundamentais do acusado são respeitados, mas, em contrapartida, os bens jurídicos tutelados são efetivamente e suficientemente protegidos.

É preciso ressaltar que não se trata de um discurso próprio do direito penal e processual penal máximo ou do inimigo. Ao contrário, pugna-se pelo direito penal e processual penal do equilíbrio.

O direito penal e o processual penal devem ser pensados na perspectiva de seus fins – proteção dos bens jurídicos e salvaguarda dos direitos do réu. Assim, a primeira tarefa daquele que esteja preocupado com o adequado funcionamento da Justiça Penal é a apropriada identificação da finalidade do direito penal e processual penal em um Estado Constitucional. Do contrário, a Justiça Penal se converterá em algo indiferente aos seus fins, em que sua finalidade ficará esfumaçada pela ausência de sua efetiva percepção.

A lei dos crimes hediondos, se bem interpretada, é um instrumento de proteção suficiente dos bens jurídicos mais importantes da nossa sociedade. Por isso, o tratamento rígido, severo e duro aos crimes hediondos possui guarida constitucional. Todavia, quando o legislador infraconstitucional, a pretexto de enrijecer o tratamento jurídico dos crimes hediondos, viola direitos constitucionais de especial proteção ao réu, merecerá referida legislação a glosa da inconstitucionalidade, como ocorreu com a proibição da liberdade provisória e da progressão de regime. De outro modo, quando o legislador infraconstitucional, sem malferir direitos fundamentais do réu, recrudesce o tratamento jurídico penal e processual penal dos crimes hediondos, considerados os mais graves da nossa sociedade, está o legislador tão somente cumprindo com o seu dever constitucional de proteger de forma eficiente os bens jurídicos mais importantes da nossa sociedade, como aconteceu com a proibição da clemência estatal e com a fixação do regime inicialmente fechado.


Autores

  • Cleber Couto

    Promotor de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Coordenador Regional das Promotorias de Justiça da Educação, Infância e Juventude. Coordenador Regional do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família. Bacharel em Direito pela Unifenas. Pós-Graduado em Direito Civil pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Doutorando em Direito Civil pela Universidad de Buenos Aires, Argentina.

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  • Túlio Leno Góes Silva

    Túlio Leno Góes Silva

    Delegado de Polícia Civil do Estado de Minas Gerais

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COUTO, Cleber; SILVA, Túlio Leno Góes Silva . O que sobrou da lei dos crimes hediondos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4437, 25 ago. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/42097. Acesso em: 10 maio 2024.