A decisão dos pais de não vacinar os filhos e a proteção integral à crianças e adolescentes

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O poder familiar é um instituto que trata da relação jurídica entre pais e filhos. Para além de um mero poder, é também um dever, gera direitos e obrigações aos sujeitos que integram a relação jurídica: pai, mãe e filhos; filhos menores e não emancipados, independentemente da origem dessa filiação. É um poder-dever que os pais ostentam em relação a seus filhos menores, não emancipados, quanto à sua pessoa, quanto a seus bens, pois desse instituto resultam direitos pessoais e patrimoniais.

Segundo Maria Helena Diniz (2012, p. 1.197):

"O poder familiar consiste num conjunto de direitos e obrigações, quanto à pessoa e bens do filho menor não emancipado, exercido em igualdade de condições por ambos os pais, para que possam desempenhar os encargos que a norma jurídica lhes impõe, tendo em vista o interesse e a proteção dos filhos."

Conforme lecionada Maluf e Maluf[1], o poder família é considerado pela doutrina tradicional um múnus público, pois é um encargo atribuído aos pais enquanto os filhos forem menores de idades. Possui natureza jurídica de poder-dever haja vista ser um exercício atribuído aos pais para com seus filhos.

Sendo detentores do poder familiar, os pais têm o poder de tomar decisões sobre diversos aspectos da vida de seus filhos. Porém, essas decisões encontram limites em normas fundamentais que protegem os direitos das crianças e adolescentes, seja na Constituição Federal, seja no Estatuto da Criança e do Adolescente, seja nas diversas leis esparsas que tratam sobre direitos humanos voltados à crianças e adolescentes.

Atualmente, o direito brasileiro adota a Doutrina da Proteção Integral, consagrada no art. 227, caput, da CF/88, e incorporada ao art. 1º do ECA.

Art. 227, CF. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Art. 1º, ECA. Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.

Assim, passa-se a ter a busca pela proteção das crianças e adolescentes, reconhecendo-os como sujeitos de direito e garantias. E, conforme leciona Conrado Paulino[2], são direitos que cobram uma garantia máxima, justamente porque, de outro modo, não se teria acesso a um mínimo de direitos essenciais, que necessitem de proteção integral.

Dessa forma, quando falamos em vacinação, estamos falando em direito à saúde. Nesse ponto, podemos destacar que a saúde é um dos direitos que devem ser assegurados com absoluta prioridade às crianças e aos adolescentes.

A vacinação, de per si, já é considerada como obrigatória por lei, estabelecida no ECA e legislação esparsa, sendo seu descumprimento violação à direito fundamental à saúde.

Nesse ponto, vale ressaltar que o Direito à saúde é assegurado a todos e constitui dever do Estado, conforme o art. 196, da CF/88:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

De outro modo, podemos dizer que o direito à saúde tem proteção Constitucional no Direito brasileiro, sendo um direito fundamental integrante dos direitos sociais, sendo garantia de um dos principais componentes da vida.

Nesse deslinde, podemos falar de responsabilização nos casos do não cumprimento da vacinação obrigatória. Essa responsabilidade tem por base o vínculo jurídico entre pais e filhos menores, ou seja, o poder familiar que impõe aos pais e responsáveis várias obrigações.

Desde o século XIX as vacinas são usadas como medida de controle de doenças, sendo as principais responsáveis pela erradicação de várias epidemias. Existe um conjunto de sujeitos, sendo eles os pais e responsáveis, a sociedade e o Estado, que são responsáveis por garantir às crianças e adolescentes todos os meios necessários para a sua subsistência, seja no plano material ou moral, devendo ser assegurados os direitos e garantias a estes inerentes.

Nessa linha, o ECA estabelece em seu art. 4º, dentre outros direitos, o direito à saúde das crianças e adolescentes, que faz parte dos deveres da família, da sociedade e do Estado.

Observando o artigo 14, do ECA, percebemos que o legislador deixou claro sua intenção em dar proteção integral à crianças e adolescentes estabelecendo a obrigatoriedade da vacinação:

Art. 14. O Sistema Único de Saúde promoverá programas de assistência médica e odontológica para a prevenção das enfermidades que ordinariamente afetam a população infantil, e campanhas de educação sanitária para pais, educadores e alunos.

§ 1º É obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias.

O Poder Público tem a incumbência de penalizar os responsáveis que abusam de seus poderes, cabendo a ele aplicar medidas necessárias para manter as crianças e adolescentes seguras, podendo até suspender o poder familiar, conforme estabelecem os artigos 1.637 a 1.638 do CC/02, e artigos 22 e 24, do ECA.

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Art. 1.637. CC. Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder familiar, quando convenha.

Art. 22. ECA. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais.

Art. 24. ECA. A perda e a suspensão do poder familiar serão decretadas judicialmente, em procedimento contraditório, nos casos previstos na legislação civil, bem como na hipótese de descumprimento injustificado dos deveres e obrigações a que alude o art. 22.

Aqui devemos trazer à baila a atuação do Conselho Tutelar, que é responsável por zelar pelo cumprimento dos direitos das crianças e adolescentes, consoante estabelece o artigo 131 do ECA. É o Conselho Tutelar que é responsável por aplicar medidas específicas de proteção a fim que cesse a ameaça ou violação dos direitos das crianças e adolescentes.

Quando os pais ou responsáveis alegam que não vão vacinar seus filhos por questões filosóficas diversas, eles acabam por cometer uma ilegalidade, conforme leciona Rodrigo Haidar[3]:

Ilegalidade cometem os pais que se recusam a vacinar seus filhos. Porque, como consequência da visão negacionista, deixam de cumprir sua obrigação de zelar pela segurança e pela saúde dos menores e ainda prejudicam o exercício do direito à educação das crianças.

A jurisprudência também tem se posicionado sobre o tem nesse sentido, conforme se vê no Recurso Extraordinário nº 1267879/ SP:

Ementa: Direito constitucional. Recurso extraordinário. Repercussão geral. Vacinação obrigatória de crianças e adolescentes. Ilegitimidade da recusa dos pais em vacinarem os filhos por motivo de convicção filosófica. 1. Recurso contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) que determinou que pais veganos submetessem o filho menor às vacinações definidas como obrigatórias pelo Ministério da Saúde, a despeito de suas convicções filosóficas. 2. A luta contra epidemias é um capítulo antigo da história. Não obstante o Brasil e o mundo estejam vivendo neste momento a maior pandemia dos últimos cem anos, a da Covid-19, outras doenças altamente contagiosas já haviam desafiado a ciência e as autoridades públicas. Em inúmeros cenários, a vacinação revelou-se um método preventivo eficaz. E, em determinados casos, foi a responsável pela erradicação da moléstia (como a varíola e a poliomielite). As vacinas comprovaram ser uma grande invenção da medicina em prol da humanidade. 3. A liberdade de consciência é protegida constitucionalmente (art. 5º, VI e VIII) e se expressa no direito que toda pessoa tem de fazer suas escolhas existenciais e de viver o seu próprio ideal de vida boa. É senso comum, porém, que nenhum direito é absoluto, encontrando seus limites em outros direitos e valores constitucionais. No caso em exame, a liberdade de consciência precisa ser ponderada com a defesa da vida e da saúde de todos (arts. 5º e 196), bem como com a proteção prioritária da criança e do adolescente (art. 227). 4. De longa data, o Direito brasileiro prevê a obrigatoriedade da vacinação. Atualmente, ela está prevista em diversas leis vigentes, como, por exemplo, a Lei nº 6.259/1975 (Programa Nacional de Imunizações) e a Lei nº 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Tal previsão jamais foi reputada inconstitucional. Mais recentemente, a Lei nº 13.979/2020 (referente às medidas de enfrentamento da pandemia da Covid-19), de iniciativa do Poder Executivo, instituiu comando na mesma linha. 5. É legítimo impor o caráter compulsório de vacinas que tenha registro em órgão de vigilância sanitária e em relação à qual exista consenso médico-científico. Diversos fundamentos justificam a medida, entre os quais: a) o Estado pode, em situações excepcionais, proteger as pessoas mesmo contra a sua vontade (dignidade como valor comunitário); b) a vacinação é importante para a proteção de toda a sociedade, não sendo legítimas escolhas individuais que afetem gravemente direitos de terceiros (necessidade de imunização coletiva); e c) o poder familiar não autoriza que os pais, invocando convicção filosófica, coloquem em risco a saúde dos filhos (CF/1988, arts. 196, 227 e 229) (melhor interesse da criança). 6. Desprovimento do recurso extraordinário, com a fixação da seguinte tese: É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, (i) tenha sido incluída no Programa Nacional de Imunizações, ou (ii) tenha sua aplicação obrigatória determinada em lei ou (iii) seja objeto de determinação da União, Estado, Distrito Federal ou Município, com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar.

(ARE 1267879, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 17/12/2020, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-064 DIVULG 07-04-2021 PUBLIC 08-04-2021)

Ante todo o conhecimento exposto, podemos concluir que as normas positivadas no nosso ordenamento jurídico impõe um poder-dever de garantir a observância dos direitos das crianças e dos adolescentes, praticando atitudes positivas, com a prática de atos que garantam a aplicação efetivas desses direitos, e negativas, com a abstenção de atitudes que agridam ou ponham em risco tais direitos.

Sendo assim, a melhor orientação a ser prestada é de que os pais devem vacinar seus filhos para não correrem risco de até chegar a perder o poder família sobre eles devido a ignorar os cuidados de segurança sanitários aos próprios filhos e à terceiros que, por ventura, possam se prejudicar diante da falta de imunização das crianças. A proteção integral deve ser aplicada independentemente de entendimentos filosóficos dos pais e, caso não venha a ocorrer a vacinação das crianças, o Poder Público, através do Conselho Tutelar, ou até mesmo do Ministério Público, vai atuar aplicando as medidas cabíveis para garantir a segurança e o bem-estar das crianças.

REFERÊNCIAS

Sobre a autora
Isabella Cristina Guilherme de Araújo

Possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2014). Advogada OAB/PE - Subsecção Olinda-PE. Tem formação em Mediação Judicial pela Escola Judicial do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) (2017) e atuação como Conciliadora Judicial Voluntária no TJPE (2016-2019). Pós-graduada em Direito Público pelo Instituto Pan Americano de Educação, Ciências e Cultura - Faculdade Novo Horizonte em (2019-2021). Membro da Comissão de Mediação, Arbitragem, Conciliação e Direito Sistêmico da OAB/PE Subsecção Olinda (2019-2020). Conciliadora Judicial – CNJ. Pós-graduada em Direito de Família e Sucessões pelo Centro Universitário UniDom Bosco em parceria com Meu Curso (2021-2022).

Informações sobre o texto

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