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Pelo direito de mostrar quem se é.

Os desafios jurídicos para adequação da identidade de transexuais

Pelo direito de mostrar quem se é. Os desafios jurídicos para adequação da identidade de transexuais

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O presente trabalho tem como objetivo analisar as questões suscitadas em relação à cirurgia de redesignação de sexo, em especial os reflexos trazidos pela realização dessa cirurgia no âmbito jurídico.

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar as questões suscitadas em relação à cirurgia de redesignação de sexo, em especial os reflexos trazidos pela realização dessa cirurgia no âmbito jurídico. Para tanto, fez-se um estudo da legislação do Brasil, de doutrinas existentes que versam sobre o assunto, onde a bioética, em especial seus princípios, juntamente com os princípios constitucionais que oferecem base e suporte ao transexual não apenas quanto à feitura da cirurgia de redesignação de sexo, mas também quanto à adequação de sua documentação na vida civil. Entende-se como transexual aqueles que vivenciam um conflito permanente entre seu sexo físico e psíquico sendo a cirurgia de redesignação de sexo o único meio de tratamento efetivo. A cirurgia é, enfim, a resolução do conflito que acomete o transexual, reparando-lhe o sofrimento, permitindo-lhe alcançar o equilíbrio entre seu biológico e seu psicológico, essencial para a preservação da vida, da saúde, da integridade física e psíquica e do bem-estar pessoal. Atualmente, é reconhecido o direito à alteração do prenome e do sexo em seu registro civil. Entretanto, por não tratar-se de posição unânime, serão analisadas as principais correntes jurisprudenciais, bem como os diversos projetos de lei – favoráveis e desfavoráveis aos transexuais – que visam à alteração da Lei de Registros Públicos. Demonstra-se ao longo do trabalho que existe uma falta de previsão legal para disciplinar a matéria, que serve de pretexto para o exercício de posturas, por vezes, conservadoras e preconceituosas. Ultrapassados esses pontos, tem-se que a única maneira de promover a inclusão social do transexual será com a efetiva alteração de seu registro civil, em complemento à realização da cirurgia de redesignação de sexo, preservando, assim, a dignidade humana e os direitos de personalidade inerente aos cidadãos.

Palavras-chave: Transexualidade. Redesignação de Sexo. Bioética. Princípios Constitucionais. Sexualidade.

Sumário: Introdução. 1. Bioética. 1.1. Princípios bioéticos. 1.1.1. Princípio da beneficência. 1.1.2. Princípio da não-maleficência. 1.1.3. Princípio da autonomia. 1.1.4. Princípio da justiça. 1.2. Bioética e direito. 2. Sexualidade humana. 2.1.. Sexo. 2.1.1. Sexo biológico. 2.1.1.1. Sexo genético. 2.1.1.2. Sexo gonádico. 2.1.1.3. Sexo somático. 2.1.2. Sexo neural. 2.1.3. Sexo jurídico. 2.1.4. Sexo social. 2.2. Estados físicos e comportamentais. 2.2.1. Orientação sexual. 2.2.1.1. Bissexualidade. 2.2.1.2. Homossexualidade. 2.2.1.3. Heterossexualidade. 2.2.1.4. Assexualidade. 2.2.2. Identidade. Gênero. 2.2.2.1. Travestismo. 2.2.2.2. Intersexualidade. 2.2.2.3. Transexualidade. 2.3. A cirurgia de redesignação de sexo. 3. Reconhecimento do transexual no ordenamento jurídico. 3.1. O registro civil – breve introdução. 3.2. A possibilidade de alteração do nome. 3.2.1. Alteração. Prenome. Transexuais. 3.3. Direitos da personalidade e a Lei de Registros Públicos. 3.3.1. Da dignidade da pessoa humana. 3.3.2. Direito a identidade. 3.3.3. Direito à integridade física e psíquica. 3.3.4. Direito à liberdade. 3.3.5. Direito à honra. 3.4. Projetos de lei alterando a Lei de Registros Públicos. Conclusão. Referências bibliográficas.


INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem o intuito de demonstrar as dificuldades e discrepâncias jurídico-sociais com as quais os transexuais têm de lidar na busca de seus direitos fundamentais, os quais são diariamente violados.

Jean Jacques Rousseau foi um importante intelectual do século XVIII que acreditava que o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe.

Ainda, afirmava que o homem nasce livre, mas se encontraria acorrentado por fatores como sua própria vaidade, tornando-se escravo de suas necessidades e daqueles que o rodeiam.

Em sua obra “Do Contrato Social”, Rousseau defendeu ser possível preservar a liberdade natural do homem e garantir, ao mesmo tempo, a segurança e o bem-estar da vida em sociedade através de um contrato social, por meio do qual prevaleceria o Estado soberano, que asseguraria a vontade geral de todos, devendo esta ser, necessariamente, justa.

Portanto, para Rousseau o que cria o Estado é a vontade geral e o governo deve buscar uma justiça comum à sociedade, trazendo o apelo à democracia social e preservando a liberdade individual de cada pessoa.

Transportando o pensamento de Rousseau para a sociedade atual, nota-se claramente que esta sociedade justa, que preserva a liberdade de cada indivíduo ainda está longe de se concretizar.

Em especial, podemos citar a inexistência dessa liberdade pregada por Rousseau quando se trata de indivíduos transexuais, que lutam diariamente por direitos fundamentais que deveriam ser inerentes a qualquer ser humano, mas lhe são negados injustificadamente.

A transexualidade, assim, está inserida em uma série de desvios sexuais, sendo uma realidade que não pode mais ser ignorada ou marginalizada pelo estado e pela própria sociedade.

Esses “desvios sexuais” vieram à tona no Século XXI, envolvidos por frequentes indagações jurídicas, em meio a discussões sobre moralidade pública, tolerância e aceitação da sociedade.

O fenômeno da transexualidade teve sua primeira aparição em 1952, quando um médico americano chamado Christian Hamburger fez uma intervenção em um ex-soldado do exército chamado George Jorgensen, transformando sua aparência sexual através de tratamento hormonal e cirurgia.

O paciente, antes com sexo biológico e social masculino, tornou-se Christine Jorgensen, ganhando, inclusive, o título de “Woman of the year” 2 (dois) anos após a feitura da intervenção cirúrgica.

Um ano depois, em 1953, surgiu a expressão “transexual”, utilizada pelo endocrinologista americano Harry Benjamin para designar indivíduos que, apesar de biologicamente normais, sentiam-se desconfortáveis com seu sexo biológico e queriam fortemente a troca do sexo.

A angustia do transexual não se resume somente ao sofrimento causado pela incompatibilidade entre sua identidade sexual biológica e psíquica, mas também no fato de que, quando consegue alcançar a difícil conciliação entre seu sexo físico e seu sexo psicológico, se vê incapaz de refletir seu gênero na documentação civil, mantendo-se em posição de humilhação perante a sociedade.

O Pacto de São José da Costa Rica - conhecido como Convenção Interamericana de Direitos Humanos - estabelece que os Estados devem fazer cumprir os direitos de personalidade.

Os direitos de personalidade são subespécie dos direitos fundamentais, sendo constituídos por direitos aplicáveis a, não somente os cidadãos de forma geral, mas a cada cidadão individualmente, independente de suas características e necessidades.

Dentre esses direitos de personalidade, citamos o direito ao nome, previsto nos artigos 16 e 17 do Código Civil, que trata da identificação social da pessoa, com a finalidade de individualizá-la, assegurando sua própria satisfação psicológica e sua estabilidade jurídica, além dos direitos de personalidade, como direito à integridade – física e psíquica -, direito à liberdade e à dignidade da pessoa humana.

Portanto, faz-se imprescindível que o direito garanta às pessoas uma vida digna, com garantias mínimas.

Por conseguinte, podemos aduzir que, no caso de transexuais, de nada adiantará o tratamento para adequação sexual, com a feitura de cirurgia de redesignação sexual, se posteriormente o indivíduo não tiver resguardado seus direitos fundamentais, com a preservação de sua liberdade, integridade e, principalmente, seu direito a adequação de nome e gênero, evitando a contumaz humilhação perante a sociedade.

A personalidade deve ser protegida e o nome deve ser um dos direitos de personalidade a obter proteção.

Não se deve esquecer que o nome civil deve existir para identificar a pessoa, nunca a expondo ao escárnio.

Nesse diapasão, temos que a dignidade da pessoa humana é o mais imperioso valor do direito brasileiro por estar intimamente atrelado ao conceito de personalidade jurídica, sendo elemento norteador para elevação do ser humano como bem principal a ser tutelado pelo ordenamento jurídico.

Faz-se imprescindível que o direito garanta às pessoas uma vida digna, com garantias mínimas para que gozem de salutar existência no meio social.

Fica perceptível, portanto, a influência da dignidade da pessoa humana aos direitos de personalidade, sendo estes entendidos como os que têm por objeto os atributos físicos, psíquicos e morais da pessoa projetada na sociedade e em si mesma.

Podemos aduzir, então, que, nos casos de transexuais, de nada adiantará o tratamento para adequação sexual se, posteriormente, o indivíduo não tiver seu nome e sexo alterados, carregando por toda a vida acintosa humilhação e sofrimento.

Entretanto, o que enxerga-se atualmente é que a falta de previsão legal para disciplinar a matéria serve de pretexto para o exercício de posturas, por vezes, conservadoras e preconceituosas.

Em muitos casos, a jurisprudência tem se mostrado progressista ao reconhecer ao transexual o direito a uma nova identidade sexual, mas ainda não consegue delimitar o alcance social dessa nova identidade.

Por fim, esclarece-se que esse trabalho tem como finalidade expor as os estudos existentes acerca do reconhecimento ao transexual de nova identidade sexual, principalmente no que consta ao Registro Civil.

Visa-se um esclarecimento acerca do tema, com intuito de formular contribuições que facilitem a obtenção do caminho mais favorável a cada caso, preservando o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos de personalidade.

Eu proponho o termo Bioética como forma de enfatizar os dois componentes mais importantes para se atingir uma nova sabedoria, que é tão desesperadamente necessária: conhecimento biológico e valores humanos.


1. BIOÉTICA

Primeiramente, importante frisar que não há um conceito unívoco de Bioética.

Portanto, faz-se necessário definir o conceito básico do termo.

A palavra Bioética, se separada, é composta dos vocábulos gregos bios, que designa o desenvolvimento observado nas ciências da vida, como a ecologia, a biologia e a medicina; e ethos, que busca trazer à consideração os valores implicados nos conflitos da vida.

Portanto, literalmente, o termo significa “ética (ethos) da vida (bio)”.

Na introdução à segunda edição da Enciclopédia de Bioética (Encyclopedia of Bioethics), consta o termo definido como:

O estudo sistemático das dimensões morais, incluindo a visão, a decisão, a conduta e as normas, das ciências da vida e da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto interdisciplinar.

Destarte, a definição de Bioética abarca um procedimento de confrontação entre os fatos biológicos e os valores humanos na tomada de decisões envolvendo os problemas práticos em diferentes áreas da vida.

Ainda, pode-se afirmar que a Bioética possui diversas correntes teóricas que fornecem material suficiente para ponderação sobre o tema:

O corpo teórico da Bioética se constitui por uma gama de vertentes e correntes teóricas que fornecem seu próprio arcabouço para a reflexão e prescrição.

Essas vertentes fundamentam-se em teorias éticas diversas e mesmo quando há a adoção de uma mesma teoria ética como alicerce de suas construções teóricas as correntes podem variar na forma de emprega-la aos casos concretos.

A Bioética Teórica não se apresenta de forma uniforme, é o conjunto de proposições teóricas, ancoradas em diferentes campos do saber, como o filosófico, jurídico, teológico ou sociológico, que buscam fornecer substrato para a reflexão e prescrição bioética.

A Bioética é um campo de estudo ainda muito recente.

Em 1927, Paul Max Fritz Jahr, teólogo alemão, empregou pela primeira vez o termo Bioética, em seu artigo intitulado “Bioética: uma revisão do relacionamento ético dos humanos em relação aos animais e plantas”, publicado na revista Kosmos. O teólogo afirmava que a Bioética é o reconhecimento de obrigações éticas em relação a todos os seres vivos, daí o título de seu artigo que traz, ao final, a seguinte afirmação: “respeita todo ser vivo essencialmente como um fim em si mesmo e trata-o, se possível, como tal”.

Anteriormente, a criação do termo Bioética era atribuída ao professor e oncologista estadunidense Van Rensselaer Potter, quando da publicação do artigo intitulado Bioetchics, the Science of survival. Potter caracterizou a Bioética em três estágios, sendo o primeiro o da Bioética Ponte, o segundo como o da Bioética Global e o terceiro – e atual, de acordo com o próprio professor – como o da Bioética Profunda. Na primeira fase, Potter qualificou a Bioética como Ponte no sentido de estabelecer uma interconexão entre as ciências e as humanidades que garantiria a possibilidade do futuro. Já na década de 80, o professor denominou a Bioética como Global, enfatizando as características interdisciplinares e abrangentes da Bioética, com o objetivo de abarcar não apenas as reflexões no que concerne às questões de medicina e saúde, mas também os novos desafios ambientais. Já em 1998, utilizando-se da influência da “Ecologia Profunda” de Arne Dekke Eide Næss, Potter definiu o terceiro estágio da Bioética como sendo uma Bioética Profunda, sendo está a “nova ciência ética”, combinando humildade, responsabilidade e uma competência interdisciplinar, intercultural, que potencializa o senso de humanidade.

No pensamento de Goldim:

A Bioética, dessa forma, nasceu provocando a inclusão das plantas e dos animais na reflexão ética, já realizada para os seres humanos.

Posteriormente, foi proposta a inclusão do solo e dos diferentes elementos da natureza, ampliando ainda mais a discussão.

A visão integradora do ser humano com a natureza como um todo, em uma abordagem ecológica, foi a perspectiva mais recente.

Assim, a Bioética não pode ser abordada de forma restrita ou simplificada.

É importante comentar cada um dos componentes da definição de Bioética profunda de Potter – ética, humildade, responsabilidade, competência interdisciplinar, competência intercultural e senso de humanidade – para melhor entender a necessidade de uma aproximação da Bioética com a teoria da complexidade.

Para melhor entendimento do que seria a Bioética, podemos citar três autores contemporâneos, quais sejam

  • (i) o filósofo mexicano Adolfo Sánchez Vázquez, que acredita que as doutrinas éticas fundamentais nascem e se desenvolvem em diferentes épocas e sociedades como respostas aos problemas básicos apresentados pelas relações entre homens, e, em particular, pelo seu comportamento moral afetivo;

  • (ii) o brasileiro Joaquim Clotet, doutor em Filosofia e Letras, que defende que a “ética tem por objetivo facilitar a realização das pessoas. Que o ser humano chegue a realizar-se a si mesmo como tal, isto é, como pessoa”; e

  • (iii) o americano Robert. M. Veatch, graduado em Farmácia e mestre em Farmacologia, cujo foco de pesquisa é a ética médica e que propôs que a ética é “a realização de uma reflexão disciplinada das intuições morais e das escolhas que as pessoas fazem”.

Portanto, verifica-se que a definição de bioética envolve um processo de confronto entre os fatos biológicos e os valores humanos na tomada de decisões envolvendo os problemas práticos em diferentes áreas da vida, em especial na área médica.

A inclusão do estudo da transexualidade na bioética se deve principalmente ao fato do assunto abranger a dignidade da pessoa humana, os princípios da bioética, a licitude e a eticidade da intervenção cirúrgica e a multidisciplinaridade.

Por fim, como toda forma de instrumento ético, os princípios bioéticos se revelam instrumentos imprescindíveis para que a Bioética possa exercer sua função de resguardar o homem e sua dignidade, os quais verificaremos a seguir.

1.1. Princípios Bioéticos

Sabemos que os princípios bioéticos são indispensáveis para o bom funcionamento da Bioética. Entretanto, no que consistem esses princípios e em que se baseiam? Na obra Principles of Biomedical Ethics, de Tom L. Beauchamps e James Franklin Childress, são determinados quatro princípios que devem ser seguidos para a correta aplicação da bioética, quais sejam:

  • (i) princípio da Beneficência;

  • (ii) princípio da Não-Maleficência;

  • (iii) princípio da Autonomia; e

  • (iv) princípio da Justiça.

Passaremos a estudar os referidos princípios.

1.1.1. Princípio da Beneficência

O princípio da beneficência está diretamente ligado com o juramento hipocrático dos médicos, mais precisamente ao que exige por parte do profissional de saúde a atuação no melhor interesse do paciente.

Para Neves e Osswald esse princípio enuncia a obrigatoriedade de agir de maneira a fornecer benefícios que equilibrem os custos, os riscos e as benfeitorias, para efetivamente produzir o bem para a pessoa à qual se age.

Nesse diapasão, Schaefer ensina que:

Explica-se na atitude positiva de assistir o paciente ou pesquisado, incluindo-se o dever de impedir ou remover possíveis danos e de promover benefícios e qualidade de vida presente ou futura.

Trata-se, numa visão naturalista, de promover benefícios, ponderando-os frente aos riscos da ação ou omissão médica ou científica, ou seja, maximizar benefícios e minimizar os danos.

É considerado delimitador de padrões de condutas, o fim primário da Medicina, cuja necessidade é de efetivamente fazer o bem e não apenas desejá-lo.

Está baseado na regra da confiabilidade do paciente em seu médico que deve observar constantemente o sigilo profissional, levando-se em consideração o bem do indivíduo prioritariamente.

Ainda, a própria etimologia da palavra (bene facere) nos leva à ideia de fazer bem, agir para alcançar o bem-estar das pessoas, prevenindo o mal.

Na esfera da saúde, entretanto, o entendimento chega a ser um dever moral, devendo-se usar a medicina apenas para aliviar o enfermo, melhorando seu bem-estar, nunca lhe causando males ou injustiças.

Com isso, conclui-se que a aplicação do princípio Bioético da beneficência se trata de fazer o bem e não fazer o mal, aumentando ao máximo as vantagens do procedimento em prol do paciente, reduzindo ao mínimo os inconvenientes que possam derivar do procedimento.

1.1.2. Princípio da Não-Maleficência

A palavra tem origem do latim primum non nocere, que significa não fazer o mal, não lesionar. Esse princípio deriva do desdobramento do princípio da beneficência.

Nesse sentido, Kuramoto argumenta que o princípio da não maleficência também decorre do juramento hipocrático, portanto, envolvendo uma abstenção dos médicos/pesquisadores na prática de atos que saibam ser prejudiciais aos pacientes/pesquisados.

Sobre esse princípio, afirma Schaefer que:

Traduz-se no mandamento de não fazer o mal a outra pessoa e se diferencia do princípio da beneficência, pois esse envolve ações positivas, enquanto aquele envolve ação ou omissões negativas.

Trata-se de obrigação de não impor dano intencional quer sejam eles presentes ou futuros.

Assim, para se assumir riscos biomédicos é necessário que sejam seus objetivos legalmente e moralmente justificáveis, tendo como sempre com o fim primário a preservação da vida ou melhoramento de sua qualidade.

Portanto, verifica-se que, a exemplo do princípio anterior, o princípio da não maleficência trata-se de um forte instrumento de proteção ao ser humano nos procedimentos realizados na área de saúde.

1.1.3. Princípio da Autonomia

A palavra autonomia possui origem grega (autos – eu – e nomos – lei), tratando-se da vontade da pessoa de criar seu próprio código de conduta, fazendo suas próprias escolhas e atuando da maneira que melhor lhe convir.

Portanto, o que se tem por princípio da autonomia nada mais é que a necessidade de atribuir a participação voluntária dos seres humanos sujeitos da pesquisa, respeitando sua autonomia e visando, acima de tudo, seu benefício e bem estar.

No pensamento de Machado:

O princípio da autonomia impõe que, na produção do conhecimento científico, sobretudo na fase de experimentação, e na aplicação de seus resultados pelos diversos profissionais que lidam com a vida e a saúde humanas, deve-se respeitar a autonomia de cada pessoa, isto é, o direito que cada ser humano tem de decidir sobre assuntos que lhe tocam, de ser ouvido e de ter efetivamente consideradas suas opiniões no momento da tomada de uma decisão.

Assim, podemos concluir que o princípio da autonomia se dá ao atribuir ao paciente o poder de decidir os trâmites do tratamento médico ao qual será submetido, sendo este princípio forte instrumento de proteção ao homem e a sua dignidade.

1.1.4. Princípio da Justiça

No decorrer de nossa história médica houve diversos casos nos quais um grupo de pacientes foi submetido a pesquisas, na busca da cura de determinadas enfermidades que assolam a sociedade.

A título de exemplo, podemos citar os casos de Tuskegee, no Estado do Alabama (EUA), Hospital Estatal de Willowbrook, em Nova Iorque (EUA) e Hospital Israelita de doenças crônicas, no Brooklin.

Nesses locais, realizavam-se experimentos com negros, crianças mentalmente enfermas e idosos internados, respectivamente.

Em nome da ciência e do progresso, os integrantes desses grupos –compostos por pessoas vulneráveis – foram submetidos à barbárie, ferindo seus direitos mais básicos, como o da dignidade da pessoa humana.

Assim sendo, sabe-se que os prejuízos à saúde foram suportados pelos integrantes desses grupos.

Entretanto, os benefícios que incidiram dessas pesquisas científicas não foram colhidos pelas pessoas que foram submetidas a estas, sendo voltados para aqueles que financiaram as pesquisas e para aqueles que possuíam condições financeiras de arcar com o produto destinado à cura das enfermidades estudadas.

O princípio da justiça impõe que a distribuição dos encargos e vantagens das pesquisas deve ser justo e igualitário, requerendo a imparcialidade na distribuição dos riscos e benefícios.

Sobre esse princípio, aduz Schaefer:

Em termos bastante genéricos o princípio da justiça envolve valores que devem ser respeitados por toda a sociedade e pode ser resumido em dar a cada pessoa o que lhe pertence ou o que lhe é devido (justiça distributiva), ou conforme contido no Informe Belmont: “a cada pessoa de acordo com seu esforço individual; a cada pessoa de acordo com a sua contribuição à sociedade; a cada pessoa de acordo com o seu”.

Portanto, entende-se que esse princípio bioético está baseado na obrigação de igualdade de tratamento imposta aos profissionais de saúde, bem como na imposição ao Estado quanto à justa distribuição das verbas para a saúde.

1.2. Bioética e Direito

Anteriormente, quando tratado sobre o princípio bioético da justiça, foram apontados casos que ferem a dignidade humana, banalizando a saúde e o bem-estar de seres humanos, onde estes não tiveram sua vontade respeitada, tudo em prol de um teórico progresso científico.

Os casos supracitados tiveram grande repercussão social, fazendo com que a Bioética fosse desenvolvida para tentar impedir essas práticas ofensivas aos seres humanos.

Entretanto, somente a Bioética não seria capaz de frear de modo significativo essas práticas abusivas, sendo necessária, também, a intervenção do Direito, “para que este normatize regras de conduta coercitivas que venham a equilibrar os avanços biotecnológicos de modo consentâneo com a dignidade do ser humano”.

Neste cenário, surge o Biodireito, inserido na Bioética, visando o poder de coerção para obstar e punir o exercício dessas atividades, em contraparte com a bioética, que delimita moralmente às condutas praticadas pelos pesquisadores.

Nesse sentido, expõe Loureiro:

A Bioética propõe limites à biotecnologia e à experimentação científica em seres humanos, com a finalidade de ver protegidas a dignidade e a vida da pessoa humana como prioridade sobre qualquer valor.

Porém, a normal moral é insuficiente porque, ainda que alcance a dimensão social da pessoa humana, opera no plano interno da consciência, impondo-se, portanto, um novo ramo do dever ser, mediante o qual se regulem as relações intersubjetivas à luz dos princípios da Bioética.

Necessário, por isso, que as normas sejam jurídicas, e não apenas éticas, pois somente o seu caráter coercitivo impedirá ao cientista sucumbir à tentação experimentalista e à pressão de interesses econômicos.

Como visto, o Biodireito tem a finalidade de fixar normas coercitivas que delimitem as atuações dos cientistas no que tange às experimentações científicas, no sentido de ver respeitada a dignidade do ser humano, sua identidade e sua vida.

Tem a função de “normatizar os efeitos da revolução biotecnológica sobre a sociedade em geral”.

Portanto, conclui-se que a bioética terá cumprimento mediante o biodireito, estando os dois intrinsicamente ligados.

Nesse diapasão, o biodireito tem se consolidado como um campo da Ciência Jurídica que tem como finalidade maior a busca pela proteção da pessoa humana, em especial, proteção à vida e à dignidade humana.? A coerência e a continuidade supostas entre sexo-gênero-sexualidade servem para sustentar a normatização da vida dos indivíduos e das sociedades.


2. SEXUALIDADE HUMANA

A sexualidade trata-se de um fenômeno social total, existente em todas as instituições sociais, que envolve sentimentos, sensações, fisicalidade, reprodução, etc.

É estranha a qualquer espécie de padronização, já que seus ditames variam de acordo com a sociedade na qual se instala.

Podemos dizer que a sexualidade é constituída, portanto, por um sistema complexo envolvendo as várias determinações sexuais, desde o sexo biológico até o sexo de criação, compreendendo todas as manifestações do instinto sexual humano e as possíveis interferências dos ditames sociais.

2.1. Do sexo

Antes de tratar sobre a identidade de gênero, faz-se necessário discorrer brevemente sobre a identificação do sexo em seus vários contextos, bem como sobre os variados segmentos do sexo, quais sejam, biológico, genético, gonádico, somático, neural, jurídico, de criação ou social e psicossocial, mesmo que superficialmente, já que não é esse o objeto principal deste trabalho.

2.1.1. Sexo biológico

O sexo biológico é subdividido em três espécies, a saber:

  • o sexo genético ou cromossômico, que ocorre com a fecundação;

  • o sexo gonádico, que ocorre com a atuação das gônadas;

  • o sexo somático, que forma as estruturas sexuais.

2.1.1.1. Sexo genético

Também denominado de sexo genotípico, o sexo genético pode ser dividido em cromossômico e cromatínico.

Del-Campo sustenta que os seres humanos possuem 46 (quarenta e seis) cromossomos, divididos em pares, formando, no total, 23 (vinte e três) pares cromossômicos.

A identificação sexual do indivíduo se dá em três etapas, sendo a primeira delas com a fecundação, momento em que, a partir da conjugação dos genomas paternos, será definido o sexo genético.

Isso ocorre com a contribuição dos cromossomos da mãe – sendo o cromossomo materno tendencioso à feminilidade, representado pela letra “X” – e com a contribuição dos cromossomos do pai – que pode tender tanto para a feminilidade (cromossomo “X”) quanto para a masculinidade (cromossomo “Y”).

A união dos cromossomos dos pais trará a primeira identificação sexual do indivíduo: sendo o resultado da junção cromossomos “XX” o sexo biológico será feminino, sendo cromossomo “XY” o sexo biológico será masculino.

2.1.1.2. Sexo gonádico

A segunda etapa da definição sexual ocorre com a formação primária, que configura os órgãos sexuais, e a secundária, que forma as demais características identificadoras do sexo.

As informações internas indicarão às gônadas a necessidade de produção de substâncias masculinizadoras, ocasionando a formação de testículos.

Qualquer anormalidade na estrutura das gônadas acarretará a presença de caracteres sexuais alterados, assim como o mau funcionamento hormonal poderá causar a masculinização ou feminilização parcial ou dúbia do sistema, configurando a transexualidade devido às alterações que o ritmo cerebral pode sofrer no período fetal, não fazendo a “diferenciação sexual cerebral do indivíduo segundo a diferenciação traçada pelo cariótipo e, posteriormente, pelos hormônios gonádicos”.

2.1.1.3. Sexo Somático

A terceira e última etapa é realizada com a participação dos hormônios que levam as informações sexuais aos demais tecidos, através da corrente sanguínea, para sua devida formação.

Todo o contexto biológico dependerá do correto recebimento daquela informação e da efetiva formação do tecido.

Qualquer erro acarretará a formação biológica feminina, já que está é “automática”, independendo da correta informação dos hormônios, ao contrário da masculina, cuja informação correta dos hormônios é essencial.

2.1.2. Sexo neural

O sexo neural compreende duas espécies sexuais: a feminina e a masculina.

Não há qualquer estado de intersexualidade ou duplicidade.

Nesse diapasão, independentemente da orientação sexual, somente é possível encontrar dois tipos de comportamentos sexuais, como dito, feminino e masculino.

Ao comportamento feminino são atribuídos características de fragilidade, sentimentos, passividade e romantismo, enquanto ao masculino tem características como força, atividade e o instinto sexual independente de qualquer sentimento.

Esse é o entendimento de FREITAS:

Comportamentos eminentemente ativos (diante de homens e mulheres) ou ativo/passivo (diante de homens), mas sempre com um forte componente ativo diante de homens, independentemente de pênis ou vaginas, ou de quaisquer outras características, indicam um EU neuralmente estruturado de forma masculina, portanto um HOMEM.

Comportamentos eminentemente passivos, receptivos (diante de homens) independentemente de pênis ou vaginas ou quaisquer outros itens de aparência, indicam um EU neuralmente estruturado de forma feminina, portanto uma MULHER.

Portanto, conclui-se que a formação neural será tendenciosa na identificação sexual do indivíduo, pois a partir dela que o mesmo construirá sua sexualidade, o que independe dos atributos secundários de seu corpo.

2.1.3. Sexo jurídico

Sexo jurídico é aquele acentuado na certidão de nascimento da criança a ser lavrado no Cartório de Registro Civil das Pessoas Físicas.

Ele é designado de acordo com a identificação do sexo biológico, variável entre feminino e o masculino.

Devido aos problemas trazidos pela transexualidade, há projetos de lei em tramite, visando instituir novas figuras sexuais.

Aludidas ações também geram a relativização do registro civil no que se refere à definição de sexo.

2.1.4. Sexo social

O sexo de criação representa condutas, costumes e crenças sociais baseadas na diferenciação de tratamentos atribuída à criança em prol da identificação de seus sexos biológico e jurídico.

Segundo PERES (2001, p. 86):

Portanto, tem-se que o sexo de criação resulta de influências psicológicas, socioculturais e ambientais na formação do indivíduo.

Essas influências também seriam responsáveis pela estruturação do seu comportamento e pela sua identificação sexual.

Conforme posicionamento de JAYME:

Se concordarmos que a identidade cultural é uma construção que será intrinsecamente relacionada à diferença, à alteridade, não podemos negar a interferência das transformações sociais do mundo contemporâneo em sua formulação.

Deste modo, podemos afirmar que a consciência que se tem de ser do gênero masculino ou feminino é adquirida e induzida pelo comportamento e pelas atitudes dos pais, dos familiares e do meio social a que se pertence, além da percepção e interiorização das experiências vividas.

Esse processo pode sofrer várias interferências que podem levar a um sério comprometimento na identificação de gênero.

2.2. Estados Físicos e Comportamentais

A orientação sexual e a identidade de gênero não tem, necessariamente, ligação com o sexo gonádico, endócrino ou morfológico, posto possuir elementos conscientes e inconscientes, portanto, advindo de influência psicológica e interligação com as características físicas do indivíduo, sendo compreendida por fatores internos e externos inerentes ao indivíduo.

Primeiramente, importante tratar sobre as diferenças entre orientação sexual e identidade de gênero, posto serem coisas distintas, conforme se observará a seguir.

2.2.1. Orientação Sexual

A identidade sexual nada mais é do que a forma como nos sentimos afetivamente e sexualmente.

De acordo com Lívia Cristina Rocha:

Assim sendo, a identidade sexual está atrelada a todos os fatores internos e externos que, de alguma forma, podem interferir na formação sociocultural do indivíduo.

Contudo, apesar das demais formações sexuais, a revelação de sua identidade somente é cabível ao indivíduo a que pertence e geralmente ocorre na infância entre os quatro e seis anos, quando a criança desperta para a realidade fática e o meio social no qual vive, tomando assim consciência de quem verdadeiramente é, muito embora haja certa confusão devido ao pouco conhecimento e a pouca experiência, as atitudes tomadas por ela já são suficientes para interpretar sua identidade sexual.

Nesse diapasão, nas palavras de BRIGEIRO, “sexualidade não é sobre o que você faz, necessariamente. É sobre o que você é e o que você idealmente você faria, no caso de uma vida não influenciada pela demanda dos outros”.

Existem quatro tipos de orientação sexual:

  • (i) bissexualidade,

  • (ii) heterossexualidade,

  • (iii) homossexualidade e

  • (iv) assexualidade.

Apesar de não se tratar do foco principal deste trabalho, discorreremos brevemente estes diferentes tipos.

2.2.1.1. Bissexualidade

De maneira bastante simplificada, podemos afirmar que os bissexuais são aqueles que sentem atração sexual por ambos os sexos: tanto pelo seu próprio quanto pelo oposto.

Tecnicamente, entretanto, não é tão simples definir esse tipo de identidade sexual.

Atualmente, a bissexualidade indica “um desejo sexual que ‘combina’ ou ‘une’ a heterossexualidade e a homossexualidade”.

2.2.1.2. Homossexualidade

A homossexualidade se caracteriza como sendo um indivíduo que escolhe ter relações sexuais com um indivíduo do mesmo sexo biológico que o seu, podendo ocupar a posição ativa ou passiva.

Na homossexualidade, não há negação quanto ao próprio sexo biológico, somente estando atrelado à opção sexual do indivíduo, que escolhe livremente a escolha de seu(sua) parceiro(a) sexual como sendo outro indivíduo de seu mesmo sexo biológico.

Quando manifestado em homens, essa prática recebe nomes como uranismo, pederastia e sodomia e, quando em mulheres, como safismo, lesbismo, lesbianismo e tribadismo.

Vale ressaltar que, muitas vezes, a homossexualidade pode vir a ser uma forma inicial de transexualidade.

Entretanto, são manifestações distintas, sendo a homossexualidade uma identidade sexual e a transexualidade – como veremos mais à frente – uma identidade de gênero, que são, por muitas vezes, confundidas.

2.2.1.3. Heterossexualidade

Os heterossexuais podem ser classificados como indivíduos que demonstram afinidade sexual por indivíduos de sexo biológico oposto ao seu próprio e é considerada a identidade sexual mais comum entre os seres humanos.

A heterossexualidade vem sendo considerada, ao longo dos anos, como a orientação sexual “correta”, “normal”, “natural”, decorrente de uma ligação direta com a função reprodutora humana, posto haver relações sexuais entre um indivíduo do sexo feminino e um indivíduo do sexo masculino.

Entretanto, atualmente esse conceito de ser o comportamento sexual humano “normal” vem sendo rechaçado e substituído para orientação sexual mais “comum” entre os seres humanos, não sendo mais o único comportamento sexual admitido na sociedade atual, embora ainda haja preconceito.

2.2.1.4. Assexualidade

A definição mais bem aceita de assexualidade é a de que indivíduos assexuais são aqueles que apresentam uma falta de atração sexual por pessoas.

É preciso, primeiramente, diferenciar a assexualidade do transtorno do desejo sexual hipoativo.

Enquanto o primeiro é uma patologia cujas características são a diminuição ou ausência de fantasias sexuais que levam o indivíduo afetado a deixar de querer ter relações sexuais, e causa sofrimento e dificuldades em se relacionar também afetivamente, o segundo é tido como orientação sexual – apesar de não existir consenso sobre essa categorização -, onde o indivíduo não sente vontade de praticar relações sexuais, mas pode praticá-las independente disso e não há prejuízos nos relacionamentos afetivos.

De acordo com Asexuality Visibility and Education Network:

An asexual is someone who does not experience sexual attraction.

Unlike celibacy, which people choose, asexuality is an intrinsic part of who we are.

Asexuality does not make our lives any worse or any better, we just face a different set of challenges than most sexual people.

There is considerable diversity among the asexual community; each asexual person experiences things like relationships, attraction, and arousal somewhat differently.

Asexuality is just beginning to be the subject of scientific research.

Portanto, nota-se que a assexualidade ainda é um campo da sexualidade humana pouco explorado e estudado, havendo pouco material científico a respeito.

2.2.2. Identidade de Gênero

Pode-se definir identidade de gênero como a relação entre sexualidade e o sexo propriamente dito, podendo ser conflitante quando uma pessoa com determinado sexo biológico possui um comportamento de gênero e uma vivência diversa de sua sexualidade.

Nas palavras de Louro: “a coerência e a continuidade supostas entre sexo-gênero-sexualidade servem para sustentar a normatização da vida dos indivíduos e das sociedades”.

Nesse diapasão, podemos afirmar que a identidade de gênero é aquele gênero com o qual um indivíduo se identifica, podendo concordar ou não com seu gênero biológico.

Nota-se que, como ressalta JESUS, “identidade de gênero e orientação sexual são dimensões diferentes que não se confundem”.

A identidade de gênero pode ser afetada por uma variedade de estruturas sociais, podendo ser dividida em três tipos:

  • (i) travestismo;

  • (ii) intersexualidade; e

  • (iii) transexualidade.

2.2.2.1. Travestismo

“A criação do termo travestismo é atribuída a Hirschfeld, em 1910, conhecido, também, pela denominação de roupas cruzadas ou roupas trocadas, do inglês crossdressing”.

O travestismo é bastante confundido com o transexualismo.

Entretanto, enquanto a transexualidade possui uma discrepância entre o sexo biológico e o psicológico, o travestismo nada mais é do aquele indivíduo que se veste com roupas que a sociedade reconhece como sendo adequadas ao sexo oposto.

Segundo Berenice Bento:

Uma das diferenças tradicionalmente apontadas entre transexualidade e travestilidade estava na realização da cirurgia.

Considerava-se que todas as pessoas transexuais atrelavam sua reivindicação de mudança de gênero à realização das cirurgias.

Nos últimos anos, esta centralidade começou a ser relativizada por pessoas transexuais que reclamam a mudança do gênero e não a condicionam à cirurgia.

Essa relativização assumida aumentou o embaralhamento das fronteiras indenitárias.

O travestismo é dividido em duas formas, podendo ser por fetiche ou por defesa (ou bivalente, de acordo com o autor).

O travestismo fetichista é considerado um transtorno de preferência sexual e, de acordo com o CID-10, da OMS, é definido como: Vestir roupas do sexo oposto, principalmente com o objetivo de obter excitação sexual e de criar a aparência de pessoa do sexo oposto.

O travestismo fetichista se distingue do travestismo transexual pela sua associação clara com uma excitação sexual e pela necessidade de se remover as roupas uma vez que o orgasmo ocorra e haja declínio da excitação sexual.

Pode ocorrer como fase preliminar do desenvolvimento do transexualismo.

Ainda, o DSM, explica que, no travestimos fetichista, a “excitação sexual é produzida pelo pensamento ou imagem concomitante do indivíduo como mulher”, podendo essas imagens variar entre ser uma mulher com genitália feminina ou uma visão de si mesmo inteiramente vestido como mulher, mas sem nenhuma atenção as genitálias.

Ademais, expõe que, nos casos de travestismo fetichista, “quando não está travestido, o homem com travestismo fetichista em geral é irreparavelmente masculino”.

Já o travestismo de defesa ou bivalente, é classificado, de acordo com a CID-10, como sendo:

(...) o fato de usar vestimentas do sexo oposto durante uma parte de sua existência, de modo a satisfazer a experiência temporária de pertencer ao sexo oposto, mas sem desejo de alteração sexual mais permanente ou de uma transformação cirúrgica; a mudança de vestimenta não se acompanha de excitação sexual.

Portanto, conclui-se que a diferença maior entre os transexuais e os travestis está no fato de que os transexuais, sim, se travestem, mas isso acontece como sintoma, e não como fetiche ou exibicionismo, como acontece com os travestis, que não sentem apatia pelo seu sexo biológico, como ocorre com os transexuais.

2.2.2.2. Intersexualidade

Intersexual pode ser definido como o indivíduo que apresenta ambiguidade de ordem biológica, decorrente da alteração das gônadas, apresentando uma forma de mistura entre os tecidos masculino e feminino.

A intersexualidade pode ser descrita como a “existência de desequilíbrio entre os diferentes fatores responsáveis pela determinação do sexo”.

Nas palavras de Lívia Cristina Rocha:

A doutrina tinha por hábito fundamentar a definição do intersexualismo (sic) no desequilíbrio entre os fatores responsáveis pela definição sexual, não importando a extensão do desequilíbrio, mas sim apenas sua existência, assim, o emprego do termo para indicação da presença ambígua de fatores biológicos é relativamente recente.

Nessa linha, o intersexualismo pode ser definido como a malformação dos caracteres sexuais, ou seja, seu portador possui caracteres somáticos e psíquicos de ambos os sexos, feminino e masculino, geralmente é definido como portador de sexo indeciso.

A ambuguidade dos sexos leva a um desacordo entre o sexo genético, o gonodal e o fenotípico dos indivíduos denominados intersexuais.

Entretanto, a pessoa que possui essa ambiguidade desenvolve, em maior ou menos grau, uma identidade de gênero, ou seja, um sexo psicológico.

Assim, essa ambiguidade, em alguns casos, é passível de correção por vias cirúrgicas, que devem levar em conta o sexo psicossocial, sempre que possível.

2.2.2.3. Transexualidade

A transexualidade pode ser definida como um indivíduo que possui um sexo biológico o qual rejeita, se identificando com o sexo oposto ao seu.

São pessoas que possuem um sexo no registro civil, mas se identificam fortemente com o oposto.

Nas palavras de Tereza Rodrigues Vieira:

O componente psicológico do transexual caracterizado pela convicção íntima do indivíduo de pertencer a um determinado sexo se encontra em completa discordância com os demais componentes, de ordem física, que designaram seu sexo no momento do nascimento.

Sua convicção de pertencer ao sexo oposto àquele que lhe fora oficialmente dado é inabalável e se caracteriza pelas primeiras manifestações da perseverança desta convicção, segundo uma progressão constante e irreversível, escapando a seu livre arbítrio.

E continua:

Transexual é o indivíduo que possui a convicção inalterável de pertencer ao sexo oposto ao constante em seu Registro de Nascimento, reprovando veementemente seus órgãos sexuais externos, dos quais deseja de livrar por meio de cirurgia.

O fenômeno da transexualidade alcançou notoriedade quando, em 1952, houve a divulgação em jornais americanos sobre a história de George Jorgensen, um jovem de 28 (vinte e oito anos), ex-soldado do exército americano, que se submeteu a tratamentos hormonais para adequação de seu sexo biológico com seu sexo psíquico, intervenção esta feita pelo endocrinologista dinamarquês Christian Hamburguer. Por fim, submeteu-se à operação de transgenitalização, em dois tempos distintos, sendo a primeira para retirar seus testículos e a segunda para a retirada de seu pênis. Não houve a construção de uma vagina. Entretanto, após a feitura das cirurgias e o uso concomitante de hormônios, George passou a se vestir como mulher, viver como mulher e usar o nome feminino: Christine.

Entretanto, a expressão transexualidade somente chega à medicina na década de 50 (cinquenta), quando o Dr. Harry Benjamin descobriu a síndrome que nós chamamos de transexualismo, ajudando a lançar o tratamento. Seu trabalho com transexuais rendeu a publicação do livro The Transsexual Phenomenon, avançando na diferenciação entre travestismo e transexualidade. Ademais, Benjamin também criou uma escala de orientação sexual, o qual denominou “Harry Benjamin Sex Orientation Scale (S.O.S.), Sex and Gender Disorientation and Indecision (Males)”, baseando-se em seus estudos sobre os transexuais:

Tabela 1 - Harry Benjamin Sex Orientation Scale

Tipo I - Pseudo Travesti

Tipo II - Travesti fetichista

Tipo III - Travesti Verdadeiro

Tipo IV - Transexual não cirúrgico

Tipo V - Transexual de intensidade moderada

Tipo VI - Transexual de alta intensidade

Sentimento quanto ao Gênero

Masculino

Masculino, mas sem convicção

Incerto entre travesti e transexual

Pode rejeitar seu gênero

Feminino, preso em um corpo masculino

Feminino, inversão “psicossexual”

Hábitos de se vestir e vida social

Vida masculina normal

Pode apresentar pequeno desejo de se vestir [com roupas femininas]

Não é verdadeiramente transexual. Vive como homem

Veste-se periodicamente ou em parte do tempo [com roupas femininas]

Veste-se com roupas masculinas. Veste-se constantemente ou com a frequência possível [com roupas femininas]

Pode viver e ser aceito como mulher. Pode se vestir com roupas masculinas

Objeto de escolha sexual e vida sexual

Usualmente heterossexual. Raramente bissexual. Masturba-se com fetiches. Apresenta sentimentos de culpa. Penaliza-se e relaxa

Usualmente heterossexual. Pode ser bissexual ou homossexual. Principalmente durante a masturbação tem fantasias de se vestir e de mudança de sexo

Heterossexual, exceto quando vestido. Vestir dá satisfação sexual e alívio ao desconforto de gênero. Comum a punição e o relaxamento

Baixa libido. Geralmente assexual ou auto-erótico. Pode ser bissexual

Baixa libido. Assexual, auto-erótico ou homossexualidade passiva. Pode ter sido casado e ter filhos

Desejos intensos de se relacionar com homens normais no papel de mulher, se jovem. Com o tempo, baixa libido. Identificação heterossexual ou bissexual. Pode ter sido casado e ter filhos

Operação de conversão

Na realidade não considera

Pode considerar somente em fantasia. Rejeita-a

Rejeita, mas a ideia é atraente

Atraente, mas não solicitada

Solicitada

Urgentemente solicitada e usualmente conseguida

Hormonioterapia / Estrogenoterapia

Não considera

Não indicada

Raramente interessado. Pode ajudar a reduzir a libido

Atrativa como experiência. Pode ser útil como diagnóstico

Necessária para conforto e balanço emocional

Necessária como substituta ou como preliminar para a cirurgia de conversão sexual

Necessária como alívio parcial

Psicoterapia

Paciente não deseja

Pode ser bem sucedida em circunstância social favorável

Vale como tentativa, mas sem sucesso de cura

Só como apoio. Muitas vezes recusada e sem sucesso

Rejeitada. Menos ainda como cura. Orientação psicológica permissiva

Orientação psicológica ou psicoterapia só como alívio sintomático

Observações

Somente interesse esporádico em se vestir

Raramente tem nome feminino quando vestido

Pode ser confundida com dupla personalidade masculina e feminina, com nomes masculinos e femininos

Pode assumir dupla personalidade. Inclina-se para o transexualismo (sic)

Vida social dependente das circunstância. Frequentemente identifica-se como transgênero

Cirurgia desejada, esperada e buscada com esforço até conseguir. Despreza seus órgãos sexuais masculinos. Perigo extremo de auto-mutilação ou até mesmo suicídio se a cirurgia de conversão não é conseguida

Tipo 0:

Orientação e identificação sexuais sem problemas: heterossexual, homossexual ou bissexual.

As ideias de “vestir” ou “mudar de sexo” são estranhas e desprazerosas.

Inclui a maioria das pessoas.

Como se pode notar pela Tabela 1, Benjamin não trata sobre a transexualidade feminina, pois acreditava que esta se dava por outro tipo de desenvolvimento, por conta da sua menor frequência na população. Acreditava, portanto, que a transexualidade só afetaria os homens.

Depois de Benjamin, houve vários autores que estudaram o tema e colaboraram para muitos trabalhos científicos, fundamentais no estudo de gênero.

Os autores definiam dois conceitos importantes para o entendimento da transexualidade:

  • (i) identidade de gênero, que é a identidade, harmonia e persistência da individualidade de alguém como masculina, feminina ou ambivalente, em maior ou menor grau, especialmente como ela é experimentada com sua própria consciência e comportamento; e

  • (ii) papel de gênero, que é tudo que uma pessoa diz e faz para indicar aos outros ou a si mesmo seu grau de masculinidade, feminilidade ou ambivalência, isso inclui, mas não se restringe, ao desejo e resposta sexual.

Ainda atualmente, a transexualidade é vista pela medicina, psicologia e psiquiatria como uma patologia, mesmo com todos os esforços de grupos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis (LGBTT) para modificar essa situação.

Aqui, cita-se o DSM, da APA, onde a transexualidade é classificada como transtorno de identidade de gênero, apresentando sintomas bastantes característicos, quais sejam, uma forte e persistente identificação com o sexo oposto, com o desejo de ser do gênero contrário e apresentando evidências de um desconforto persistente com o próprio sexo.

Além deste documento, cita-se a CID-10, da OMS, onde a transexualidade é prevista como transtorno da identidade sexual, e contém orientações sobre o diagnóstico e o tratamento desta patologia.

No Brasil, além de serem utilizados os documentos supracitados, surge a Resolução do CFM, de número 1.955/2010, dispondo sobre a cirurgia de redesignação sexual, onde expõe ser o “paciente transexual portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual”.

Entretanto, atualmente há uma crescente discussão, apesar dos documentos citados, no que se refere ao desejo manifestado pelos transexuais de realizar a cirurgia e seu desejo sexual, posto os documentos oficiais trazerem uma forma de transexual cujas características seriam a intensa vontade de se submeter à intervenção cirúrgica para adequação de seu sexo biológico com o psicossocial e possuir anseio em ter relações sexuais com o sexo oposto àquele com o qual se identifica.

Porém, o que se tem constatado é que existe uma pluralidade de transexuais, com as mais diversas formas de manifestação sexual e desejo de se submeter à cirurgia.

Nas palavras de Berenice Bento:

Historias de vida de pessoas transexuais que têm uma vida sexual ativa, que vivem com seus/suas companheiros/as antes da cirurgia, pessoas que fazem a cirurgia não para manterem relações heterossexuais, pois se consideram lésbicas e gays, desconstroem as respostas padronizadas dadas pelo poder/saber médico.

Outras pessoas transexuais questionam a eficácia da cirurgia para suas vidas, defendem que o acesso e o exercício da masculinidade ou da feminilidade não serão garantidos pela existência de um pênis ou de uma vagina.

Nesses casos, a principal reivindicação é o direito legal à identidade de gênero.

Por isso, faz-se imprescindível a diferenciação anteriormente feita entre o que vem a ser a orientação sexual e a identidade de gênero, já que não se confundem.

2.3. A cirurgia de redesignação de sexo

A transexualidade é tida como um transtorno da identidade sexual, prevista na CID-10, que a define da seguinte forma:

Trata-se de um desejo de viver e ser aceito enquanto pessoa do sexo oposto.

Este desejo se acompanha em geral de um sentimento de mal estar ou de inadaptação por referência a seu próprio sexo anatômico e do desejo de submeter-se a uma intervenção cirúrgica ou a um tratamento hormonal a fim de tornar seu corpo tão conforme quanto possível ao sexo desejado.

Já o DSM, expõe que Há dois componentes no Transtorno da Identidade de Gênero, sendo que ambos devem estar presentes para fazer o diagnóstico.

Deve haver evidências de uma forte e persistente identificação com o gênero oposto, que consiste no desejo de ser, ou a insistência do indivíduo de que ele é do sexo oposto (Critério A).

Esta identificação com o genero oposto não deve refletir um mero desejo de quaisquer vantagens culturais percebidas por ser do outro sexo.

Também deve haver evidencias de um desconforto persistente com o próprio sexo atribuído ou uma sensação de inadequação no papel de gênero deste sexo (Critério B).

Por estar em situação de frequente desconforto caracterizado pelo descompasso entre seu sexo biológico e o psicossocial, o transexual busca formas de adequar sua situação, visando amenizar o dissabor a que se vê submetido.

Para readequação de seu sexo, o transexual se submete a diversos procedimentos.

Primeiramente, faz-se necessário resignar-se ao tratamento hormonal, que deve ser acompanhado por um endocrinologista, sendo responsável pela reversão sexual, induzindo o aparecimento de caracteres sexuais secundários compatíveis com a identificação psicossocial do paciente.

Para a adequação feita em transexuais femininos, o hormônio mais utilizado é o estrógeno; já para o transexual masculino, o principal hormônio é a testosterona.

Ressalta-se que não é um procedimento fácil, posto haver diversos efeitos colaterais, como a queda da libido ou hipersexualidade.

Entretanto, o tratamento hormonal é, muitas vezes, apenas o primeiro passo para aqueles transexuais que desejam se submeter à cirurgia de readequação sexual, bem como outras cirurgias corretivas.

Atualmente, a cirurgia de transgenitalização é autorizada no Brasil pelo CFM, regulamentada através da Resolução nº 1.955/2010 nos seguintes termos:

CONSIDERANDO que a cirurgia de transformação plástico-reconstrutiva da genitália externa, interna e caracteres sexuais secundários não constitui crime de mutilação previsto no Art. 129 do Código Penal, haja vista que tem propósito terapêutico específico de adequar a genitália ao sexo psíquico.

Além, em seu artigo 1º e 2º, exibe:

Art. 1º Autorizar a cirurgia de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia e/ou procedimentos complementares sobre gônodas e caracteres sexuais secundários como tratamento dos casos de transexualismo.

Art. 2º Autorizar, ainda a título experimental, a realização de cirurgia do tipo neofaloplastia.

Portanto, não há mais que se falar em processo judicial por força do artigo 129 do Código Penal, nem há de se falar em contrariedade ao disposto no artigo 13 do Código Civil, posto que a cirurgia de redesignação sexual, atualmente, já possuir caráter terapêutico e não mutilador, visando recompor a saúde do indivíduo.

Contudo, para que possa se submeter à cirurgia, o transexual precisa preencher alguns critérios, expostos na Resolução do Conselho Federal de Medicina, para que possa ser considerado transexual:

Art. 3º Que a definição de transexualismo (sic) obedecerá, no mínimo, aos critérios abaixo enumerados:

1) Desconforto com o sexo anatômico natural;

2) Desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto;

3) Permanência desses distúrbios de forma continua e consistente por, no mínimo, dois anos;

4) Ausência de outros transtornos mentais.

(Onde se lê “Ausência de outros transtornos mentais”, leia-se “Ausência de transtornos mentais”)

Somente depois de cumpridos esses requisitos e havendo consentimento expresso do paciente é que poderá ser realizada a cirurgia de readequação sexual.

As cirurgias consistem, no caso de transexuais femininos, na construção de uma vagina a partir do tecido do pênis, com a feitura de cirurgia plástica para a construção dos pequenos e grandes lábios e é denominada de neocolpovulvoplastia.

Já no caso de transexuais masculinos, a intervenção visa a mastectomia, histerectomia e a construção do pênis e a prática é denominada de neofaloplastia.

Entretanto, essa prática, conforme exposto pela Resolução do CFM, ainda está em fase experimental, com técnicas ainda bastante precárias.

Cumpre-nos informar, por fim, que em 18 de agosto de 2008, o Ministério da Saúde publicou a Portaria nº 1.707, que instituiu o processo de redesignação sexual no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS, passo deveras importante por demonstrar a necessidade de interferência do Poder Público para assegurar o direito à integridade física e psíquica dos transexuais.

Coragem de ser é uma atitude ética e filosófica na qual o homem afirma seu próprio ser, a despeito daqueles elementos de seu meio e de sua existência, que entram em conflito com sua autoafirmação essencial. (Paul Tillich)


3. RECONHECIMENTO DO TRANSEXUAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO

3.1. O Registro Civil – Breve Introdução

Aduz a Constituição Federal, em seu artigo 236:

Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.

Ainda, os serviços notariais e de registro são regidos pela Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994, conhecida como “Lei dos Cartórios” que, em seu artigo 1º, traz a definição de serviços notariais e de registro, afirmando que “serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir publicidade, autenticidade, segurança e eficácia aos atos jurídicos.”.

Além disso, a atividade de Registro Civil é regulamentada, também, pela Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei de Registros Públicos), a qual sujeita ao seu regime o registro (i) civil de pessoas naturais; (ii) civil de pessoas jurídicas; (iii) de títulos e documentos; e (iv) de imóveis.

Ademais, pode-se definir Registro Civil como o termo jurídico que designa o assentamento dos fatos da vida de um indivíduo, sendo ato jurídico que dá publicidade ao nascimento com vida de um ser humano, conferindo-lhe existência legal e autêntica, atribuindo-lhe aptidão para contrair obrigações e adquirir direitos, além de indicar o casamento, divórcio e morte.

Também são passíveis de registro civil as interdições, as tutelas, as adoções, os pactos pré-nupciais, o exercício do poder familiar, opção de nacionalidade e outros fatos que afetem a relação jurídica entre cidadãos.

Por fim, aprofundaremos o estudo apenas quanto ao registro de nome de pessoas físicas, bem como suas possíveis alterações posteriores, como é, atualmente, essa mudança para os transexuais e quais são as soluções em discussão para melhor adequação do prenome de pessoas transgêneras.

3.2. A possibilidade de alteração de nome

O direito ao nome está previsto no Capítulo II do Código Civil, que faz referência aos Direitos de Personalidade.

Afirma o artigo 16 que “toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome”.

Podemos definir o nome como sendo a identificação social da pessoa, com a finalidade de individualizá-la, assegurando sua própria satisfação psicológica e sua estabilidade jurídica, além do direito à integridade – física e psíquica –, bem como o direito à liberdade e à dignidade da pessoa humana.

Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves, o nome “integra a personalidade, individualiza a pessoa não somente durante sua vida, como também após sua morte (...)”.

Neste diapasão, expõe André Carvalho que “o nome civil integra a personalidade do ser humano, exercendo as funções precípuas de individualização das pessoas nas relações de direitos e obrigações desenvolvidas em sociedade”.

E prossegue afirmando que “o nome é o elemento responsável por identificar cada ser humano, atribuindo-lhe caráter personalíssimo, e o diferenciando dos demais. Inicia-se com o registro que, em regra, acontece logo após o nascimento, e acompanha a pessoa natural por toda a vida, podendo haver reflexos, inclusive, após sua morte.”.

Ademais, dada à elevada importância quanto à individualização da pessoa que se dá com o nome, bem como a necessária identificação destes pelo Estado, a Lei de Registros Públicos estabeleceu em seu artigo 58 que “O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios.”.

Inicialmente, o prenome era tido como imutável. Essa inicial imutabilidade quanto ao nome civil dos indivíduos se baseava, principalmente, na segurança jurídica, propondo-se a evitar fraudes, impedindo o uso do nome por pessoas terceiras, com a finalidade de isentar-se de eventual responsabilidade civil e/ou penal.

Entretanto, a Lei nº 9.708, de 18 de novembro de 1998, alterou o artigo 58 da Lei de Registros Públicos que previa essa imutabilidade, substituindo este adjetivo por “definitivo”, ficando, portanto, o prenome como definitivo, mas com possibilidade de alteração nos casos previstos em lei.

Ademais, a doutrina e a jurisprudência já permitiam mudanças e retificações no prenome no prenome além daquelas já conhecidas, quais sejam

(i) quando há erro de grafia;

(ii) exposição do portador do nome ao ridículo;

(iii) alteração por vontade do portador ao atingir a maioridade civil (artigo 56 da Lei de Registros Públicos);

(iv) alteração do nome pela adoção e reconhecimento de filho fora do casamento;

(v) alteração de nome pelo casamento, separação, divórcio e união estável;

(vi) adoção de apelido público e notório ao nome;

(vii) alteração do nome pela lei de proteção às testemunhas e às vítimas; e

(viii) alteração de nome por estrangeiros.

As alterações, portanto, se impunham no sentido de corrigir eventuais equívocos no nome e em outros casos que se tornassem prejudiciais à vida de seu portador.

Razoável, portanto, ressaltar-se que o objetivo do legislador, ao promover o prenome como imutável era o de, como dito anteriormente, “evitar que, por malícia, por interesse, por capricho ou qualquer sentimento menos nobre, se esteja a todo instante a mudar de nome” e que, assim, é possível que haja alteração do prenome, para que a exigência do assento de nascimento atenda a sua finalidade social.

Isto posto, adentraremos ao tema principal deste trabalho, qual seja a possibilidade de alteração do prenome a pedido de transexuais que se submeteram à cirurgia para adequação de gênero.

3.2.1. Alteração de prenome de transexuais

O pedido de alteração do prenome do transexual, com ou sem a feitura da cirurgia transgênera, não possui fundamento legal, havendo a necessidade de solicitação judicial, com decisão favorável transitada em julgado, para que possa haver a modificação do registro civil.

Entretanto, o transexual que requer a mudança de nome e gênero no registro civil pelas vias judiciais, fica a mercê de posturas, muitas vezes, conservadoras e preconceituosas exatamente por essa falta de previsão legal quanto à modificação no registro civil.

Felizmente, em muitos casos, a jurisprudência tem se mostrado progressista ao reconhecer ao transexual o direito a uma nova identidade sexual, mas ainda não consegue delimitar o alcance social dessa nova identidade.

No pensamento de Lívia Rocha:

Para os defensores da impossibilidade da alteração do registro público diante dos casos de transexualismo, a justificativa não é outra senão as características de imutabilidade e veracidade daqueles.

Assim, a regra trazida pela imutabilidade apenas apresenta flexibilidade diante dos casos previstos pela própria legislação, consoante apontamentos, sendo que ela não prevê, em nenhuma de suas exceções, a possibilidade de alteração diante dos casos de transexualidade, fato que sequer ultrapassou as barreiras do processo legislativo.

Contudo, há de se considerar a urgência quanto à integração dos indivíduos em sociedade, preservando sua dignidade e evitando maiores constrangimentos quanto ao seu prenome.

Os fundamentos jurídicos utilizados para sustentar a decisão de permissão de mudança de prenome, consistem, em especial, no artigo 3º da Constituição Federal de 1988 e nos artigos 4º e 5º do Decreto-Lei nº 4.657 (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro).

Assim sendo, tem-se evidente que a omissão legislativa não se apresenta como óbice no requerimento de alteração do prenome, sendo certo que a Constituição Federal garante a proteção aos princípios constitucionais básicos, como a dignidade da pessoa humana, direito a liberdade, à integridade física e psíquica, estando esses princípios diretamente ligados a alteração do prenome, devendo este ser compatível com a aparência física e estado psicológico do indivíduo, evitando a exposição ao escárnio.

Nas palavras de Rafael Pereira:

O nome existe para uma perfeita e exata identificação de uma pessoa na sociedade, não para causar-lhe constrangimento e situações vexatórias e preconceituosas.

Trata-se de um símbolo de personalidade do indivíduo que, além de produzir efeitos jurídicos, é capaz de particularizá-lo no seio social.

O mesmo é o posicionamento de Tereza Vieira, que expõe que “de nada adianta ostentar um prenome pelo qual não se é reconhecido, que não o identifica, que não exprime a verdade. O registro deve estar em consonância com a realidade”.

Nesse diapasão, Maria de Fátima assevera que tanto a doutrina quanto a jurisprudência estão mais favoráveis à alteração do prenome de transexuais nos registros públicos, sob os seguintes argumentos:

  • (i) O artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, constitui a dignidade humana como um dos fundamentos da República, assegurando o livre desenvolvimento da personalidade, “garantindo ao transexual o direito à cidadania e a posição de sujeito de direitos no seio da sociedade”;

  • (ii) A cirurgia de redesignação sexual possui caráter corretivo e não mutilador como antes era colocada;

  • (iii) Estando o direito ao próprio corpo integrando os direitos da personalidade, é direito do transexual buscar seu equilíbrio físico e psicológico, buscando o livre desenvolvimento de sua personalidade.

Ademais, a Lei de Registros Públicos, em seu artigo 58, aduz, conforme exposto anteriormente, que o prenome poderá ser substituído por apelidos públicos notórios.

Nesse aspecto, assevera Carlos Gonçalves que “se a pessoa é conhecida de todos por prenome diverso do que consta em seu registro, a alteração pode ser requerida em juízo, pois prenome imutável, segundo os tribunais, é aquele que foi posto em uso e não que consta do registro”.

Ora, o transexual, mesmo antes de submeter-se à cirurgia de redesignação sexual, claramente adotará um novo nome, sendo posto como apelido, com intuito de evitar o acanhamento perante a sociedade.

Por este “apelido”, será conhecido, equivalendo este à sua nova identidade sexual.

Portanto, poderia claramente pleitear a mudança de prenome utilizando-se deste artifício previsto em lei.

Ainda levando em consideração o exposto na Lei de Registros Públicos, o parágrafo único de seu artigo 55, que aduz que “Os oficiais do registro civil não registrarão prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores. (...)”, é correto afirmar que se afigura possível modificar o prenome suscetíveis de expor seu portador ao ridículo.

Desta feita, não há como negar que o indivíduo que possui uma aparência física, bem como uma identidade psíquica, diversa daquele prenome e gênero constantes em seu registro civil e documentos da vida pública, se encontrará em situação vexatória ao apresentar tais documentos contendo informações incompatíveis com seus aspectos físicos.

Portanto, é razoável admitir que haja a alteração de prenome do transexual para adequação das informações de seus documentos com sua nova realidade social.

Assim, tendo em vista que a função do nome é individualizar seu portador, devendo o registro civil apresentar situação verídica do indivíduo, não adequar os documentos de um transexual seria um atentado à veracidade das informações daquela pessoa, tolhendo seu direito à identidade e desfavorecendo sua integração social.

Por fim, quanto aos direitos de personalidade, cabe ampliarmos a discussão, elencando aqueles princípios inerentes ao ser humano, destacando sua ligação com a necessidade de alteração de prenome e gênero nos registros públicos de transexuais.

3.3. Direitos de personalidade e a Lei de Registros Públicos

Os direitos de personalidade fundamentais vêm previstos na nossa Constituição Federal vigente, em seu artigo 5º que, em seu caput, enumera-os em:

direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, além de discorrer sobre outros direitos nos incisos do referido artigo e em demais artigos contidos em seu corpo.

Entretanto, não se pode resumir os direitos de personalidade como apenas aqueles enumerados na Constituição Federal, posto que, além dos supracitados, as mais diversas doutrinas jurídicas enumeram variadas outras espécies destes direitos.

Os direitos de personalidade, nas palavras de Carlos Alberto Bittar, são:

(...) aqueles direitos essenciais, vitalícios e intransmissíveis, em regra, necessários e oponíveis ‘erga omnes’, que têm posição singular no âmbito dos direitos privados, por protegerem valores inatos, ou originários, da pessoa humana e, também, da pessoa jurídica, como a vida, a honra, a identidade, o segredo e a liberdade.

Portanto, tem-se que os direitos de personalidade constituem direitos inatos, inerentes à pessoa e à sua dignidade, sendo irrenunciáveis e intransmissíveis, conforme previsto no artigo 11 (onze) do Código Civil vigente.

Ademais, são dotados de determinadas características peculiares, quais sejam,

  • (i) generalidade, por serem outorgados a todas as pessoas, pelo simples fato de existirem;

  • (ii) extrapatrimonialidade, já que não possuem conteúdo patrimonial direto, aferível objetivamente;

  • (iii) indisponibilidade, por não poderem mudar de titular de forma alguma;

  • (iv) imprescritibilidade, posto não se extinguir pelo não-uso;

  • (v) impenhorabilidade;

  • (vi) vitaliciedade, sendo inatos e permanentes; e

  • (vii) absolutos, ou erga omnes, por serem oponíveis contra todos, impondo à coletividade o dever de respeitá-lo.

Para Carlos Alberto Bittar, os direitos de personalidade “são dotados de caracteres especiais, para uma proteção eficaz à pessoa humana, em função de possuírem, como objeto, os bens mais elevados da pessoa humana”.

Por essa razão é que estes direitos são intransmissíveis e indispensáveis, manifestando-se desde seu nascimento, conforme expõe o artigo 2º do Código Civil.

Ademais, podem-se dividir os direitos de personalidade em três grandes grupos, quais sejam:

  • (i) Os direitos físicos, que seriam aqueles referentes a componentes materiais da estrutura humana;

  • (ii) Os direitos psíquicos, sendo aqueles atinentes a elementos intrínsecos da personalidade; e

  • (iii) Os direitos morais, que seriam aqueles que dizem respeito a atributos valorativos da pessoa na sociedade.

Para melhor elucidar a questão dos direitos de personalidade e como estes influenciam na demanda da modificação de registro civil, em especial, quanto às mudanças requeridas por transexuais, detalharemos alguns desses direitos constitucionais com intuito de demonstrar a necessidade absoluta de haver a alteração de nome e gênero nos documentos civis dos transexuais, como medida para preservar, essencialmente, seu direito a uma vida digna, afastado dos escárnios advindos da sociedade.

3.3.1. Da dignidade da pessoa humana

A dignidade da pessoa humana é um princípio que consagra um valor cujo intuito é proteger o ser humano contra tudo que lhe possa levar ao menoscabo.

Não é vista por muitos autores como um direito, já que não está prevista pelo ordenamento jurídico e por tratar-se mais de um atributo inerente a todo ser humano, sendo considerada valor constitucional supremo.

Entretanto, neste trabalho, discorreremos sobre a dignidade da pessoa humana como um princípio, não apenas com o intuito de facilitar o entendimento, mas por crermos se tratar não apenas de um princípio, mas aquele que unifica todos os demais princípios e direitos fundamentais, servindo de critério vetor para a identificação destes, posto se tratarem de concretizações das exigências do princípio da dignidade da pessoa humana.

Nas palavras de Alessandro Siqueis:

Independente do referencial de que se parta, resta assente que a dignidade da pessoa humana deve ser fundamento para a convivência social.

Ser racional e ter autonomia estão na base da estrutura humana, ressalvando-se as hipóteses de privações.

Por ser assim, sabendo-se que o ser humano é digno e autônomo, deve se conferir a este a prerrogativa de ser e estar no mundo sem sofrer qualquer discriminação.

A realidade jusfilosófica deve se estruturar para o ser humano se realize em sua plenitude.

Para Fábio Comparato, a dignidade da pessoa humana resulta do fato de, por sua vontade racional, a pessoa vive em condições de autonomia, sendo capaz de guiar-se pelas leis que ele próprio edita, não derivando este princípio apenas do fato de ser considerado e tratado como um fim em si e nunca como um meio para a consecução de um resultado.

Neste diapasão, propôs Ingo Sarlet a seguinte definição para a dignidade da pessoa humana:

Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos.

Portanto, o princípio da dignidade da pessoa humana visa, acima de tudo, proteger o ser humano contra qualquer ação que atente contra seu bem estar, garantindo-lhe condições para levar uma vida digna.

Como já dito no decorrer deste trabalho, os transexuais vivem uma constante desarmonia entre seu psicológico e seu físico, luta que pode ser resolvida com a adequação do sexo biológico ao gênero com o qual se identifique.

Entretanto, a dor não é amenizada se o transexual não puder ter seus documentos adequados a sua nova realidade, permanecendo em constante situação degradante perante a sociedade.

Aduz Alessandro Siqueira que:

Ao tratar da transexualidade, é preciso se enfrentar, necessariamente, o conceito de dignidade da pessoa humana.

Diz-se isto em razão de a pessoa transexual ver sua felicidade associada a uma configuração diferente da que possui.

É de se considerar, assim, que, conquanto não se possa resolver a problemática na lógica do Direito Positivo – onde a resposta é oferecida a priori pelo sistema -.

É um fato que não pode ser ignorado, sob pena de o direito se tornar segregador.

Ignorar demandas desta ordem implicaria na negação da realidade psicofísica, fato que o regime da dignidade da pessoa humana repugna por representar afronta a seu núcleo fundamental.

Assim, torna-se clara a importância da concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, estando o transexual acobertado por este direito, sendo, portanto, sua proteção condição essencial à sua integridade psicofísica, pleno desenvolvimento e inclusão na sociedade.

3.3.2. Direito a identidade

O direito à identidade nada mais é que a individualização do ser humano perante a sociedade, possuindo cunho estritamente moral.

Esse direito é essencialmente representado pelo nome adquirido, essencialmente, com o registro de nascimento do indivíduo.

Sobre o direito à identidade, assevera Rubens França:

Sua importância prescinde de justificação, pois está na base do exercício de todos os demais direitos.

Na verdade, para que o sujeito de um direito, qualquer que seja, possa exercer esse direito de maneira pacífica e segura, é necessário que não haja dúvida sobre a sua identidade, de onde a relevância do direito a essa identidade.

Verifica-se que saber quem exatamente qual a própria identidade é requisito indispensável para que se possa existir a própria identificação.

Ora, é demasiado contraditório requerer que o indivíduo tenha absoluta certeza de sua identidade de gênero para depois tolher-lhe o direito a ver essa identidade registrada em seus documentos civis.

Nas palavras de Maria Helena Diniz:

Nos arts. 16 a 19, tutela o Código Civil o direito ao nome contra atentados de terceiros, tendo-se em vista que ele integra a personalidade, por ser sinal exterior pelo qual se individualiza a pessoa, identificando-as na família e na sociedade.

Reprime-se o abuso cometido por alguém que o exponha ao desprezo público ou ao ridículo, violando a respeitabilidade de seu titular, acarretando dano moral ou patrimonial, suscetível de reparação, mediante supressão de uso impróprio do nome ou indenização pecuniária.

Por conseguinte, não podemos esquecer que, além da identidade exposta pelo nome, também há a identidade sexual, “a qual integra um poderoso aspecto da identidade pessoal” tratando-se, também, de um dos direitos de personalidade, englobado pelo direito à identidade.

O direito à identidade sexual nada mais do que o “direito de parecer extremamente igual a si mesmo em relação com a realidade do próprio sexo, masculino ou feminino, ou seja, o direito ao exato reconhecimento do próprio sexo real, antes de mais nada na documentação contida no registro do estado civil”.

Portanto, razoável que, havendo o direito à identidade, resguardado pela Constituição Federal, é direito inerente ao transexual ter alterados seus documentos civis, adequando-os à sua realidade social.

3.3.3. Direito à integridade física e psíquica

De forma simplificada, podemos definir o direito à integridade física como aquele direito a ter seu corpo respeitado de forma ampla, além de compreender o modo físico de ser da pessoa, visando conservar o que é íntegro.

Nas palavras de Rita Leite:

Integridade, que significa inteireza, completude ou perfeição, vem a ser a qualidade daquilo que é íntegro, não tocado, completo, o que não sofreu diminuição e é suscetível de conservar-se perfeito, acabado, ou de desenvolver-se normalmente, porque está ileso.

Nesse diapasão, define-se direito à integridade psíquica como sendo aquele que protege a saúde mental do individuo, consistindo em manter a lucidez mental do ser, opondo-se a qualquer atentado que venha a atingi-lo.

Esse princípio é fundado na regra básica de convivência, expressa pela máxima neminem laedere, e visa à preservação da higidez física e intelectual da pessoa, possibilitando-lhe ter uma vida mais cômoda para o alcance de suas metas particulares.

Aqui, cabe-nos expor o seguinte questionamento: no caso dos transexuais, por haver uma característica mutilação de determinados órgãos, deve prevalecer o direito a integridade física ou a integridade psíquica?

Em nosso entendimento, parece mais adequado a conservação da saúde mental e emocional do individuo, posto que somente dessa forma, com a adequação entre o físico e seu psicológico, o transexual poderá apaziguar seu sofrimento.

3.3.4. Direito à liberdade

O direito à liberdade nada mais é que o “direito em poder a pessoa direcionar suas energias, no mundo fático, em consonância com a própria vontade, no alcance dos objetivos visados ”. É “o direito de cada um se manifestar consoante sua vontade”.

Portanto, esse direito sendo reconhecido aos transexuais, posto tratar-se de direito inerente previsto na Constituição Federal, dá-lhes o direito de apontar suas forças para alcançar uma meta particular – nesse caso, a amoldamento entre seu físico e seu psicológico, e posterior modificação de seus documentos.

Nas palavras de Carlos Alberto Bittar, “a ninguém cabe criar obstáculos à vida das pessoas, tolhendo-lhe a ação, sob pena de violar o direito em tela, oponível erga omnes”.

3.3.5. Direito à honra

Toda espécie de honra é elemento de cunho moral, integrando o rol dos direitos de personalidade e “por ele se procura proteger a dignidade pessoal do individuo, sua reputação diante de si próprio e do meio social no qual está inserido”.

Ademais, a honra pode ser considerada tanto como o valor moral íntimo do ser humano, como também a consideração da sociedade ou, ainda, a consciência da própria dignidade pessoal.

Portanto, levando-se esse direito ao quadro dos transexuais, sendo este individuo resguardado de direitos constitucionais, a não modificação da documentação da vida civil acarretaria na exposição do transexual ao ridículo perante a sociedade, denegrindo sua honra e indo contra o princípio do direito à honra.

3.4. Projetos de Lei alterando a Lei de Registros Públicos

Visando inserir o transexual no ordenamento jurídico pátrio, diversos foram os projetos de lei apresentados com a tentativa de regulamentar a documentação civil do transexual, entretanto, até o momento, mostraram-se todos infrutíferos.

O primeiro projeto de lei apresentado data de 1985, levava o nº 5.789 que propunha a inserção de um inciso VII no artigo 29 da Lei de Registros Públicos, permitindo o registro de sentenças que decidissem sobre a mudança de gênero e prenome, além de sugerir a alteração do artigo 59 da referida lei, ajustando a imutabilidade do prenome diante de cirurgia que implicasse na mudança de gênero.

Além de alteração na Lei nº 6.015/1973, o projeto também visava o acréscimo de um novo parágrafo ao artigo 129 do Código Penal, de forma a permitir a intervenção cirúrgica destinada à alteração do sexo, posto, como já dito anteriormente neste trabalho, a orientação do Conselho Federal de Medicina era de que a realização da cirurgia sem autorização judicial poderia acarretar em processo judicial por crime de lesão corporal.

Entretanto, o projeto foi arquivado em dois anos após sua proposição.

Cinco anos depois, no ano de 1992, o Deputado Antonio de Jesus apresentou à Câmara dos Deputados o projeto de lei nº 3.349, proibindo a alteração do prenome nos casos de indivíduos que sofreram intervenção cirúrgica para mudança de sexo.

Sua justificativa era embasada na ideia – errônea – de que a autorização da mudança de prenome por transexuais traria a necessidade de criar um terceiro gênero, já que estaríamos, de fato, reconhecendo a figura do transexual.

Felizmente, o projeto foi arquivado definitivamente em fevereiro de 1995.

No mesmo ano de 1995, novamente, o Deputado José Coimbra apresentou o projeto de lei nº 70, cujo objetivo era retomar o exposto em seu projeto anterior (PL nº 5.789/85), cuidando de acrescentar um novo parágrafo ao artigo 129 do Código Penal, de forma a permitir a intervenção cirúrgica destinada à alteração do sexo, desde que haja consentimento expresso da pessoa interessada e todas as cautelas imprescindíveis, como a realização de todos os exames médicos necessários, com parecer unânime da junta médica.

Além disso, também propunha a alteração da Lei de Registros Públicos, para possibilitar a adaptação de transformação física à realidade registral.

Pelo presente projeto de lei, o artigo 58 da Lei nº 6.015/73 passaria a vigorar com a seguinte redação:

Art. 58. O prenome será imutável, salvo nos casos previstos neste artigo.

§1º Quando for evidente o erro gráfico do prenome, admite-se a retificação, bem como a sua mudança mediante sentença do juiz, a requerimento do interessado, no caso do parágrafo único do art. 55, se o oficial não houver impugnado.

§2º Será admitida a mudança do prenome mediante autorização judicial, nos casos em que o requerente tenha se submetido a intervenção cirúrgica destinada a alterar o sexo originário.

§3º No caso do parágrafo anterior, deverá ser averbado ao registro de nascimento e no respectivo documento de identidade ser a pessoa transexual.

A nosso ver, apesar de promissor, esse projeto traz uma alteração prejudicial aos transexuais, que seria o constante no parágrafo 3º do artigo 58 da Lei de Registros Públicos, posto que, se alterado, o documento do indivíduo passará a constar sua condição de transexual, criando um “terceiro gênero” que não existe.

Esse projeto, atualmente, está aguardando apreciação no Plenário.

Dez anos após a apresentação do projeto de lei nº 70, foi apresentado à Câmara novo projeto, de nº 5.872/2005, pelo Deputado Elimar Máximo Damasceno.

Seguia o pensamento do projeto nº 3.349/1992, de autoria do Deputado Antonio de Jesus e visa à proibição da mudança de prenome em casos de transexuais, acrescentando parágrafo ao artigo 58 da Lei nº 6.015/73, ficando a redação da seguinte forma:

Art. 58 (...)

§1º A substituição do prenome será ainda admitida em razão de fundada coação ou ameaça decorrente da colação com a apuração de crime, por determinação, em sentença, de juiz competente, ouvido o Ministério Público.

§2º Não será admitida a mudança de prenome em casos de transexualismo. (NR)

Sua justificativa se dá em caráter religioso, conforme se demonstra em trecho do Projeto:

[os transexuais] Agem contra a sua individualidade mutilando os próprios caracteres sexuais, e ainda lhes são oferecidos a oportunidade de mudança de prenome. O transexual, em retirando os caracteres sexuais com os quais a natureza o contemplou, atira em Deus a sua revolta. Não podemos compactuar com esses descalabros. Urge que a lei impeça o Judiciário de permitir esses desatinos.

Vê-se que não há cabimento para um projeto cuja justificativa se paute em argumentos religiosos, tendo em vista tratar-se o Brasil de um país cujo Estado é laico. Esse projeto foi apensado ao referido projeto de lei nº 70.

Em 2008, a Deputada Cida Diogo apresentou o projeto de lei nº 2.976, cujo objetivo é acrescentar o artigo 58-A ao texto da Lei nº 6.015/73, criando a possibilidade das pessoas que possuem orientação de gênero travesti, masculino ou feminino, utilizarem em documentos oficiais, ao lado do nome e prenome, um nome social.

A redação do artigo 58-A seria a seguinte:

Art. 58-A. Qualquer cidadão com orientação de gênero travesti, masculino ou feminino, poderá requerer à autoridade pública expedidora o registro, no respectivo documento pessoal de identificação, de nascimento ou em qualquer outro documento oficial, ao lado do nome e prenome, de um nome social público e notório que identifique sua condição de gênero.

Esse projeto não merece prosperar, posto que o, no caso, travesti, continuaria sendo exposto ao escárnio e a situações vexatórias na sociedade, já que apresentaria tanto um prenome referente ao seu sexo biológico, quanto um referente ao seu sexo psicológico.

De nada valeria essa mudança, já que não alcançaria o objetivo de integrar o travesti na sociedade, com direito a viver uma vida digna, longe das humilhações advindas das contradições entre seu sexo biológico e psicológico.

Atualmente, esse projeto foi, também, apensado ao projeto de lei nº 70-B/95, que aguarda apreciação do Plenário.

Alguns anos depois, em 2011, o Deputado João Paulo Lima, apresentou o projeto de lei nº 1.281, que visa, da mesma forma que o projeto de lei nº 2.976/2008, acrescentar o artigo 58-A a Lei de Registros Públicos, mas possibilitando a troca do prenome de transexuais no registro civil independente de decisão judicial, desde a realização da mudança de sexo seja comprovada por laudos médicos competentes.

Da mesma forma que os anteriores, este projeto de lei foi apensado ao PL nº 70-B/95, o que pode ser prejudicial a um projeto consciente como esse, por tratar-se de formas diferenciadas de resolução da questão do prenome de transexuais.

Apenas 1 (um) ano após a exposição do projeto do Deputado João Paulo Lima, a Deputada Erika Kokay apresentou o projeto de lei nº 4.241/2012 à Câmara, onde apresentava uma nova lei que dispunha sobre o direito à identidade de gênero.

Nesse projeto, a Deputada expõe que:

Art. 2º. Toda pessoa tem direito:

I – ao reconhecimento de sua identidade de gênero;

II – ao livre desenvolvimento de sua pessoa de acordo com tal identidade;

III – de ser tratada de acordo com sua identidade de gênero e de ser identificada de acordo com ela.

Esse projeto inovou trazendo em seu texto a questão dos menores de 18 (dezoito) anos, visando esclarecer uma questão, até então, pouco debatida e comentada.

Entretanto, o projeto também prevê que o reconhecimento de identidade de gênero dependerá de ações judiciais e, ainda, que as intervenções e cirurgias decorrentes da identidade de gênero serão obrigatoriamente realizados pelo Sistema Único de Saúde – SUS, o que represente um grande retrocesso com relação aos direitos dos transexuais.

Este projeto, assim como os últimos, também foi apensado ao projeto de lei nº 70/95, o que mostra a total confusão quanto às propostas que foram apresentadas visando adequar a situação do transexual.

Apensados ao PL 70-B, estão projetos com os mais diversos tipos de pensamentos, que deveriam ser apreciados separadamente.

Passado 1 (ano), o Deputado Jean Wyllys, em conjunto com a Deputada Erika Kokay, apresentaram novo Projeto de Lei nº 5.002/2013, com objetivo de criar uma Lei de Identidade de Gênero – Lei João W. Nery –, onde expõe, em seu artigo 1º, o seguinte:

Art. 1º. Toda pessoa tem direito:

I – ao reconhecimento de sua identidade de gênero;

II – ao livre desenvolvimento de sua pessoa conforme sua identidade de gênero;

III – a ser tratada de acordo com sua identidade de gênero e, em particular, a ser identificada dessa maneira nos instrumentos que acreditem sua identidade pessoal a respeito do/s prenome/s, da imagem e do sexo com que é registrada neles.

Ainda, o projeto expõe que “toda pessoa poderá solicitar a retificação registral de sexo a mudança do prenome e da imagem registradas na documentação pessoal, sempre que não coincidam com a sua identidade de gênero auto-percebida”.

Entretanto, para requerer essa retificação registral, a pessoa deverá observar alguns requisitos, quais sejam:

  • (i) ser maior de 18 (dezoito) anos;

  • (ii) apresentar ao cartório que corresponda uma solicitação escrita, na qual deverá manifestar que, de acordo com a presente lei, requer a retificação registral da certidão de nascimento e a emissão de uma nova carteira de identidade, conservando o número original; e

  • (iii) expressar o/s novo/s prenome/s escolhido/s para que sejam inscritos.

Note-se que houve alguns avanços entre o projeto de lei 4.241/2012 e o projeto de lei nº 5.002/2013.

Primeiramente, o projeto expõe que não haverá mais necessidade de nenhum trâmite judicial ou administrativo para alteração do prenome em casos discordância por identidade de gênero, bastando comparar ao cartório, cumprindo os supracitados requisitos.

Ademais, o projeto também assevera que não deverá haver, nos novos documentos, ficando proibida qualquer referência à identidade de gênero anterior, salvo com autorização por escrito da pessoa trans ou intersexual.

Ainda, o projeto esclarece a questão da mudança nos registros de pessoas menores de 18 (dezoito) anos, bem como elucida que não haverá necessidade de qualquer tipo de diagnóstico ou tratamento psicológico ou psiquiátrico para as intervenções cirúrgicas totais ou parciais de transexualização e que estas deverão ser oferecidas tanto pelo SUS, quanto pelas operadoras definidas nos incisos I e II do § 1º do artigo 1º da Lei 9.656/98, por meio de sua rede de unidades convencionadas.

Por fim, o projeto também visa à alteração do artigo 58 da Lei de Registros Públicos, que ficaria redigido da seguinte maneira:

Art. 58. O prenome será definitivo, exceto nos casos de discordância com a identidade de gênero auto-percebida, para os quais se aplicará a lei de identidade de gênero. Admite-se também a substituição do prenome por apelidos públicos notórios.

Esse projeto havia sido apensado ao projeto anterior - 4.241/2012 -, entretanto, por estar este apensado ao PL 70-B, o Deputado Jean Wyllys solicitou a desapensação, posto o PL nº 70 dispor sobre intervenções cirúrgicas que visem à alteração de sexo, enquanto o PL 5002 trata da alteração da Lei de Registros Públicos, versando sobre o direito à alteração de prenome em decorrência de reconhecimento de identidade de gênero.

O requerimento foi deferido e o PL 5002 foi desapensado do PL 4241 (apesando ao PL 70).

Atualmente, este projeto que, a nosso ver, é o que mostra forma de resolução mais coesa com a atual situação do transexual, aguarda designação de Relator na Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM).


CONCLUSÃO

Levando-se sempre em conta, primeiramente, o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, após a feitura de estudos sobre a transexualidade, o que podemos concluir é que:

  1. 1. A bioética está intrinsecamente ligada com o biodireito, visando, acima de tudo, a busca pela proteção da pessoa humana, em especial, a proteção dos princípios constitucionais da vida e da dignidade da pessoa humana. Nesse rol devem estar inseridos os transexuais, que se baseiam na bioética para buscar a proteção aos seus direitos mais fundamentais, oferecendo-lhe base e suporte não apenas para a realização da cirurgia de redesignação sexual, mas também para a adequação de seus documentos ao sexo com o qual se identifica;

  2. 2. Não há um fator único que determine o sexo de um indivíduo, devendo ser considerados os aspectos biológicos, psicológicos, sociais, entre outros fatores, impossibilitando, assim, a identificação a priori da determinação de sexo quando do nascimento do indivíduo, sexo este que virá a ser determinado quando do desenvolvimento do ser;

  3. 3. O conceito de identidade sexual não se confunde com o de identidade de gênero, sendo de grande relevância para o estudo da transexualidade. A identidade sexual nada mais é do que a forma como nos sentimos afetivamente e sexualmente, enquanto a identidade de gênero é a relação entre a sexualidade e o sexo propriamente dito, onde uma pessoa com determinado sexo biológico possui um comportamento de gênero e uma vivência diversa de sua sexualidade;

  4. 4. Entende-se como transexual o indivíduo que vivenciam constante conflito entre seu sexo biológico e seu sexo psicossocial, ou gênero com o qual se identifica, manifestando intensa vontade de fazer parte do sexo oposto, desejando adequar seus sexos para amenizar os descompassos e angustias que essa discrepância lhe proporciona;

  5. 5. Importante salientar que utilizamos o termo “transexualidade” no lugar de “transexualismo”, por acreditar que esses indivíduos não sofrem de qualquer tipo de transtorno mental, e ser a transexualidade apenas uma forma de identidade de gênero, assim como a homossexualidade é apenas uma identidade sexual;

  6. 6. Frisa-se que o transexual não se confunde com nenhuma outra forma de identidade de gênero, como travestismo e o intersexualismo, apresentando inúmeras diferenças entre si;

  7. 7. Com a resolução do conselho federal de medicina, foi legalizada a cirurgia de redesignação sexual, deixando de ser considerada como crime de lesão corporal, previsto no artigo 129 do Código Penal e sendo, agora, vista como forma terapêutica de tratamento do transexual e não como forma de mutilação de partes do corpo, sendo uma modificação bastante benéfica aos transexuais, mostrando uma evolução no pensamento médico e social;

  8. 8. O direito à identidade sexual dos transexuais é direito de personalidade, essencial para o desenvolvimento da dignidade da pessoa humana, valor máximo colocado pela Constituição Federal de 1998. Aqui, inclui-se o direito de requerer a adequação de seus documentos com seu sexo psicossocial, visando uma diga digna, afastado dos escárnios sofridos pela sociedade;

  9. 9. Entretanto, atualmente, não existem espécies normativas que garantam ao transexual a alteração de seu prenome e gênero, havendo uma omissão legislativa quanto ao tema. Daí a importância dos projetos de lei apresentados, ainda sem nenhuma aprovação, que visam regulamentar a situação do transexual, que vive marginalizado por sua situação;

  10. 10. Enquanto não há a aprovação de nenhum dos projetos de lei atualmente em andamento, as lacunas legislativas vão sendo preenchidas por decisões judiciais, não se tratando de decisão unânime, ficando o transexual à mercê de posturas, por vezes, conservadoras e preconceituosas por parte dos magistrados;

  11. 11. Apesar de não haver uma uniformização das decisões judiciais, a jurisprudência tem se mostrado cada vez mais favorável aos requerimentos de alteração de gênero e nome de transexuais, bem como quanto à feitura da cirurgia de transgenitalização;

  12. 12. Como justificativas, estão a proteção aos princípios básicos constitucionais, como o princípio da dignidade da pessoa humana, o direito a integridade psíquica, à liberdade, à honra;

  13. 13. Feitas as modificações pertinentes aos registros civis dos transexuais, inegável a melhoria da condição de vida do transexual, posto não precisar mais ser exposto a situações vexatórias por conta da divergência entre seus documentos e sua pessoa; e

  14. 14. Por fim, estando o transexual sob a proteção constitucional, de nada adiantaria a previsão desses direitos se não lhes for dado concretude.

Portanto, a tutela do transexual busca, acima de tudo, seu bem-estar, promovendo sua dignidade e honra, alcançada apenas com a alteração de seu registro público, em consonância com sua identidade de gênero.


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Abstract: This study aims to analyze the issues raised in relation to sex reassignment surgery, in particular the reflections brought by the completion of this surgery in the legal framework. For this, we carried out a study of the laws of Brazil, existing doctrines that deal with the subject, where bioethics, in particular its principles, together with the constitutional principles provide the basis and support for transsexual not just about the making of surgery sex reassignment, but also about the adequacy of their documentation in civilian life. It is understood as transsexual those who experience a permanent conflict between their physical and psychological sex with a sex reassignment surgery only means of effective treatment. The surgery is ultimately resolving the conflict that affects the transsexual, repairing his suffering, allowing you to achieve a balance between their biological and their psychological, essential to the preservation of life, health, physical and mental integrity and personal well -being. Currently, it is recognized the right to change the given name and gender on her birth registration. However, not that it was unanimous position, the main jurisprudential currents as well as the number of bills - favorable and unfavorable to transgender - that seek to amend the Public Records Act. It is shown throughout the paper that there is a lack of legal provision for disciplinary matter, serving as a pretext for the exercise postures, sometimes conservative and prejudiced. Exceeded those points, we have that the only way to promote social inclusion of transsexuals will be with the actual change his civil registry, in addition to surgery for sex reassignment, thus preserving human dignity and the rights of personality inherent citizens.

Keywords: Transexuality. Gender reassignment. Bioethics. Constitutional principles. Sexuality.



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