Notas de leitura: revisitando a “Arte do Direito” (1949), de Francesco Carnelutti (1879-1965)

Revisita da obra "Arte do Direito", de Francesco Carnelutti

Leia nesta página:

Notas de leitura, revisitando o clássico "Arte do Direito", do professor italiano Francesco Carnelutti (1879-1965)

Notas de leitura: revisitando a “Arte do Direito” (1949), de Francesco Carnelutti (1879-1965)

Rogério Duarte Fernandes dos Passos

            Francesco Carnelutti, um dos mais ilustres juristas italianos no Século XX, nasceu em Udine, em 15 de Maio de 1879, e retornou para a pátria espiritual em Milão, em 08 de Março de 1965.

O texto de Francesco Carnelutti    

            Em a “Arte do Direito” (Arte del diritto, de 1949), obra redigida em castelhano – como “expansão da personalidade” (p. 9) –, sem deixar de prestar tributo ao amigo Vittorino Scialoja (1856-1933), Francesco Carnelutti divide a sua arte e estrutura o seu pensamento acerca do direito em seis eixos: direito, lei, fato, juízo, sanção e dever.

            Há aqui um relato, de certa forma, autobiográfico, filosófico-empírico e fruto da percepção da maturidade, assinalando em definitivo a experiência de muitas gerações futuras de operadores do direito que puderam travar contato com o texto.

            Sobre o direito, o mestre italiano o supõe como instrumento de ordenação do mundo, e, em exemplo de uma arte, uma verdadeira tékhne em face dos fenômenos sociais, de forma que em sua visão cristã, nas necessidades e possibilidades do ser humano, somente Deus as vê (p. 8).

            Crendo na fala como profunda expressão e encarnação do pensamento, Carnelutti o faz com genialidade por meio das palavras, comungando da indagação básica acerca da definição do direito com os jurisconsultos latino-americanos, ciente das dúvidas e transformações que se operam na mente com a passagem do tempo, algo que conduz à tentativa de plena significação (p. 13).

            Para o entendimento do direito, preciso é entender o Estado, segundo o jurista, com antecedentes na família – primas societas in coniugio est – e no pater famílias (p. 16), em argumentos que, por exemplo, podem amplamente ser resgatados e complementados na descrição das origens greco-romanas contidas em “A Cidade Antiga”, do historiador Fustel de Coulanges (1830-1889). No viés contemporâneo, porém, o direito revela-se como elemento fundamental para a existência do Estado, no que não se deve desprezar o adágio de “o bem do amado ser o bem do amante”, fortalecendo ânimo interior e coesão social (p. 18). Um Estado perfeito seria aquele que não mais necessitasse do direito (p. 18), trazendo-o no ínterim histórico e intermédio como o instrumento de correção de rumos.

            O direito é força, como a armação de uma ponte (p. 14), ainda que seja necessário especialmente porque os homens, enquanto não souberem amar, terão que ser obrigados (p. 20). Por conseguinte, a liberdade não é submeter os demais, mas a si mesmo, como que em resgate do adágio de autoconhecimento do filósofo ateniense Sócrates (ca. 470 a.C.-399 a.C.), enunciando uma reflexão sobre moralidade apta a pugnar o bem de todos.

            Superando então a tékhne e enveredando-se por um misto de memória e digressão estética, Francesco Carnelutti quase sintetiza de forma axiológica seu próprio escrito no seguinte excerto:

Justamente aqui está a diferença entre minha juventude e minha velhice de jurisconsulto. O jovem tinha fé na ciência; o velho a perdeu. O jovem acreditava saber; o velho sabe que não sabe. E, quando ao saber junta-se o saber que não sabe, então a ciência se torna poesia. O jovem contentava-se com o conceito de direito; o velho sente que neste conceito científico perde-se seu impulso e seu drama e, portanto, sua verdade. O jovem queria os contornos cortantes da definição; o velho prefere os matizes do paralelo. O jovem não acredita senão no que via; o velho só acredita no que não se pode ver (...) (p. 21).

            Para o entendimento da lei, Carnelutti não nega a sua ligação com a ideia de direito (p. 25). Contudo, se a lei é um conceito jurídico, não o é com exclusividade, pois enunciando diferentes processos se torna pertinente a outros ramos do conhecimento (p. 25), somando-se nesse escorço o fenômeno de construção de leis jurídicas e artificiais, que se põe por comparação e análise ao lado das leis naturais (p. 27).

            Para alcançar compreensão, o jurista italiano ressalta a aplicação de critério lógico, em que a conclusão não deve se sobrepor às premissas, seguindo-se, nesse ínterim, a crítica ao imperativo categórico de Immanuel Kant (1724-1804):

(...) O dever da lei natural é, precisamente, a ligação de duas premissas: uma, como dizem os jurisconsultos, de fato, e outra, de direito; o fato, que constitui o prius, e o vínculo, que constitui a lei: o fato é que um homem nasceu; a lei estabelece que os homens, que nasceram, morrerão; portanto, este homem, que nasceu, deve morrer. Ao contrário, o dever ser da lei moral carece de premissas; este modo de ser é, no fundo, o que Kant, sem entender com muita clareza a dificuldade, quer demonstrar falando da categorização de seu imperativo (p. 28).

            O remorso, outrossim, é arma do sentimento e do ser, em especial, para não se padecer do sofrimento em praticar o delito (p. 28), em imperativamente não se fazer o mal.

            A necessidade de julgar existe nos homens, em aspecto trágico da vida, devendo, porém, prevalecer o bem (p. 30). Talvez o ato de obedecer seja a chave para se superar a contradição, explicitando a natureza humana em sujeitos e objetos (p. 31). Mas é preciso realmente escutar – inclusive o silêncio –, dando vazão à voz da consciência (p. 31), guiando o semelhante ao trajeto seguro, o que não é outra coisa senão arte, em exemplo dos jurisconsultos romanos, que em grandeza soergueram pelo direito – transcendendo o tempo –, um lugar altivo na história e, segundo Carnelutti, não inferior à Atenas (p. 32).

            A alegoria construída em questionamento pelo mestre italiano é grandiosa:

(...) É por isso que a lei jurídica, mais do que limitar-se ao anúncio da lei moral, e assim, da conseqüência futura do mal passado, estende-se a antecipá-la, vale dizer, a converter o mal futuro em mal presente; e, converter em presente o futuro, assim como o passado, não é representar? (p. 33)

            Essa conscientização do mal é feita pelo legislador ao povo, uma verdadeira arte, explicando-lhe a lei moral, a sua consequência futura, unida a consequência artificial da ação humana (p. 34). Continua evidente a distinção entre a lei natural e jurídica, ainda que ambas sejam o que é o dever ser (p. 33). Contudo, à natureza, opõe-se a arte, ao natural, opõe-se o artificial, mesmo que natural e artificial, natureza e a arte – esta última tarefa dos homens – enriqueçam o mundo, em um processo cuja analogia é acrescida pela ideia do fantoche (representando a lei jurídica) que imita o homem (representando a lei natural), de forma que por mais uma vez a arte vem em socorro de nosso julgamento (p. 35).

            Para o entendimento do fato, o paradigma do caçador – em que este fecha um dos olhos para melhor mirar seu alvo –, expõe a multidão de objetos do mundo, de forma que a visão de um deles se nos exige não ver os demais (p. 40).

            Sim, o objeto traz consigo a relatividade, unicidade e totalidade, imobilidade e movimento, em que o fato se move e a coisa é fato em imobilidade (p. 41). Há o problema do tempo, que é o da própria vida, no que Carnelutti recorre ao advento do cinema como artifício de grandes possibilidades (p. 42), convertendo imagem em movimento, assim como a lei – que “está” e é um estado, é o presente – se opõe ao fato – que se move e é um desenvolvimento, podendo ser passado ou futuro –, outorgando o contraste do ser e mover-se (p. 43 e 44).

            Nessa busca metodológica acerca do direito, carece a razão e brota poesia (p. 45). Não se olvide, porém, que a percepção se aloca dentro do tempo, pois o espírito está fora do tempo – indo para frente e para trás –, e o corpo dentro dele – indo apenas para o futuro –, em um debate que alcança teologia, filosofia e direito, talvez restando apenas ao espírito a possibilidade de trilhar caminho mais fecundo e longo (p. 46).

            Eis a arte do direito, cuja interpretação artística não difere da jurídica, pois se assim não fosse o direito prescindiria de compreensões, em um ambiente que une Vittorio Scialoja e Arturo Toscanini (1867-1857) (p. 48), ainda que seja necessário descobrir como resolver a contradição de ilimitação de seu fim com a limitação de seu meio representativo (p. 49), afinal, os homens não são fantoches e os crimes, igualmente não se representam exatamente em códigos, mas no que se sofre pela prática do viver (p. 50).

            Para o entendimento do juízo, Francesco Carnelutti resgata o adágio de Rudolf von Ihering (1818-1892): “o direito é luta”... Não serviria o direito para buscar a paz? A luta serviria para buscá-la? As questões colocadas pelo mestre italiano revelam contradições, demonstradas na natureza intrínseca da vida, onde a dúvida vivifica a fé e desvela a compreensão da luta restar na insuficiência dos homens em favor do alcance da paz, na senda do direito que expõe embate entre fato e lei, embora caminhe em direção de sua superação (p. 55).

            No interior de considerações sobre ciência e direito e os impactos trazidos ao seu estudo pela divisão do trabalho, Francesco Carnelutti presta tributo ao direito processual alemão, que por meio do conceito dogmático de Prozessrecht contribuiu para o alinhamento do direito material ao processual, ao mesmo tempo tendo essa distinção como de relevância para o estudo do direito, em tendência mundial abarcada nos Séculos XVIII e XIX (p. 57). Apesar disso, Carnelutti já identificava discussões de relevo, à sua época, sobre o então “direito judiciário”, ensejadoras da superação de seu caráter insípido instado na palavra “processo”, adicionando à exegese a necessidade de compreensão de iudicium e ius, em meditações que lhe foram agraciadas pelo período vivido em Genebra (p. 58). Afinal, o juízo traz consigo uma significação unitiva, de forma que vendo mais longe, “o juízo é semente do pensamento”, a célula (p. 58), afinal, até mesmo o Mestre Jesus, quando por aqui esteve, não pôde falar aos discípulos aprendizes na parábola senão do grão de mostarda (p. 59).

            A célula traz as faculdades gerativas e formativas, nos convidando para vê-la melhor e, mesmo, ver o maior, em analogia e abstração para enxergar o processo, como lentes de aumento para o operador do direito, de forma que o processo seja maior que juízo, pois este aumentado, acaba por perder a sua fisionomia (p. 59). No processo civil ou penal, as partes participam do ato de julgar, de forma que há o regozijo de se poder enxergar a olho nu e, pois, que não há microscópio – habent oculos et non vident – embora, sem que dispensemos a devida atenção, falharemos diante da mais simples e também rara qualidade daquele que se propõe a pensar (p. 59).

            Resgatando Miguel de Unamuno (1864-1936), “fé sem dúvida é fé morta”, Francesco Carnelutti lembra que acusador e defensor, no processo cultivam e exasperam a dúvida (p. 60), onde, com grande percepção, supondo a lide dentro de um conflito de interesses sublinhado na pretensão resistida, recupera a tríade processual diante do modelo da geometria tradicional euclidiana, e, mesmo, adicionando-se a figura do juiz na tríade do modelo de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831). Não à toa que a explicação do processo encontra guarida na lógica filosófica, mas também na metafísica, em algo já expresso pelo Mestre ao longo de seus ensinamentos, ora deveras simples, ora deveras meditativos, em exemplo da singela máxima do nolite judicare. (p. 62).  

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

            No influxo da experiência, Carnelutti não deixa de dar o tributo aos seus amigos de jornada, como também se vê na lembrança das ideias e trabalhos de Piero Calamandrei (1889-1956), recordando o juiz como historiador, fazendo a história, a historiografia... Enquanto o historiador relata fatos grandes, o juiz a faz em fatos pequenos, em lições que hoje, caberiam muito bem no estudo da micro história e da própria epistemologia do direito (p. 62). Nessa tarefa, o juiz estabelece um juízo histórico, que é de meio e não de fim, conhecendo o passado como bilhete de passagem para o futuro, de forma que o juízo histórico caminha em favor de um juízo crítico, superando a discussão de haver nesse debate uma tautologia (p. 63).

            Na tarefa de operacionalização é preciso usar a mesma metodologia de se analisar o Evangelho, conhecendo-o no todo, pois, sem ver o todo e toda a obra, como nos admoestou o Mestre, como poderia um cego guiar outro? O sentido de ordem nessa tarefa, não pode ser outra coisa que a bondade, pois a ordem tem fundamento no sentido do bom e mesmo do bom senso como meio inafastável de se julgar, em lições que (p. 65), ao lado da tríade processual tão bem discorrida por Carnelutti, foram insistente e docemente exortadas pelo professor Juélio Ferreira de Moura (1947-2019) nos seus ensinamentos de Direito Processual Civil na Faculdade de Direito na Universidade Metodista de Piracicaba na década de 1990.

            Será, portanto, no julgamento que dar-se-á a luta da lei e do fato, em um embate no qual se diagnostica o direito como objeto não reduzível à nomologia (p. 67), vale dizer, aqui o estudo das leis regentes de dada sociedade ou um país.

            Para o entendimento da sanção, Francesco Carnelutti reitera a percepção que as leis jurídicas não se limitam na representação da lei moral, ainda que se esforcem para adicionar ao fato uma consequência de ordem artificial (p. 71). Nesse estado de coisas, fora as lágrimas, qual é o sorriso ou gozo em face do destino do condenado? Segundo o mestre que se inscreveu dentre os grandes inspiradores do Código de Processo Civil italiano de 1940, eis aqui uma das situações que a moeda só mostra uma face, demonstrando a distinção da função satisfatória da sanção de natureza cível daquela de natureza penal, de caráter aflitivo (p. 74).

            Nesse interesse, o mestre que lecionou nas universidades de Pádua, Catânia, Bocconi de Milão, estatal de Milão e Roma, aduzindo que em matéria civil há sanção preventiva e na penal, a repressiva (p 74), acrescenta, in verbis:

Devia ser dito que no campo civil o direito chega ao término das dificuldades, na maioria dos casos, restabelecendo a situação segundo suas normas; mas o direito penal não tem os mesmos recursos. Em suma, o civil ganha e o penal perde sua partida. E se nosso olhar não pudesse chegar mais longe, também a partida da ciência do direito poderia ser considerada perdida (p. 74).

            Na área cível, aduza-se, um acordo nunca será perfeito porque não pode retroagir nos fatos, apenas existindo como remédio o ressarcimento do dano, não totalmente pleno, ao lado da função repressiva da restituição, nem sempre clara cientificamente, contudo, lídima no plano do senso comum, trazendo o impulso opressor ao inadimplemento das obrigações, em que ao lado das restituições, pelo esforço realizado desestimula o autor a buscar novamente recurso semelhante (p. 75). Uma visão futurista, realista e pragmática da processualística que muito bem retratou o processo civil brasileiro nos finais de Século XX.

            Alocando as mesmas digressões para o processo penal, de forma magnânima, Francesco Carnelutti lembra a total impossibilidade de restituição do status quo ante, sobrando-lhe a função repressiva, ao modo da sabedoria estoica de Sêneca (ca. 4 a.C.-65): nemo prudens punit quia peccatum est sed ne peccetur, vale dizer, depois que o pecado existiu, não se pode riscá-lo do mundo, podendo-se, apenas se pugnar para que novo erro não ocorra; afinal, as coisas podem ser restituídas, entretanto, não os atos (p. 75). Problema de ontem e de sempre para os jurisconsultos, pondo-se diante da função repressiva da sanção civil e da preventiva da criminal (p. 75). Ipso facto, prossegue o mestre italiano de insígnia cristã e humanística:

É possível? O direito civil serve não apenas para prevenir senão para reprimir o mal, e o penal não serve senão para preveni-lo? Uma coroa sem uma cara não é uma moeda. Diria-se que o direito impotente para a repressão não seja direto; no máximo uma metade de direito (p. 75).

            Novamente dialogando com o pensamento de Kant – ainda que neste ponto não diretamente – e, mesmo, com a lógica filosófica, Carnelutti põe o problema da pena e do delito em um paradigma profundamente ético, obviamente tomando o delito como um mal, onde as condutas humanas alocam-se no plano do ser e, principalmente, do dever ser, sem negar o ínterim histórico e jusnaturalista da construção epistemológica desse entendimento, chegando até mesmo a cogitar uma releitura do adágio de Hugo Grotius (1583-1645) – um dos pais do direito internacional –, onde em lugar de malum passionais ob malum actionis, em repressão do Estado e instrumento para o arrependimento do infrator em face da paixão que é ruim e que causa ações más, se visualiza bonum passionais propter malum actionis (p. 77).

            Dolorosa é a pena, senão não seria pena (p. 77). A lógica de Francesco Carnelutti nos esclarece que o pai, amando seu filho, pode lhe impor um castigo, afinal, lhe quer o bem (p. 77-78). Os penalistas, portanto, devem refletir sobre a dor da reclusão, não mais entendendo – pelo menos no tempo em que escrevia as suas linhas, em 1949 – que a abordagem da pena devesse restar adstrita a um plano menor, a uma ciência inferior, intermédia entre técnica e ciência, no que urgia se considerar a questão espiritual, repousando aí a pedra de toque e o segredo da ciência jurídica penal (p. 78).

            Ademais, a reclusão traz a anulação da individualidade, calando-a, impossibilitando-a de falar, e o delito, ilustrando a falta de amor do infrator por si mesmo e pelos demais, no que então se busca o sentido da caridade pela vontade – caritas incipt ab ego –, na outorga de perda ao que o infrator causou ao semelhante e a si mesmo, e induzindo-o a pensar naquilo que, uma vez cumprindo pena, não mais possui (p. 79). Contudo, o mestre italiano não se deixa cair em armadilhas de narrativas fáceis e simplistas, acrescentando que a pena pode proporcionar a plenitudo hominis, coisa outra que é senão a liberdade em um caráter positivo, e descobrindo a sua função real, a superação da distância entre economia e moral, afinal a primeira explicita necessidade, e a segunda, a própria liberdade (p. 79).

            Carnelutti reconhece ser esta uma visão ideal, otimista, inserida no dever ser, diante da trágica realidade dos seres humanos cuidarem mais do ter que do ser, o que traz atrasos ao mecanismo penal em face do civil (p. 80). Sabedor o mestre italiano que Jesus Cristo perdoa, mas os homens não, ele, ainda no influxo de sua inestimável leitura humanística do direito como arte, insistia não se propor a pena como algo “zoológico”, devendo o caráter espiritual ser retomado ou verdadeiramente estabelecido para a pena e para a ciência jurídica; afinal, se se precisa de pão, para o corpo, igualmente dele se necessita para o espírito (p. 80).

            Ciente que falava na perspectiva do direito não no plano do ser, mas do dever ser, Carnelutti não ignorava os problemas envolvidos na pena, que, em princípio, não existem epistemologicamente na área civil quando se busca apenas a restituição de dinheiro –  quando o devedor inclina sua cabeça para o credor, ainda que fique ansioso em retomar a luta, revivendo o ideal hobbesiano –, insistindo na diferença do pão para o corpo e o pão para o espírito, no que, fugindo da escuridão, o direito deveria ascender pela pena em favor da luz (p. 81-82), em um critério possivelmente orientador para as políticas criminais e reeducativas contemporâneas.

            Para o entendimento do dever, Francesco Carnelutti, soerguendo a arte, nos conclama olhar fixamente o sol – como a quem mira um objetivo –, sob a advertência de, não negando o caráter tautológico das reflexões, reavivar o questionamento de Moisés ao Pai: “como te chamas, Senhor?”, ao que este ouviu: “eu sou O que é’ (p. 85). Daí o professor italiano desumir a questão: “cada um de nós é o que é, verdadeiramente?”, arriscando uma resposta: “cada um de nós é o que é e não é o que não é”, em que no permanente bojo de seu espírito cristão e humanístico, conclui que somente “Deus é sem não ser”, representando o todo do que o restante das coisas e seres lhe são apenas ínfima parte (p. 86).

            A desdita – como que prevendo conclusões antecipatórias do futuro “existencialismo pop” na sua forma mais “deletéria” –, para Carnelutti, de se ser apenas parte, seria o fundamento da infelicidade do homem, somada ao erro em fixar-se na desesperação ao invés da esperança, e na crença de habitar a carceragem de não passível evasão que é a prisão do dever (p. 87-88).

            Mas o gênio Carnelutti nos surpreende: dever é prisão ou libertação? Se desde entre os romanos o vínculo é elemento fundamental da obrigação, urge que tomemos a lição evangélica para não vermos o espelho embaçado ou invertido; pena como elemento proporcionador da liberdade (p. 88), dever não como opressão, mas expansão da personalidade (p. 89). Intentando opor-se à Kant e ao seu imperativo categórico, o mestre italiano enaltece o dever na qualidade de elemento fundamental do direito, sendo este seu conduto, sem olvidar que ao dever lhe é imposto, de forma que “para o direito, e não para a moral, ao dever corresponde o poder. Tal correlação encontra-se somente no reino do direito. O dever jurídico depende do poder, enquanto que o dever moral não depende dele” (p. 89). Se o poder é meio, o dever é fim, pois tendo a liberdade dentro de si, os seres humanos não conseguem cumprir seu dever sem ser mandados ou ameaçados ao castigo (p. 90).

            Haveria, então, contradição entre a história e a lógica por conta da primeira reconhecer a primazia do dever e a segunda do poder? Amável e humildemente Carnelutti se julga ingênuo, mas corrobora que a história é professora eficaz – historia magistra vitae –, de forma que não poderia ser ilógica, de maneira que, se isso acontecer em algum momento, é porque os historiadores não lograram êxito (p. 90). Contudo, na história do direito, é lugar comum falar-se do seu nascimento a partir do momento em que um precipitou-se a mandar nos demais, ao mesmo tempo que o surgimento do primeiro homem se deu no primeiro parto (p. 90-91). Ao professor italiano – cotejando o problema sobre quem deve vigiar os que vigiam –, as palavras:

Quando o direito é concebido como mescla de justiça e de força, com a balança e a espada em seu brasão, parece que a força da espada fosse a força do direito, ou seja, a sua fonte. Mas, refletindo, não tarda em revelar-se o equívoco entre a força que o direito produz e a força que produz o direito; a primeira é o trabalho do mecanismo, não a energia que o faz mover. A busca não se refere a por que as partes devem obedecer ao legislador e ao juiz, mas por que este e aquele podem e devem mandar. Quis custodiet custodes? [Quem guarda os guardas?] Num certo momento a corrente da força se rompe; ou seja, não se consegue encontrar um primeiro que manda nem um primeiro que é mandado. Há, por fim, um mandante que manda sem que nenhum outro homem lhe conceda o poder e lhe imponha o dever de mandar. Vale dizer, que o direito tem sua raiz na obediência e não a obediência no direito. Uma vez mais o mundo se vê invertido (p. 91) [inserção nossa].

            Eis o problema de, em ultima ratio, se buscar a força original, no interior do problema do direito não criar, mas transformar (p. 91). Por amor ou pela força, deveria o homem ocupar-se de si mesmo para o melhor em favor de todos, em reconhecimento que Deus manda, ainda que prevaleça o livre arbítrio – charitas est –, e não sabendo amar, atrasados ou ignorantes que somos acabamos sentindo o medo, e, por conseguinte, o direito se alimentando dessa fonte vinda mais de um riacho que de um rio, que necessitando de força para superar a descontinuidade e exiguidade, aquele que acumula esta força enuncia que o direito brota de si mesmo (p. 92). Novamente, a favor ou contra Kant – Francesco Carnelutti nele sempre focando –, não se foge do imperativo categórico como o eixo edificador da reflexão, de certa forma, já ditada pelo Mestre Jesus (p. 92-93), exemplificando o (melhor) modelo a ser seguido.

            Será possível a lei jurídica em algum momento se justificar pela lei natural? Carnelutti é otimista em relação a isso (p. 93). Entrementes, os filósofos apoiaram-se sobre as conquistas ditadas pelas ciências naturais, trazendo à tona por elas grandes correntes de pensamento, e novamente, o imperativo categórico de Kant – em conduzir-se como se suas ações fossem leis para todos –, sobressaindo e exsurgindo o dever como primeiro mandamento (p. 93-94).

            A verdade, outrossim, estará na unidade e não na divisão, sendo o dever o elo que transforma a divisão na unidade, cujo cimento só pode ser o amor (p. 94). Afinal, o mundo é belo e cabe ao ser humano fazê-lo ainda mais, e não presumindo-se dono, colaborando altivamente na obra criadora do Pai (p. 94), como a (re)interpretar corretamente o Livro de Gênesis. Se a Renascença teve o arroubo da soberba e do apetite para o fruto proibido, não se pode violar a ordem das coisas e do mundo, cujo poder criador na cocriação se ordena e reconduz na permissão para que a humanidade supusesse a invenção do direito (p. 94). Arrebata o jurista italiano: “e assim também a investigação do direito ab intra, o mesmo que a investigação ab extra nos revela os traços da arte” (p. 94).

            Francesco Carnelutti continua a caminhar ao lado de amigos como Eduardo Couture (1904-1956), também entusiasta do direito processual na América Latina, crendo que naquele momento Deus lhe permitia revisitar a própria trajetória, superando a técnica em si mesma e em devoção e amor à própria arte (p. 95). Ainda que persistam mistérios, o mestre italiano acredita que a paz seu espírito encontrou (p. 95).

            O professor Carnelutti reconhecia que o maior pedido feito ao advogado – o primeiro juiz da causa – é a oferenda da amizade, proporcionando a dádiva de sua percepção e experiência em favor das novas gerações por meio deste breve escrito, em especial, para a ideal reordenação do mundo que talvez não seja mais que a própria regeneração, em favor da busca de uma felicidade em unidade capaz de conduzir à paz – sobretudo, do espírito –, encantando, ensinando, construindo, visualizando a liberdade como atributo oriundo do cumprimento do dever, que em contrapartida, oferece a felicidade de ser filho e partícipe do universo.

            Há de se ler sempre – em fragmentos ou na totalidade – a “Arte do Direito”, de Francesco Carnelutti.

Referência

CARNELUTTI, Francesco. Arte do direito: seis meditações sobre o direito. Tradução de José Stefanino Vega. Rio de Janeiro: Âmbito Cultural, 2001, 95 p.

Sobre o autor
Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos