ESTATUTO DA FAMÍLIA E A CAMISA DE FORÇA: POR UMA ANÁLISE MULTIVIDENCIAL DA UNIDADE FAMILIAR

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O objetivo deste trabalho é analisar o projeto de lei nº 6.583/2013, que, impulsionado por lideranças políticas de segmentos sociais conservadores e religiosos, pretende instituir um conceito legal restritivo e excludente de família.

ESTATUTO DA FAMÍLIA E A CAMISA DE FORÇA: POR UMA ANÁLISE MULTIVIDENCIAL DA UNIDADE FAMILIAR

FAMILY STATUS AND THE STRAITJACKET: TOWARDS A MULTIVARIATE ANALYSIS OF THE FAMILY UNIT

 

Murilo Francisco Centeno[1]

Wellington Magalhães[2]

Tarsis Barreto Oliveira[3]

 

RESUMO

O objetivo deste trabalho é analisar o projeto de lei nº 6.583/2013, que, impulsionado por lideranças políticas de segmentos sociais conservadores e religiosos, pretende instituir um conceito legal restritivo e excludente de família. A proposta legislativa em referência, intentando instituir o chamado Estatuto da Família, restringe o conceito de entidade familiar ao núcleo de convivência calcado no casamento ou união estável entre um homem e uma mulher, bem como ao agrupamento constituído por qualquer dos pais e seus descendentes, excluindo os demais formatos de núcleos familiares, a exemplo dos alicerçados em uniões homoafetivas.

Palavras-chave: Diversidade de gênero; Estatuto da Família; relações homoafetivas.

ABSTRACT

The objective of this paper is to analyze the bill No. 6.583/2013, which, driven by political leaders of conservative and religious social segments, intends to institute a restrictive and exclusionary legal concept of family. The legislative proposal in reference, intending to institute the so-called Family Statute, restricts the concept of family entity to the nucleus of coexistence based on marriage or stable union and to the group consisting of either parent and their descendants, excluding other formats of family units, such as those based on homosexual unions.

Keywords: Gender diversity; Family Statute; homo-affective relationships.

1. INTRODUÇÃO

O artigo empreende uma abordagem descritiva dos diversos modelos contemporâneos de família, assim como da discussão social que envolve o efetivo reconhecimento desses arranjos afetivos como entidades familiares legítimas, enfocando, nesse contexto, o teor e os reflexos pragmáticos do Projeto de Lei n.º 6.583/2013. Impulsionado por lideranças políticas de segmentos sociais conservadores e religiosos, o citado projeto pretende instituir um conceito restritivo e excludente de família. Com o objetivo de instituir o chamado Estatuto da Família, restringe o conceito de entidade familiar ao núcleo de convivência calcado no casamento ou união estável entre um homem e uma mulher, bem como ao agrupamento constituído por qualquer dos pais e seus descendentes, excluindo os demais formatos de núcleos familiares, a exemplo dos alicerçados em uniões homoafetivos.

Ao longo desse trabalho buscaremos discutir e avaliar a pertinência, adequação e compatibilidade dessa proposta com o exigível respeito ao multiculturalismo, à diversidade e à necessidade de afirmação concreta dos direitos humanos, sobretudo em uma sociedade pluralista constituída a partir de um Estado laico e que preconiza a proteção à dignidade da pessoa humana. Para isso empreendemos pesquisa de cunho bibliográfico, a partir da qual reunimos elementos de informação que servirão de subsídios a uma exposição sequenciada em três partes: as premissas históricas de constituição da família e a diversidade dos modelos atuais; a aceitação social e o reconhecimento jurídico da multiplicidade dos tipos de família; e, por fim, o Projeto de Lei nº 6.583/2013 e sua (in)validade em face dos valores consagrados na Constituição Federal e nos tratados internacionais de direitos humanos.

2. AS PREMISSAS HISTÓRICAS DE CONSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA E A DIVERSIDADE DOS MODELOS ATUAIS

O problema trazido nesta pesquisa envolve a definição do conceito de família, recomendando-se a análise histórica do tema. Ainda que o ponto de partida não tenha como foco estabelecer definições ou critérios conceituais estanques, somente a compreensão da família como realidade temporal nos permitirá alcançar um conceito próximo e não definitivo, no esforço de traduzir a sua dimensão. Isso por conta da complexidade do contexto histórico, social, jurídico, político e econômico em que a família se insere. Com efeito, a definição de família retrata a assimilação de uma manifestação social de múltiplas faces, nem sempre coincidentes (DEL VAL, 2004).

Assim, pode-se partir de um conceito de família a partir de três abordagens distintas. A primeira delas diz respeito à perspectiva filosófica, cujo itinerário perpassa a análise de Platão em sua base fundacional. Num segundo momento buscaremos compreender a família inserida num contexto de submissão ao Sagrado e ao religioso. A terceira perspectiva diz respeito à família genuinamente burguesa, nascida com a revolução industrial e tornada modelo ideal posteriormente positivado.

O conceito de família não é algo decorrente do Estado. Trata-se de uma realidade de fato e de ações, de interação entre pessoas que se ligam umas às outras por um vínculo não efêmero de afetividade. Ao buscarmos o conceito de família entre os antigos, pouco ou quase nada é possível encontrar a respeito, tal como concebido hodiernamente. O que temos em verdade são textos que tratam da participação dos cidadãos na vida da Polis. O que de início chama atenção nesses escritos é a superioridade do homem quando relacionado à mulher e aos filhos, eis que o homem é tido como o forte, incumbido do dever de proteger e resguardar a prole (PLATÃO, 2015).

Glauco - O que teriam a temer?

Sócrates - Nada. Mas vês a razão?

Glauco - Com efeito, toda a cidade presta assistência a cada um desses particulares.

Sócrates - Bem pensado. Mas se um deus, afastando da cidade um desses homens que têm cinqüenta escravos, o transportasse, com a sua mulher, os filhos, os seus bens e servidores, para um deserto, onde não pudesse esperar auxílio de nenhum homem livre, não achas que viveria numa extrema e contínua apreensão de morrer às mãos dos escravos, ele e toda a sua família?

Glauco - Com certeza, a sua apreensão seria extrema.

Sócrates - Não seria aí forçado a lisonjear alguns deles, a aliciá-los com promessas, a libertá-los sem necessidade, enfim, a tomar-se adulador dos seus escravos?

Como se vê, para além de ocupar uma posição de destaque na administração da política e da Polis, ao homem também é lançada a incumbência de proteger a família, assim compreendida como o homem, a mulher e os filhos. Essa concepção de família, fortemente marcada pela superioridade do Homem Guerreiro, descreve muito as referências que podemos ter acerca do conceito de família entre os gregos (PLATÃO, 2015): uma família patriarcal, formada pela união de um homem com uma mulher, onde àquele incumbe o papel de proteção e defesa da prole, competindo à mulher o papel de procriar e cuidar dos filhos, como também dos afazeres domésticos.

De outro lado, desde os escritos mais antigos, essa tal superioridade masculina frente ao sexo feminino sempre foi uma marca de distinção. Se na filosofia grega a superioridade do homem se sobrepunha pelos atributos inerentes à administração e defesa da Polis, numa perspectiva teológica tal superioridade surgirá pela culpabilidade da mulher no que tange ao pecado original. Contudo, não se pode dizer, a partir dessa compreensão, que a superioridade masculina tenha surgido com o discurso religioso, pois certamente quem o escreveu estava tão somente retratando algo que já fazia parte da cultura vigente (BUSIN, 2011).

Enquanto que na filosofia grega o parâmetro de definição da família se concentra na figura masculina como protetor e defensor da prole; na visão religiosa um aspecto de maior relevância será colocado à prova: a sexualidade. Ao vê-la como algo intrinsecamente mal, inclusive por vinculá-la com a construção e o discurso do pecado original que fez o homem e a mulher sentirem vergonha da própria nudez, a visão da sexualidade segundo o Evangelho moldará a dualidade masculino vs. feminino, especialmente pelo controle dos institutos sexuais. Desse modo, concebida como o lócus privilegiado de propagação de seus valores, a família passará então a ser a aliança entre a Igreja e a sociedade; e o sexo apenas uma atributo de procriação e perpetuação da espécie (BUSIN, 2011). Sob essa perspectiva, a família se constrói pela união indissolúvel, heterossexual, monogâmica e destinada à reprodução humana sob o Sagrado. Esse modelo familial é marcado pela dimensão pública masculina em contraste com a redução do papel da mulher aos afazeres domésticos (NEGREIROS & FÉRES-CARNEIRO, 2004).

Uma terceira abordagem sobre a definição de família remonta aos históricos da Revolução Industrial (Séc. XVIII) e ao surgimento da burguesia. Influenciada pelos avanços da ciência, a atividade econômica que até então se fundava em núcleos familiares passou a se constituir em grupos empresariais, nascedouro da burguesia e responsáveis pela produção. Com isso foi se enfraquecendo o núcleo duro da sociedade, i. e., a família patriarcal alicerçada na rígida divisão de tarefas, como acima explicado.

A família patriarcal, produto da revolução industrial e do surgimento da burguesia, caracteriza-se pelo amor conjugal e entre pais e filhos, a monogamia, a fidelidade, o cuidado intenso da prole no sentido de protegê-la e educá-la de acordo com os princípios da moral, da higiene e dos bons costumes. Enfim, é o lugar de refúgio, de proteção, de lealdade e amor, respeito à autoridade do pai, provedor e responsável pelo bem-estar da família. Esse modelo, inicialmente restrito à burguesia, passa a ser um ideal para a classe operária após o primeiro período da industrialização e se dissemina como representação social da família e modelo idealizado da mesma (MACEDO, 1994).

Com a revolução industrial e mais recentemente os avanços da globalização, a família passa a ser objeto de uma análise de interações sociais que se estabelecem entre seus indivíduos que, a propósito, são colocados à frente do grupo. A presença da mulher no mercado de trabalho passa a ser crescente. A manutenção do grupo familiar a partir de então já não subsiste face à infelicidade de seus integrantes. Com o aumento da expectativa de vida e os ganhos de produtividade, uma marca das sociedades globalizadas, o individuo exige agora ser feliz e gozar dos prazeres da vida. O grupo e a família já não são indispensáveis nesse contexto (CARVALHO & ALMEIDA, 2003).

Esse processo aumenta a demanda por liberdade e inconformismo com as normas prescritas socialmente. Assim se intensifica o descrito pelas normas institucionais sobre o comportamento da pessoa. Isso vai promover uma multiplicação dos modelos pelos quais as pessoas resolvem se estabelecer em uniões afetivas, abandonando, por consequência, o modelo tradicional ou socialmente imposto. (DEL VAL, 2004).

A discussão em torno da definição do conceito de família já não se restringe ao problema da distribuição de papeis entre o homem e a mulher. Não é mais uma questão de defesa e proteção, de sagrado ou promíscuo. A nova quadra sobre o conceito de família se faz pelo discurso da afetividade, da busca da felicidade, da diversidade de gênero e do respeito às minorias.

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3. ACEITAÇÃO SOCIAL E RECONHECIMENTO JURÍDICO DA MULTIPLICIDADE DOS TIPOS DE FAMÍLIA

Segundo escreve Del Val (2004), vivemos numa época em que as pessoas têm se desprendido dos vínculos normativos e institucionais, dos credos e das normas reguladoras de comportamento. Esse novo tempo é marcado pela crescente autonomia da vontade individual. Nesse contexto, a definição de família já não se assenta nos modelos tradicionais. Urge agora que nos esforcemos por buscar uma nova compreensão do que vem a ser família, sob pena do não reconhecimento dos direitos de grupos minoritários e eventualmente excluídos da moldura jurídica positivada. Como nos adverte Vieira (2013), para questionar a alteridade a partir dela, urge aprender com o outro antes de o questionar, e, muito menos, valorar.

A definição do conceito de família não pode estar vinculada a uma visão estritamente jurídica da realidade. O modelo positivista, antes de nos ajudar, age como camisa de força, que nos impõe um tipo de viseira redutora da realidade. Com essa camisa de força e com a visão reduzida da realidade, as pessoas descobriram que tinham muitas dúvidas sobre como definir família, especialmente pelo avanço das interações e práticas sociais com foco no grupo de pessoas de algum modo ligadas por um sentimento de afeto contínuo no tempo. É preciso pensar que além do arranjo normativo outros arranjos, outras possíveis estruturas familiares são capazes de ordenar práticas e dar sentido à existência. (FONSECA, 2005).

Nesse sentido, percebemos que a transição de um modelo a outro de organização familiar evidencia a debilidade do sistema de rigidez da família patriarcal, assim compreendida como sendo aquela fundada na figura do chefe de família, que tinha o múnus público de proteger e prover o grupo familiar. Na medida em que esse modelo cede espaço a novos formatos de família, a exemplo das uniões homoafetivas, assistimos também a uma reformulação do papel do individuo na organização familiar, agora orientada pela igualdade e reconhecimento da diversidade (DIÁS, 2003).

Não obstante os avanços em termos de reconhecimento dos direitos das minorias, ou mesmo de igualdade entre homens e mulheres, há muito ainda a ser feito. Essa luta é inacabada e não comporta descansos frente às conquistas singulares (TESÓN, 2011). Segundo Berger (1999), na cena religiosa internacional da atualidade, os movimentos conservadores ortodoxos ou tradicionais estão crescendo em quase toda parte do mundo, razão por que entende ser falsa a suposição de que vivemos numa realidade totalmente secular.

Ou seja, a counter-secularization é um fenômeno ao menos tão importante no mundo contemporâneo quanto a secularization, cujos efeitos já podem ser sentidos na política internacional, designadamente nas questões que envolvem os direitos humanos e a justiça social. Nas palavras de Machado (1996), a dessecularização traduz-se no ressurgimento do fenômeno religioso no espaço público, nacional e internacional, e anda associada à crescente insatisfação perante as explicações naturalistas do Universo e da vida e à incerteza crescente as quais envolvem o ambiente natural, a economia e o futuro.

A Igreja Católica, por exemplo, sempre teve uma postura de desconfiança em relação ao mundo moderno, não somente em termos de família e sexualidade, mas também em relação à cultura de consumo, o que também é verdade para os setores evangélicos mais tradicionais, que continuam se opondo à cultura moderna como um todo. No mesmo sentido, tem-se também a resistência dos evangélicos aos novos modelos de família. Conforme escreve o autor, contra uma sociedade que culpabiliza, criminaliza e até demoniza os pobres os consumidores falhos , as comunidades evangélicas que assumem a teologia da prosperidade afirmam a dignidade humana dos pobres através de uma linguagem religiosa tradicional. (SUNG, 2015).

Em termos gerais, família é a unidade social com maior grau de responsabilidade para com as gerações futuras. É no seio da família que as crianças são educadas e a quem são transmitidas as primeiras noções de uma cultura que se propaga no tempo. A família, como escreve Macedo (1994), é um poderoso agente de manutenção ou transformação cultural. É a família que situa e legitima o indivíduo em seu espaço social. Por isso a importância de sua compreensão não excludente. Na medida em que se cria uma moldura jurídica, uma camisa de força, de modo a afastar realidades sociais da compreensão do termo família, promove-se verdadeiramente a exclusão e a marginalização de pessoas. Por isso a importância de um conceito abrangente ou inclusivo de família, diversamente do caminho trilhado no Projeto de Lei nº 6.583/2013.

4. O ESTATUTO DA FAMÍLIA E O CONCEITO EXCLUDENTE DE FAMÍLIA

Por iniciativa parlamentar do então Deputado Anderson Ferreira, integrante do Partido da República (PR) e eleito pelo Estado de Pernambuco (PE), tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei n.º 6.583, de 16 de outubro de 2013, que dispõe sobre o Estatuto da Família e adota outras providências. Ao que se verifica, a referida propositura pretende incluir no plano jurídico-positivo um diploma legal que, fundamentalmente, estabeleça os direitos da família, fixando, nesse contexto, as diretrizes para as políticas públicas de valorização e apoio à entidade familiar. A fim de precisar os titulares dos mencionados direitos e destinatários das políticas públicas referenciadas, o Projeto de Lei n.º 6.583/2013 veicula, preliminarmente, a definição de entidade familiar, intencionando, pois, instituir o conceito legal de família.

Art. 2º. Para os fins desta Lei, define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. (BRASIL L. , 2013)

Ocorre que, ao propor tal conceituação, o Projeto de Lei mencionado apresenta um conceito notadamente restritivo e excludente de família, restringindo a compreensão de entidade familiar ao núcleo de convivência calcado no casamento ou união estável entre homem e mulher, bem como ao agrupamento constituído por qualquer dos pais e seus descendentes. Com efeito, nos estritos termos da proposição, apenas seriam reconhecidos e inclusos no conceito legal de entidade familiar as chamadas famílias tradicionais e as monoparentais, com exclusão da multiplicidade dos demais arranjos convivenciais que, alicerçados no afeto, integram a diversidade contemporânea dos modelos de família, a exemplo das uniões entre pessoas do mesmo sexo as chamadas uniões homoafetivas.

A restrição empreendida, que à primeira vista poderia ser reputada acidental ou decorrente de uma descuidada construção redacional, decorre, em verdade, de um propósito consciente ou deliberado de circunscrever o reconhecimento familiar apenas aos agrupamentos enunciados no texto apresentado, com a prioritária intenção de negar reconhecimento familiar às uniões assinaladas pela homoafetividade. O intento firme e inequívoco de proceder a essa exclusão é motivado por crenças ou convicções religiosas, restando declarado nas entrevistas, audiências públicas e debates parlamentares que contaram com a participação do autor da propositura e demais integrantes da chamada Frente Parlamentar Evangélica, a qual tem impulsionado a matéria e trabalhado pela rejeição de emendas ao texto voltadas à ampliação do discutido conceito legal de família, aliando valores morais religiosos à atuação parlamentar, com percepções um tanto quanto conservadoras e discriminatórias quanto à homoafetividade, considerada por ela como uma infração às leis universais da natureza (AQUINO, 2005).

Essa inclusão de juízos morais de ordem religiosa na esfera pública, pautando a atuação parlamentar, é inadequada e de todo incompatível com um Estado laico como a República Federativa do Brasil, cujas ações devem ser isentas e não orientadas por valores ou crenças particulares de determinadas religiões. Nessa perspectiva, é evidente que o comprometimento da laicidade do Estado pela inclusão de crenças pessoais no exercício das funções públicas e políticas, além de representar uma prática impertinente, conduz fatalmente à promoção de preconceitos, ao fomento de desigualdades e, sobretudo, à restrição de direitos essenciais de minorias ou grupos não simpáticos às hegemonias religiosas as quais acabam por impor à coletividade os postulados de uma religião ou crença professada apenas por alguns. Nesse sentido são as palavras de Diniz (2013, p. 5):

O Estado laico é quem nos protege da hegemonia moral da maioria. Em matéria de crenças não há maioria: há sempre qualquer minoria com igual direito de representação, proteção e participação. Em matéria de crença privada não há plebiscito. Não importa se já vivemos em um país de maioria evangélica, ou se ainda somos um gigante país católico: os espíritas e budistas têm igual direito de presença e proselitismo na vida comum. Votamos por maioria, mas podemos crer como minoria.

Os múltiplos modelos de família, dentre os quais figuram as uniões familiares homoafetivas, constituem uma realidade presente na sociedade brasileira, que se pretende democrática e multicultural, alicerçada em valores como a liberdade, igualdade, respeito ao pluralismo, vedação às discriminações e indistinta proteção à dignidade da pessoa humana nos termos da Carta Constitucional vigente e dos tratados internacionais de direitos humanos que lhe são aplicáveis, a exemplo do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos[4] e da Convenção Americana de Direitos Humanos[5], os quais coexistem na ordem jurídica com status supralegal, estando, pois, acima da legislação interna e abaixo apenas da Constituição Federal. Com efeito, assim como a Constituição Federal subordina a legislação infraconstitucional, os tratados internacionais relativos a direitos inerentes à condição humana também operam a paralisação da eficácia das normas legais que com eles sejam conflitantes ou incompatíveis, vez que a legislação interna deve guardar uma relação de compatibilidade vertical com as normas supralegais e constitucionais.

A prevalência dos direitos humanos demanda diálogo e interação jurisdicional na escala global. Aos órgãos estatais nacionais, nomeadamente ao Judiciário nacional não é dado o direito de isolar-se numa argumentação jurídica equivocada, que despreza os diversos olhares da humanidade. Desse modo, não basta controlar a constitucionalidade sem observar a convencionalidade.

Como nos afirma Bachof (2008, p. 11), a permanência de uma Constituição depende em primeira linha da medida em que ela for adequada à missão integradora que lhe cabe face à comunidade que ela mesma constitui. Disso resulta que nenhum controle de constitucionalidade, difuso ou concentrado, está alheio ao controle de convencionalidade das normas instituídas no bojo de uma comunidade global alinhada aos valores da dignidade humana. É nesse contexto que qualquer discriminação de gênero, nomeadamente no que tange aos direitos das minorias, deve ser objeto de destaque, de modo que não se venha praticar violações aos direitos humanos sob as vestes de uma proteção que na verdade se faz violadora.

De tal sorte, é inadmissível excluir de um eventual conceito legal de família, como se pretende, os arranjos afetivos de convivência amparados pela ordem jurídica constitucional e internacional, sobretudo considerando que os núcleos de convivência alicerçados em uniões homoafetivas foram efetivamente reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal como legítimas entidades familiares, tal como a união entre homem e mulher. Com efeito, desde 2011, por ocasião do emblemático julgamento conjunto da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277 e da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132, a Suprema Corte brasileira conferiu interpretação conforme à Constituição ao art. 1.723 do Código Civil, enfatizando que os mesmos direitos e deveres conferidos aos heterossexuais que convivem em regime de união estável são extensíveis, sem distinção, às uniões entre pessoas do mesmo sexo.

Segundo expressões do julgado, o sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. Além disso, o concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais, de modo que a opção do individuo não pode ser, de modo algum, instrumento de marginalização ou exclusão do lócus de proteção jurídica. Nesse sentido, a Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão família, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa (STF, 2011).

Como é perceptível, o Projeto de Lei n.º 6.583/2013 tramita na contramão da interpretação constitucional promovida pelo órgão de cúpula do Poder Judiciário nacional, pretendendo excluir do conceito de entidade familiar determinados núcleos de convivência afetiva que a própria Constituição Federal nos termos da leitura empreendida pelo Supremo Tribunal Federal reconhece como tal.

O artigo segundo desse estatuto, que define família como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes faz um excelente trabalho em limitar profundamente aquilo que já se entende como família. O critério de núcleo fundado pela realização do afeto e da dignidade de seus membros, tão explicitamente colocado na decisão do Supremo Tribunal Federal, foi nesse estatuto substituído por um critério medíocre, de mera união entre pares do sexo oposto. (TRINDADE, 2015, p. 61)

Em sendo assim, o conceito reducionista contido na propositura em discussão, ainda que aprovado, nascerá inválido por força da inconstitucionalidade material que o inquina, representada pela ausência de compatibilidade vertical entre a apresentada definição de família e os valores consagrados na Constituição Federal. Nessa esteira, em jeito de finalização e oportunamente, será imperiosa a adoção de pertinentes providências destinadas a conferir ao discutido conceito legal uma interpretação consonante com a Carta Maior, tal como ocorreu com art. 1.723 do Código Civil no julgamento alhures mencionado, a fim de se estender às uniões homoafetivas e demais formatos contemporâneos de núcleos familiares os direitos e as diretrizes para as políticas públicas que o Estatuto da Família contemplará.

5. CONCLUSÃO

O conceito legal de entidade familiar contido no Projeto de Lei do Estatuto da Família é impertinente, inadequado e incompatível com o respeito ao multiculturalismo e à diversidade. A conceituação proposta pretendendo restringir o conceito de família ao núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, assim como ao agrupamento constituído por qualquer dos pais e seus descendentes afronta sensíveis valores consagrados na ordem jurídica constitucional e internacional vigente, marginalizando os demais arranjos familiares existentes na sociedade contemporânea.

Definitivamente, o reconhecimento da diversidade de modelos de família, em especial das famílias homoafetivas, é um imperativo decorrente dos postulados que preconizam o respeito à liberdade, à igualdade, ao pluralismo, verberando a vedação às discriminações e conferindo proteção integral à dignidade da pessoa humana. Com maior propriedade, a legitimidade das famílias homoafetivas e dos demais agrupamentos diversos das chamadas família tradicional e monoparental encontra, pois, ressonância na vontade constitucional, vontade que, para a felicidade da sociedade, é suprema e oponível a todos os demais desígnios, não comportando redução através de normas infraconstitucionais ou em função de crenças ou convicções religiosas pertencentes a grupos hegemônicos.

 

REFERÊNCIAS

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BUSIN, V. M. Religião, sexualidade e gênero. Rever, n. 01, jan-jun. 2011.

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STF, J. (2011). ADI nº 4277-DF, Relator Min. Ayres Britto, julgado em 05 de maio de 2011.

  1. Especialista em Direito Administrativo pela UFT. Mestre em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos pela UFT/ESMAT. Procurador do Estado do Tocantins. Diretor Administrativo da Associação dos Procuradores do Estado do Tocantins. E-mail: [email protected]

  2. Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins. Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra e Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos pela Universidade Federal do Tocantins. E-mail: [email protected]

  3. Doutor e Mestre em Direito pela UFBA. Professor Associado de Direito Penal da Universidade Federal do Tocantins. Professor Adjunto de Direito Penal da Universidade Estadual do Tocantins. Professor do Mestrado em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos da UFT/ESMAT. E-mail: [email protected]

  4. O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos foi aprovado pelo Congresso Nacional em 12 de dezembro de 1991, havendo registro do depósito da Carta de Adesão ao tratado em 24 de janeiro de 1992, o qual entrou em vigor em 24 de abril do mesmo ano e restou promulgado pelo Presidente da República por meio do Decreto 592, de 6 de julho de 1992.

  5. A Convenção Americana Sobre Direitos Humanos obteve ratificação pelo Brasil, que depositou a respectiva carta de adesão em 25 de setembro de 1992 e promulgou o tratado por meio do Decreto 678, de 6 de novembro de 1992.

Sobre os autores
Wellington Magalhães

É juiz de direito do Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins (TJTO). Diretor adjunto da Escola Superior das Magistratura Tocantinense (ESMAT). Juiz eleitoral da 13ª Zona Eleitoral do Tocantins, coautor e coordenador do programa permanente de Inclusão Sociopolítica dos Povos Indígenas do Tocantins (TRE-TO). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra, Portugal (FDUC) e em Direitos Humanos e Prestação Jurisdicional pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). Atualmente cursa doutorado em Desenvolvimento Regional com ênfase na gestão sustentável dos recursos hídricos (UFT).

Tarsis Barreto Oliveira

Doutor e Mestre em Direito pela UFBA. Professor Associado de Direito da UFT. Professor Adjunto de Direito da UNITINS. Professor do Mestrado em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos da UFT/ESMAT. Membro do Comitê Internacional de Penalistas Francófonos e da Associação Internacional de Direito Penal.

Murilo Francisco Centeno

Especialista em Direito Administrativo pela UFT. Mestre em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos pela UFT/ESMAT. Procurador do Estado do Tocantins. Diretor Administrativo da Associação dos Procuradores do Estado do Tocantins.

Informações sobre o texto

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