Este texto foi publicado no Jus no endereço https://jus.com.br/artigos/38748
Para ver outras publicações como esta, acesse https://jus.com.br

A jurisdição no Common Law

A jurisdição no Common Law

Publicado em . Elaborado em .

A jurisprudência como fonte principal do direito gera a estabilidade e a previsibilidade das relações jurídicas, ponto primordial para o alcance da justiça social.

Resumo: O presente trabalho pretende demonstrar a origem e toda evolução histórica alcançada pelo sistema jurídico do common law, destacando o desenvolvimento e organização da jurisdição real como base do sistema anglo-saxão, bem como a importância da jurisdição inglesa na formação de um sistema de precedentes judiciais.

Palavras-chave: Direito Processual; common law; jurisdição real; Carta Magna; Direito costumeiro; Tribunais de Westminster.

Sumário: 1. Introdução; 2. Common law: Formação histórica inicial; 3. Common Law: Desenvolvimento, influência e organização da jurisdição real; 4. Common Law: Significado e Origem Histórica; 5. Carta Magna de 1.215: Marco histórico do Common Law; 6. A jurisdição da Equity e o Common Law; 7. Jurisdição do common law e a valorização do direito processual; 8. Common law: Concepção de justiça; 9. Sistemas de jurisdição propostos por Mirjan Damaska; 10. As teorias da jurisdição no Common Law; 11. Desenvolvimento das leis escritas e a organização atual da jurisdição inglesa; 12. Conclusão; 13. Referências bibliográficas.


1. Introdução:

A jurisdição do common law é um modelo de ordenamento jurídico quase milenar, sendo desenvolvido na Inglaterra a partir do século XII, chegando-se aos dias atuais como uma forma eficiente de resolução de conflitos.

As decisões judiciais relevantes, tomadas como base para a formação de um precedente que é utilizado em casos futuros, promovendo soluções iguais para casos iguais, é um método de proporcionar a efetividade do processo e da própria jurisdição. A jurisprudência como fonte principal do direito gera a estabilidade e a previsibilidade das relações jurídicas, ponto primordial para o alcance da justiça social.


2. Common Law: Formação histórica inicial:

A Inglaterra fez parte do Império Romano do século I ao V. O processo de romanização não foi significativo, não deixando muitos vestígios no direito e nas instituições jurídicas dos períodos posteriores.

Na época das invasões de povos como os Anglos, os Saxões, os Dinamarqueses, foram desenvolvidos reinos germânicos a partir do século VI. Eram redigidas leis bárbaras, textos de direito consuetudinário anglo-saxônico, mas enquanto no Continente eram escritos em latim, na Inglaterra eram redigidos em língua germânica.

Em 1.066, Guilherme, duque da Normandia, conquista a Inglaterra, e declara querer manter os direitos anglo-saxônicos. Os seus sucessores conseguem manter e desenvolver a sua autoridade real, tanto em face aos seus vassalos de origem normanda como aos antigos chefes anglo-saxônicos.

Dessa forma, no século XII, o costume permanece a única fonte do direito na Inglaterra: costumes locais anglo-saxônicos, costumes das cidades nascentes e costumes dos mercadores.


3. Common Law: Desenvolvimento, influência e organização da jurisdição real:

A autoridade dos reis da Inglaterra, desde o século XII, sempre foi imposta sobre o território ocupado pelo reino. As jurisdições reais se desenvolveram, com prejuízo para as jurisdições locais e dos senhores, as quais perderam grande parte de suas funções nos séculos XII e XIII.

Ressalta-se que antes da ocupação normanda, as relações sociais eram reguladas pelos costumes locais, aplicados pelas County Courts, tribunais regionais mantidos pelo High Sheriff ou administrador principal. Posteriormente, houve desenvolvimento e melhoria das funções judiciais com as jurisdições senhoriais, exercidas por tribunais descentralizados do período feudal como, por exemplo, as Courts Baron, a Court Leet e as Manorial Courts.

Em seguida, já na fase da dominação normanda, no século XIII, os Tribunais Reais de Justiça (Royal Courts of Justice) ou Tribunais de Westminster, na forma do Exchequer, do Common Pleas e do King´s Bench, produziram as teorias e doutrinas que formaram os fundamentos e regras primordiais do common law, formando-se, assim, um direito comum em toda Inglaterra, em oposição aos diversos costumes locais. O aumento progressivo da atuação dos Tribunais reais proporcionou uma maior concentração de poderes em favor da monarquia, difundindo ainda o conhecimento jurídico a todo o povo inglês.

De forma original, o common law se preocupava apenas com grandes questões, como as financeiras, territoriais e criminais, firmando-se através de práticas processuais com validade geral, definidas durante séculos pelos tribunais. Assumindo posteriormente também o papel de apreciar questões menores de direito privado, foi substituindo gradativamente os costumes locais que eram julgados com base na moral e na religião.

Quanto à organização da jurisdição real, vejo que o rei julgava em seu próprio Tribunal (Curta Regis). Foram formadas secções especializadas de julgamento de determinadas matérias nos tribunais reais.

Temos o Tribunal do Tesouro (Scaccarium, Court of Exchequer), em que havia o julgamento das finanças e de litígios fiscais; o Tribunal das Queixas Comuns (Court of Common Pleas), com o julgamento dos processos entre particulares relativos à posse de terras; e finalmente o Tribunal do Banco do Rei (King´s Bench), onde os crimes contra a paz do reino eram julgados.

O Tribunal do Tesouro e o Tribunal das Queixas Comuns tinham assento em Westminster, perto de Londres, e o Tribunal do Banco do Rei era um tribunal ambulante que seguia o rei em seus deslocamentos, e somente no século XV passou a ter sede em Westminster.

O processo técnico utilizado para requerer as jurisdições reais de Westminster proporcionou a extensão da competência de tais tribunais. Qualquer pessoa interessada em pedir justiça ao rei bastaria mover-lhe um pedido. O Chanceler, um dos principais colaboradores do rei, era quem examinava o pleito e, caso entendesse estar fundamentado, enviava uma ordem, chamada de writ a um xerife (agente local do rei) ou a um senhor, para ordenar ao réu que desse satisfação ao queixoso. Se o réu não desse tal satisfação, o fato era considerado uma desobediência a uma ordem real. Entretanto, o réu poderia explicar os motivos da desobediência.

Os writs da época do século XII eram adaptados a cada caso, tornando-se fórmulas estereotipadas que o Chanceler passa sem um exame aprofundado prévio e isso era uma forma de atrair o maior número de litígios para as jurisdições reais.

Em contrapartida, os senhores feudais tentaram conter o desenvolvimento dos writs. Através da Carta Magna de 1.215, conseguem reduzir o domínio das jurisdições reais sobre as dos barões ou grandes vassalos. Já pelas Provisões de Oxford de 1.258, obtém a proibição de criação de novos tipos de writs. Finalmente, pelo Statute of Westminster II, documento capital da história do common law, houve a conciliação dos interesses do rei com os dos barões, impondo o statu quo, de modo que o Chanceler não pode mais criar novos writs, podendo apenas passar writs em casos similares.

Portanto, a lista dos writs ficou limitada à que existia em meados do século XIII, mas incluíram-se inúmeros casos novos no quadro tradicional dos writs existentes, por aplicação do princípio da semelhança admitido pelo Statute of Westminster II.

O direito na Inglaterra se desenvolveu desde o século XIII, com base na lista dos writs, ou seja, das ações judiciais sob a forma de ordens do rei. Assim, em caso de litígio, era primordial achar o writ que era aplicável ao caso concreto. O common law formou-se com base no número limitado de formas processuais e não sobre regras relativas ao fundo do direito.


4. Common Law: Significado e Origem Histórica.

O sistema do common law é um sistema jurídico também conhecido como direito jurisprudencial, direito consuetudinário (costumeiro), em que o Direito é declarado pelo juiz (judge made law), sendo o precedente judicial a principal fonte jurídica.

É um sistema que se desenvolveu por meio de decisões dos tribunais e não mediante atos legislativos ou executivos. É uma família em que o direito é criado e aperfeiçoado pelos juízes, de modo que uma decisão a ser tomada depende das decisões adotadas em casos anteriores e se refere ao direito a ser aplicado em casos futuros. Quando não há um precedente, os juízes tem o poder de criar o direito, estabelecendo um precedente. O common law utiliza de um raciocínio em torno de casos ou casuísmo.

Quanto à origem, o common law surgiu na Inglaterra por volta de 1.154, época em que o Monarca Henrique II criou os juízes visitantes do rei, cujas decisões, as quais eram revistas pelas Cortes Reais, originaram todo um arcabouço de julgamentos uniformes, chamados de conjuntos de precedentes, que vincularam todos os magistrados a partir de 1.800.

Portanto, referido sistema jurídico foi elaborado na Inglaterra, a partir do século XII, pelas decisões das jurisdições reais, sendo mantido graças à autoridade reconhecida aos precedentes judiciais. O direito costumeiro foi efetivamente criado pelos juízes dos Tribunais reais de Westminster, já que eram juízes profissionais desde o século XIV e os que se dedicavam exclusivamente ao estudo do direito.

Pode-se dizer que os chamados common lawyers são os práticos, formados como litigantes (barristers, advogados), não sendo necessário ser formado em direito por uma universidade para vir a ser solicitor (solicitador), barrister ou judge. Eram aqueles que exerciam a jurisdição do common law.

Os precedentes judiciários são aqui formados e aplicados, sendo utilizados eficazmente pela defesa no sentido de lembrar os tribunais que já decidiram um caso semelhante anteriormente. Desde o ano de 1.290, as principais decisões dos Tribunais de Westminster eram registradas e conservadas nos Year Books. A partir do século XVI, as compilações impressas de jurisprudência, os chamados Law Reports, constituem a documentação mais importante dos advogados e juízes, e ainda é assim no século XX. Uma boa biblioteca de common lawyer compreende mais de 2.000 volumes de Law Reports.

A autoridade do precedente judicial sempre foi uma realidade no common law que é um sistema jurisprudencial, havendo a obrigação de o juiz decidir segundo as regras estabelecidas pelos precedentes, o que se designa por princípio de stare decisis.


5. Carta Magna de 1.215: Marco histórico do Common Law.

5.1. Contexto histórico da assinatura:

Na época de criação da Carta Magna, ocorria a transição da alta idade média para a baixa idade média, em que o modo de produção feudal começa a demonstrar seus primeiros sinais de desgaste.

Foi um período em que o rei Ricardo Coração de Leão, morto na 3ª cruzada, teve sua coroa sucedida por João Sem Terra, que ficou assim conhecido devido ao fato de não ter herdado nenhuma propriedade após a morte de seu pai, Henrique II.

João Sem Terra foi rei da Inglaterra de 1.199 a 1.216, tendo um reinado polêmico, uma vez que impôs uma política tributária bastante onerosa, cobrando dos súditos impostos cada vez maiores. Tal política autoritária teve o objetivo de cobrir gastos ocorridos com a guerra contra a França no ano de 1.204, em que João Sem Terra saiu vencido e perdeu as terras para a coroa francesa. João Sem Terra foi derrotado e perdeu suas terras do norte para a França. Assim, a Normandia passou para as mãos francesas.

João Sem Terra também não tinha uma relação boa com o alto clero (Igreja Católica), sendo até excomungado pelo Papa Inocêncio II, considerado o mais poderoso da história. Enfim, João Sem Terra se submeteu à hegemonia papal somente em 1.213.

No ano de 1.214, João Sem Terra entra em uma nova guerra contra a França para tentar reconquistar as terras perdidas. Porém, foi novamente vencido e seu reinado restou enfraquecido, exigindo ainda mais impostos.

Por todo o fracasso do rei, os barões ingleses se revoltaram, e em 10 de junho de 1.215 toma a cidade de Londres com o apoio do clero, fazendo com que João Sem Terra assinasse um documento que determinava a limitação dos poderes reais, com a garantia de que os impostos poderiam ser elevados e as leis criadas somente com a aprovação de um conselho formado por nobres. Este documento era a Carta Magna, que recebeu o selo real no dia 15 de junho de 1.215. Em troca da assinatura, os barões confirmaram sua fidelidade ao rei João Sem Terra.

Posteriormente, quando os barões saíram de Londres, João Sem Terra impugnou a Carta, gerando uma grande guerra civil na Inglaterra. Após a sua morte em 1.216, seu filho e sucessor Henrique III, validou a Carta, retirando apenas algumas cláusulas. Posteriormente, Henrique III reduziu a carta para 37 artigos, de modo que a Carta possuía 63 em seu texto original.

Com a morte de Henrique III, a Carta Magna já havia se incorporado ao direito inglês, tornando-se uma norma sólida. O filho de Henrique III a confirmou em 1.297, ratificando a versão curta em 1.225.

A carta de João Sem Terra foi, então, confirmada por diversos soberanos, de modo que alguns capítulos foram acrescentados e outros modificados ou suprimidos.

Cada monarca, até o século XV, prometera o respeito pelo texto, somente sendo ignorado pelos reis da dinastia Tudors, do ano de 1.485 a 1.603, que transformaram a Inglaterra num Estado nacional pelo rompimento com os domínios franceses, pelo enfraquecimento do feudalismo e pela aspiração da pequena nobreza e da burguesia por um poder centralizado.

5.2. Conteúdo de normas basilares da Carta Magna:

De início, devemos ressaltar que o documento britânico representou um dos princípios essenciais de institutos da democracia moderna, como o devido processo legal, o habeas-corpus, tribunal do júri e a vedação do confisco na tributação, que limitaram os poderes do monarca.

Conforme afirma Pontes de Miranda, o pacto de 1.215 não foi uma lei de reforma, já que iniciava um período novo, sendo resultado de uma conquista libertária, consistindo, ainda, na confirmação do velho direito saxônico.

Podemos enumerar as principais normas contidas na Carta Magna:

  1. Liberdade religiosa: há a garantia de liberdade da igreja da Inglaterra;
  2. Liberdade dos homens livres do reino;
  3. Limitação para a imposição e ampliação de taxas, impostos e tributos pelo rei;
  4. Existência de privilégios para a classe burguesa;
  5. Devido processo legal: é a mais importante norma jurídica extraída da Carta a partir da disposição de que os homens livres devem ser julgados pelos seus pares e de acordo com a lei da terra. Há também a determinação de que nenhum homem livre seria preso ou punido sem antes a questão ser avaliada pelo sistema jurídico. Posteriormente, a expressão “homem livre” foi substituída por “ninguém”. Do costume feudal de se proceder conforme a lei da terra, chega-se ao devido processo legal, de modo que cada homem tem o direito de ser julgado de acordo com as normas previamente estabelecidas e conhecidas, restando assegurada a defesa contra acusações aleatórias ou arbitrárias;
  6. A garantia da criação do júri: ao prever o julgamento dos cidadãos pelos seus pares em perfeita harmonia com a lei do país. Tal garantia fortaleceu a instituição já existente à época, permitindo um alcance maior até o século XX, tanto no civil como no penal, surgindo esta ampla garantia do processo diante do júri, e paulatinamente ampliada a todos os homens;
  7. Garantia do livre acesso à justiça: a Carta também garante o livre acesso à justiça, dispondo o direito de todos a uma justiça plena, livre e rápida;
  8. O direito à imparcialidade: Ao mencionar que somente seriam nomeados juízes, oficiais de justiça, xerifes ou bailios os que conheçam a lei do reino e se disponham a observá-la fielmente;
  9. O direito à obtenção de um mandado de investigação: o sistema dos writs é anterior e data do século XII. O writ é obrigatório e com ausência de custos;
  10. Paralelismo entre delitos e penas: as penalidades devem ser proporcionais aos crimes cometidos;
  11. Vedação ao confisco: os bens dos ingleses estavam protegidos contra apreensões e requisições ilegais por parte dos agentes do rei;
  12. Estabelecimento de regras para a prestação de serviços: previsão de regras nos contratos de vassalagem, no sentido de que as obrigações são impostas conforme previsão contratual;
  13. Declaração de intenções: reconhecimento formal do rei referente à limitação dos atos do governo em respeito aos direitos invioláveis e pertencentes a toda à comunidade. Assim, não há mais poder absoluto do rei.

5.3. Influência da Carta Magna no desenvolvimento do direito inglês:

O Carta de 1.215 foi um marco histórico do sistema do common law, uma vez que representou um novo começo do estado das coisas para a Inglaterra, para o estados por ela colonizados e para os direitos fundamentais. É um documento fundamental da história inglesa, influindo até no destino de outros países.

A Carta permitiu a viabilidade do direito compatível com épocas diferentes, já que seu significado foi o mesmo para os barões de 1.215 e para os colonos americanos do século XVII.

A Carta serviu como base para toda norma constitucional da Inglaterra, sendo o marco das liberdades, estando acima da vontade do soberano. Foi o primeiro documento escrito que disciplinava a limitação dos poderes do governo. Antes dela apenas vigorava o absolutismo do monarca, como os imperadores romanos e demais reis da antiguidade ou a limitação imposta por convenções da época feudal.

Portanto, o texto de 1.215 serviu como ponto referencial para a sociedade, sendo exemplo para os Estados que pretendiam se desenvolver com respeito aos direitos do indivíduo.

Dentre as disposições da carta, temos aquelas que possuem vigência até hoje, influenciando, definitivamente, na construção e no desenvolvimento do direito inglês, como é o caso da determinação de privilégios da Igreja; aquelas que confirmam os benefícios da cidade de Londres; as que consideram o direito do indivíduo de ser julgado por seus pares; e aquelas que limitam os atos do governo.


6. A jurisdição da Equity e o Common Law:

De início, destaca-se que o sistema do common law tornou-se mais técnico nos séculos XIV e XV. Restou limitado ao quadro restrito e rígido do processo dos writs e pela rotina dos juízes, acarretando a incapacidade de dar solução satisfatória a numerosos litígios. Os juízes do common law, apesar de nomeados pelo rei, tornaram-se relativamente independentes.

A ideia de novo recurso ao rei (e ao seu Chanceler), fonte de toda a justiça, fez nascer no século XV uma nova jurisdição e um novo processo: o Chanceler decidia com base na equidade sem levar em conta as regras do processo. O Chanceler muitas vezes julgava segundo princípios extraídos do direito romano. Os reis da Inglaterra do século XVI ampliaram as jurisdições do equity que eram mais favoráveis ao desenvolvimento de seu poder no sentido do absolutismo, em detrimento às jurisdições de common law, consideradas arcaicas e obsoletas.

Portanto, paralelamente aos Tribunais de Westminster, funcionava o Tribunal de Chancelaria como instância recursal, exercendo uma jurisdição de equidade, com prejuízo às normas da common law. O grande formalismo fazia com que as jurisdições reais possuíssem uma competência restrita, impondo, às vezes, uma solução injusta ao caso concreto. Tal injustiça acionou a autoridade real, representada pelo Chanceler, a quem o vencido ou aqueles que não eram admitidos a litigar perante os tribunais reais interpunham recurso. Era formado então o sistema de recurso direto ao rei, fonte de toda a justiça e generosidade.

Por tudo, o sistema judicial de equity representou um risco à utilidade prática das regras estáticas do common law aplicadas pelos tribunais ordinários. O recurso poderia se institucionalizar, tornando-se uma forma vulgar de revisar as decisões dos tribunais. Assim, ocorreu uma objetivação da jurisdição do equity, no sentido de que as decisões do Chanceler, tomadas com base na equidade, tornaram-se sistemáticas, aplicando-se como forma de correção aos princípios jurídicos do common law aplicados pelos tribunais reais. Isso significou um enfraquecimento do direito inglês ante a influência da família de direitos da Europa continental. A substituição por esta nova versão inspirada no direito romano-germânico tornou-se real.

No confronto entre o Rei e o parlamento no século XVII, os common lawyers (tribunais reais) contaram com o apoio do parlamento na resistência ao absolutismo, conseguindo conter o avanço da jurisdição da equidade, aprovando uma espécie de entendimento tácito, colocando as atribuições de ambos. A partir de 1621, a Câmara de Lordes passou a controlar as decisões do Tribunal de Chancelaria e, em 1641, houve a queda da Câmara Estrelada (órgão que representava a prerrogativa real utilizada na dinastia Tudor, com destaque em matéria criminal).

Portanto, de fato permitiu-se um compromisso entre os dois sistemas de jurisdição que tornou viável a existência de um sistema dualista de direito: common law e equity, dois tipos de jurisdições, de processos e de regras de fundo. Os chanceleres passaram a utilizar os precedentes em seus julgamentos e os tribunais do common law (tribunais de Westminster) passaram a aceitar as intervenções do equity na forma da jurisdição direta do rei ou chanceler. As regras do common law de base consuetudinária, produto de construção e consolidação da jurisprudência dos tribunais reais do século XIII, foram corrigidas e complementadas pela aplicação de doutrinas de equity, produto da jurisdição pessoal do rei ou chanceler nos séculos XV e XVI.

A fusão dos dois sistemas de jurisdições ocorreu em 1873 e 1875 (Judicature Acts) por uma reforma da organização judiciária, e as regras de equity foram integradas ao common law.


7. Jurisdição do common law e a valorização do direito processual:

Os juristas do sistema anglo-saxônico desconhecem conceitos de norma imperativa e supletiva, já que para eles todo o direito é imperativo. Enquanto os sistemas romanistas foram construídos seguindo a racionalidade e a lógica, com as obras das universidades e do legislador, o direito inglês foi ordenado sem preocupação lógica, dando uma primordial valorização ao direito processual, já que o direito não se originou de princípios e teorias consagradas pelas universidades, mas da prática processualística, dando espaço a um processo formalista, com minuciosas regras de direito probatório, marcando o direito inglês por sua riqueza e tecnicismo.

Dessa forma, não representando o common law um conjunto de normas de direito material, mas de regras processuais rigorosas, é consagrada a jurisprudência como principal fonte do direito inglês. Era no âmbito dos tribunais reais que o direito era construído, seja pela aplicação de antigas fórmulas consuetudinárias, seja pelo julgamento de equidade. E assim é que se formou e se consolidou a teoria do precedente judicial, como resultado dos julgamentos pelos tribunais reais no sistema anglo-saxônico.


8. Common law: Concepção de justiça.

Considerando os dois paradigmas de jurisdição (do sistema do civil law e do common law), pode-se extrair duas concepções a respeito da organização da justiça civil e do processo. São concepções diferentes e que são propostas pelo doutrinador Mirjan Damaska, através de sua obra “The faces of justice and state authority”.

O referido autor impôs grandes observações sobre os dois grandes sistemas de ordenamentos jurídicos (sistema do civil law e do common law) existentes nos diversos países do acidente. Defende que não há mais a existência de sistemas puros de processo jurisdicional, ocorrendo, na realidade, sistemas híbridos com predominâncias para determinados modelos.

No sistema do civil law, o papel da justiça seria o de atuação do direito objetivo, o da aplicação da vontade concreta da lei aos casos concretos submetidos à apreciação. A administração da justiça adota o modelo hierárquico centralizador, de modo que os juízes são considerados a “boca da lei”, expressão usada por Montesquieu, justificando que os poderes dos juízes decorrem da lei e que devem sempre estar subordinados a ela.

Portanto, a jurisdição é exercida pelos juízes profissionais, escolhidos por motivos técnicos e que são vitalícios, desempenhando a atividade em caráter permanente. Há especialização da jurisdição. O critério de decisão é um critério de legalidade e as decisões são atos vinculados, com requisitos na lei, havendo restrição ao uso da equidade. No tocante aos recursos, há um afastamento de seu direcionamento para o próprio juiz que julgou a causa.

Damaska chama referido sistema de modelo hierárquico porque há pouca liberdade do juiz de primeiro grau, já que sua decisão é totalmente revista.

Já no sistema do common law, a função da justiça seria a de pacificação dos litigantes e da sociedade, de modo que a paz social é um objetivo direto e imediato. Não importa que a paz social seja imposta pela lei ou por outro critério, levando a crer que o primordial é a harmonização. Tal sistema prioriza a coesão e a solidariedade entre seus membros. Aqui a justiça é paritária, da comunidade. Os juízes são leigos ou profissionais de investidura política. Não há tanta especialização da jurisdição. Quanto aos recursos, há grande pedido de revisão para o próprio juiz ou tribunal que proferiu o julgamento.

Por tudo, percebe-se que o juiz de primeiro grau no common law tem muito mais poder que os tribunais, pois estes exercem uma supervisão distante e extraordinária sobre a justiça ministrada pelos juízes de primeiro grau que é uma justiça mais próxima dos cidadãos, uma justiça da comunidade.


9. Sistemas de jurisdição propostos por Mirjan Damaska:

O primeiro previsto pelo referido jurista seria o modelo adversarial (conflict-solving process), segundo o qual o processo é voltado para a solução de conflitos individuais, com um juiz imparcial passivo, não interferindo na produção de provas. Tem a forma de uma disputa, com um compromisso dos dois adversários perante o julgador. Os dois adversários tem todo o controle da ação processual. Destacam-se os processos orais, em que as decisões dos juízes de primeiro grau seriam mais eficazes, não existindo previsão de inúmeras instâncias recursais. Tal modelo se aproxima mais do sistema do common law, apesar de não ser de uma forma pura.

O segundo seria o modelo inquisitorial (policy-implementing process), no sentido de que há a interferência da política no direito, havendo um Estado intervencionista, sendo o responsável pela organização da sociedade e pela efetivação dos direitos e distribuição da justiça, efetivando programas de políticas públicas sociais, em busca de uma justiça social. Há a existência de um juiz ativo, comandando o processo, interferindo na produção de provas, devendo o julgamento se aproximar das políticas do Estado. Neste contexto, destacam-se os processos escritos e com predominância da prova escrita. Tal modelo proporciona maior espaço para discussão da eficácia da decisão proferida pelo juiz de primeiro grau, com previsão de inúmeras instancias recursais. Tal modelo se aproxima mais do sistema do civil law, podendo também conter alguns traços de influência do sistema anglo-saxônico.


10. As teorias da jurisdição no Common Law:

Havia duas teorias da jurisdição instituídas na Inglaterra.

A primeira seria a teoria declaratória da jurisdição, proposta por Willian Blackstone. Tal teoria defendia que o juiz apenas declarava o direito. Partia do pressuposto de que como o common law surgia dos costumes gerais, sendo que o juiz não cria o common law e sim o declara. E quanto à aplicação dos precedentes, o juiz estaria limitado a declarar o direito fixado nos precedentes. A autoridade do magistrado não se referia à criação de um novo direito e sim a simples manutenção e declaração de um direito já conhecido.

A segunda tese seria a teoria constitutiva da jurisdição, defendida por Bentham e Austin, no sentido de que o common law existia pelo fato de ter sido estabelecido por juízes dotados do law-making authority. O direito seria produto da vontade dos magistrados, não sendo simplesmente descoberto, mas sim criado. O precedente significaria a criação do direito.

Luiz Guilherme Marinoni entende que, para se compreender melhor sobre a disputa entre as duas teorias, resta concentrar atenção à autoridade da decisão judicial. A questão a ser discutida é se o juiz tem autoridade para criar ou apenas para declarar o direito. Na autoridade da decisão judicial, pode se encontrar a solução para a polêmica.

Assim, entraria nessa seara a questão do respeito obrigatório aos precedentes, ou seja, o stare decisis. Discussão quanto à possibilidade ou não de a natureza declaratória ou constitutiva da decisão judicial respeitar o precedente como força obrigatória e a possibilidade de sua revogação.

Há uma crítica à teoria declaratória de ser ela imprópria ao pensar na revogação do precedente, uma vez que o juiz, ao revogar o precedente, estaria criando o direito. Se a primeira corte cometeu um erro, a segunda terá que legislar e não apenas declarar o direito contido no precedente. Juízes não poderiam sustentar a teoria declaratória para se esquivarem da responsabilidade de revogação dos precedentes e de criação do direito, livrando-se do encargo de proferirem decisões retroativas que poderiam ser consideradas antidemocráticas. (doutrina de MAC CORMICK).

Outra crítica à teoria declaratória seria no sentido de que o juiz é obrigado a respeitar o direito e não a declaração judicial do que é o direito. Se o precedente não é direito, mas sim a declaração sobre o direito, não teria possibilidade de respeito obrigatório ao precedente. Tornar-se-ia mais fácil supor que o magistrado tem o poder para criar o direito.

Por outro lado, haveria crítica à teoria constitutiva no tocante ao stare decisis, considerando que ela não seria capaz de obrigar a própria corte que criou o precedente. A ideia de que o magistrado pode criar o direito apenas justificaria o efeito vertical do stare decisis, porque o precedente apenas obrigaria os juízes e tribunais inferiores. Portanto, o juiz dotado de law-making authority não justificaria o stare decisis.

Por fim, na verdade, nem a teoria constitutiva, nem a declaratória, são capazes de justificar o stare decisis em seu estado absoluto.


11. Desenvolvimento das leis escritas e a organização atual da jurisdição inglesa:

A legislação ocupava a segunda posição entre as fontes do direito inglês, após a jurisprudência. No entanto, no século XIX e XX, ocorreu um desenvolvimento significativo do processo legislativo. Pela via legislativa (statutes de 1832-1833 e de 1873-1875) foram introduzidas profundas reformas na organização dos tribunais. Através destes statutes foi inserido um direito social novo e um direito econômico, sobretudo após o ano de 1945.

Hoje, o direito inglês está fortemente influenciado por leis escritas. Há normas codificadas, como, por exemplo, o novo código de processo civil inglês – CPR (Civil Procedural Rules), sendo a mais ampla fonte de regras processuais existentes. Desde o dia 26 de abril de 1.999, passou a existir apenas um único aglomerado de regras processuais aplicáveis à High Court, às county courts e à Court of Appeal. Portanto, o CPR é um exemplo forte do desenvolvimento do direito positivo escrito no sistema jurídico inglês.

Quanto à organização do poder judiciário inglês atual, temos os tribunais civis de primeira instância (County Courts e a High Courts), de modo que as causas menores são direcionadas à County Courts, localizadas em várias cidades e vilarejos. Já as ações de maiores proporções são propostas perante a High Court, que se localiza nas principais províncias e também na cidade de Londres.

Não há o direito de recorrer de uma decisão de primeiro grau de jurisdição, existindo apenas uma mera permissão de recorrer obtida na primeira instância recursal ou no juízo ad quem. A Courte of Appeal é um tribunal de apelação que julga os recursos dirigidos às decisões do High Court. A House of Lords, ápice do judiciário inglês, julgam recursos finais interpostos por ano, referentes a poucas ações.

A Câmara dos Lordes, caracterizando-se como a instância extraordinária e suprema da jurisdição do reino unido, tendo a função de examinar os recursos direcionados às decisões do Tribunal de Apelação, é a responsável pela criação dos precedentes judiciais que vinculam todas as instâncias inferiores, inclusive a própria corte suprema.

Não há ainda uma constituição escrita. Os britânicos chamam de Constituição o conjunto de princípios jurisprudenciais de conteúdo constitucional, os quais garantem as liberdades fundamentais e que limitam os poderes da autoridade estatal.


12. Conclusão:

O sistema jurisdicional inglês destaca-se como um modelo de direito jurisprudencial que foi resultado de uma evolução de séculos, revelando que a autoridade do precedente judicial é uma forma de promoção da estabilidade jurídica e efetividade do processo jurisdicional. Como hoje inexistem sistemas puros de direito, como bem destacado por Mijan Damaska, o modelo do common law deve servir como um poderoso paradigma para o desenvolvimento de todo o ordenamento jurídico-processual brasileiro, em prol da efetividade e da paz social.


13. Referências bibliográficas:

ANDREWS, Neil. The modern civil process – Judicial and Alternative Forms of Dispute Resolution in England. Ed. Mohr Siebeck, Tubingen, 2008.

COSTA, Nelson Nery. Curso de direito constitucional. 3ª. ed., São Paulo: Malheiros, 1998.

DAMASKA, Mirjan R. The faces of Justice and State Authority. Yale University Press, 1986.

GERHARDT, Michael J. The Power of precedent. New York: Oxford University Press, 2008.

GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. 3ª.ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil – Teoria Geral do Processo, v.1,3,ed. São Paulo:Ed. RT, 2008, Parte I, item 2.5.

MIRANDA, Pontes. História e Prática do habeas-corpus, 3ª.ed., Rio de Janeiro: José Konfino, 1955.


Autor


Informações sobre o texto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VERSIANI, Nelmo. A jurisdição no Common Law . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4325, 5 maio 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/38748. Acesso em: 15 maio 2024.