Capa da publicação Perseguição, stalking ou assédio por intrusão – Lei 14.132/21
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Perseguição, stalking ou assédio por intrusão – Lei 14.132/21

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03/07/2021 às 11:05
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4-SUJEITO PASSIVO

Com as observações feitas no item anterior, é certo que qualquer pessoa pode ser sujeito passivo do crime de perseguição.

Corretamente destacam Costa, Fontes e Hoffmann que o crime é “bicomum”, já que “o legislador não exigiu nenhuma qualidade especial do criminoso ou da vítima”. Não obstante, também asseveram com razão os mesmos autores que a lei prevê uma causa especial de aumento de pena da ordem de metade sempre que a vítima for criança, adolescente, idoso ou mulher perseguida por razões da condição do sexo feminino (artigo 147 – A, § 1º., I e II, CP). [18]

Interessante essa observação dos mencionados doutrinadores, pois que ao chamar a atenção para a prevalência estatística da mulher como vítima no ambiente doméstico e familiar, não se pode deixar de considerar também que podem ser vítimas preferenciais outras pessoas em condição de hipossuficiência, tais como as crianças, adolescentes e idosos, dos quais do legislador positivamente não se olvidou.  

Referindo-se o tipo penal a “alguém” como vítima, é de se concluir que a perseguição deve ter por objeto material pessoa determinada ou ao menos um grupo de pessoas determinado. [19] Significa dizer que a perseguição, ainda que reiterada, a grupos indeterminados de pessoas, tais como judeus, negros, índios, mulheres, homossexuais, nordestinos etc., é ao menos fato relativamente atípico, ou seja, em relação específica ao crime previsto no artigo 147 – A, CP. Não há se falar em todos os casos em atipicidade absoluta, pois que condutas de perseguição contra grupos de pessoas indeterminadas podem chegar a configurar crimes muito mais graves, tais como “Racismo” ou “Genocídio”. Tudo depende de uma análise detida do caso concreto.

Também é interessante notar que em se tratando de crime contra a “pessoa” (física ou natural) e referindo-se a lei a “alguém”, não será viável que as “pessoas jurídicas” figurem na qualidade de sujeito passivo de perseguição. Ademais, não se pode afirmar que as pessoas jurídicas tenham capacidade de gozo do bem jurídico primordialmente tutelado, qual seja, a liberdade individual. Também não é possível atribuir às pessoas jurídicas algum tormento psíquico ou físico, nem o atingimento de uma condição de “tranquilidade pessoal”. Por obviedade, as pessoas físicas que compõem uma pessoa jurídica podem ser normalmente vítimas do crime de perseguição e se o fato se dá com uma conduta abrangente que visa às várias pessoas físicas que compõem a pessoa jurídica, se configura concurso formal impróprio, tendo em vista a presença de desígnios autônomos, nos termos do artigo 70, parte final, CP. [20]


5-TIPO OBJETIVO

O verbo nuclear do tipo é “perseguir” e tal perseguição que, aliás, dá “nomen juris” ao crime, deve ser perpetrada de forma reiterada. Ou seja, não basta um único ato. Em casos tais (conduta única ou espaçada) haverá configuração de outros tipos penais, tais como ameaças, crimes contra a honra, vias de fato, lesões corporais etc. A conduta de perseguição pressupõe uma reiteração ou um cúmulo de condutas de forma a transtornar a tranquilidade e a liberdade da vítima com muito maior intensidade do que ocorreria com um ato isolado ou alguns atos espaçados entre si.

Tal como aduz Moreira:

Assim, cometerá o delito, objetivamente, quem de maneira repetida e sistemática perseguir alguém, seguindo-o de perto, indo ao seu encalço, acossando-o, importunando a sua vida, incomodando a sua privacidade ou atormentando a sua paz e a sua tranquilidade. [21]

Mais singelamente, mas não menos objetivo, assim se manifesta Leitão Júnior:

“No aspecto conceitual podemos ter por perseguição a conduta a ser definida como aquela praticada por meios físicos ou virtuais que interfira na liberdade e na privacidade da vítima”. [22]

A perseguição se refere a uma intensa perturbação corriqueira da vítima, chegando “a ponto de fazer com que se sinta tolhida na condução de sua vida cotidiana”. [23]

Fazendo menção a uma decisão do Juizado de Instrução de Tudela (Navarra) na Espanha, Callegari afirma, com razão, ser necessária para a configuração da perseguição que esta se apresente como “uma estratégia sistemática”. [24]

O tipo penal constitui crime de forma livre, mas, como visto, é habitual. Embora não se possa negar a habitualidade ínsita ao crime em estudo, não se trata de exigir que a perseguição seja um “modus vivendi” do agente. Tão somente é necessário que a conduta seja repetitiva, realizada de forma reiterada, conforme descrito na lei.

Como esclarecem Costa, Fontes e Hoffmann:

Ao fazer uso do termo reiteradamente, o legislador não deixa dúvidas de que o crime demanda habitualidade, por mais que isso não indique um verdadeiro estilo de vida do autor do fato. Mesmo que se trate de um crime habitual sui generis, o resultado prático é que um único ato de importunação não tem o condão de configurar o delito em estudo. [25]

Não existe também um prazo delimitado para que a conduta passe a ser considerada como reiterada ou habitual. Tal como leciona Leitão Júnior, “basta que a perseguição reiterada seja contínua ou frequente”. [26]

Trata-se claramente de crime de forma livre, tendo em vista a dicção do artigo 147 – A, CP, estabelecendo que a perseguição pode dar-se “por qualquer meio”.

Note-se que embora se exija reiteração (habitualidade) não há necessidade de que os meios de perseguição, invasão e perturbação sejam sempre idênticos em todos os atos que compõem a conduta criminosa. Vários meios ou formas de execução podem perfeitamente serem combinados. Um infrator pode perseguir a vítima na via pública, depois importuná-la com telefonemas e e-mails ou mensagens nas redes sociais, depois enviar-lhe cartas e assim por diante. [27]

Essa perseguição deve resultar em ameaça ou risco à integridade física ou psicológica que ocasione restrições à capacidade de locomoção (direito de ir e vir) ou invasão ou perturbação de qualquer natureza à esfera de liberdade ou privacidade do sujeito passivo.

Costa, Fontes e Hoffmann observam, com acuidade, que numa primeira impressão pode-se considerar que a criação de ameaça ou risco à integridade física ou psicológica da vítima seria apenas uma das maneiras de cometer o crime em estudo. Outras formas seriam a restrição da liberdade de locomoção ou a invasão ou perturbação da liberdade ou privacidade. Esta, entretanto, não parece realmente ser a melhor interpretação, conforme esclarecem os autores citados. Na verdade, o mais correto é compreender que existe um liame necessário entre a prática ameaçadora ou a criação de um risco à integridade física e psicológica e os resultados necessários para que o crime ocorra, quais sejam, a restrição da liberdade de ir e vir ou a invasão ou perturbação da liberdade ou privacidade da vítima. A ameaça ou risco criado é a conduta propriamente dita do infrator e a restrição, invasão ou perturbação seguintes são os resultados exigidos para que o crime se aperfeiçoe. A relação é de conduta e resultado ou de causa e efeito, sendo que tanto a conduta ameaçadora como os efeitos sobre a liberdade são exigidos para que o tipo se integre.

Os autores em destaque asseveram corretamente que:

A exegese que parece mais adequada é a sistemática ou teleológica. Haverá crime apenas diante da perseguição reiterada que ameace a integridade física ou psicológica da vítima, quando (a) restrinja sua capacidade de locomoção ou (b) por qualquer outra forma, invada ou perturbe sua liberdade ou privacidade (cláusula de interpretação analógica). [28]

O tipo penal descreve a conduta consistente na perseguição reiterada, indica a forma pela qual tal perseguição deve se processar (ameaça à integridade física ou psicológica) e, finalmente, os resultados que dela devem decorrer (restrição da locomoção ou invasão ou perturbação da liberdade ou privacidade por qualquer forma).

É importante ter em mente que a “ameaça” a que se refere o tipo penal em estudo é aquela decorrente da perseguição e não precisa, necessariamente, consistir na promessa de um mal injusto e grave, tal como é exigido para o crime específico de “Ameaça” (artigo 147, CP). [29] Com isso não se quer dizer que qualquer bagatela irá configurar a perseguição, nem que a conduta de ameaça injusta e grave nos moldes do crime de ameaça não sirva para compor a perseguição. No entanto, não será preciso que o agente, necessariamente, ameace a vítima de agressão física, morte, causação de prejuízos financeiros, à imagem etc., como seria necessário no crime do artigo 147, CP. Para a perseguição, outras condutas consistentes na presença física ostensiva do indivíduo em locais frequentados pela vítima e sua aproximação, ainda que sem expressar ameaças físicas; a remessa de cartas ou mensagens de e – mail, lotando a caixa postal da vítima e causando-lhe empecilhos, ainda que dali somente constem alusões de afeto, ou até mesmo o envio de flores, cartões e presentes inoportunamente pode perfeitamente configurar a perseguição obsessiva. Telefonemas reiterados com assuntos já rechaçados pela vítima, embora não versando sobre ameaça física, eventualmente até mesmo constituindo-se em lamentos e alegações de que se a vítima não lhe dá atenção pode vir a suicidar-se, ou seja, o mal prometido não se refere à vítima, mas ao próprio autor. Tudo isso configura a perseguição, embora não fosse configurar o crime de ameaça. O termo “ameaça” no tipo penal em estudo é empregado de maneira ampla, podendo constituir sim também a ameaça de mal injusto e grave, mas abarcando uma acepção da palavra “ameaça” enquanto “risco causado” à integridade física ou psicológica da vítima. Na linguagem informática encontra-se uma expressão que pode aclarar a amplitude do termo “ameaça” neste tipo penal do artigo 147 – A, CP. É comum que um antivírus apresente na tela a mensagem de que foram encontradas “ameaças” ao seu computador ou que não foram encontradas “ameaças”. É evidente que o termo “ameaças” não é ali empregado no mesmo sentido utilizado no crime de “ameaça” (afinal, é impensável que alguém esteja “ameaçando” um computador), mas sim como sinônimo de “risco”. Este parece ser o emprego da palavra pelo legislador, de modo a ultrapassar seu sentido mais restrito no artigo 147, CP. E nosso auxílio encontra-se o escólio de Lessa:

Defendemos que a expressão ameaça deva ser vista de maneira ampla, e não em simetria ao tipo penal do art. 147 do Código Penal, o qual exige mal injusto e grave. A ameaça, no delito de perseguição, deve ser encarada como sinônimo de intimidação, ainda que velada, e que dê a entender, na visão da vítima, que aquela atitude persecutória está eivada do desejo de lhe fazer mal ou prejudicar. A ameaça, assim, deve ser hábil a impingir promessa de mal físico (vis corporalis) ou mácula psicológica (que cause dano emocional), resultando em restrição da capacidade de locomoção (por medo) ou gerando perturbação (desestabilização emocional) ou invasão (ocupação por força) na esfera de liberdade ou privacidade da vítima (grifo nosso). [30]

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Essa ampliação da acepção de “ameaça” no crime de “Perseguição” (artigo 147 – A, CP) é constatada também por Callegari quando aduz que “em muitos casos não se enquadrava formalmente” a conduta ora prevista como de perseguição “a um tipo penal como o de ameaça ou perturbação”. Agora “de acordo com a tipificação conferida pelo legislador os casos de perseguição serão alargados com a nova redação do tipo penal”. [31]  

Esses resultados são bastante abertos, pois realmente o legislador utiliza o sistema de “interpretação analógica”. Apresenta um exemplo casuístico de resultado negativamente valorado (restrição da locomoção) e, a seguir, expõe fórmula genérica ao referir-se a qualquer outra forma de invasão ou perturbação da liberdade ou privacidade da vítima. Ora, não resta dúvida que o coartar da liberdade de ir e vir constitui uma invasão ou perturbação indevida da liberdade e privacidade da vítima. Esse é um exemplo específico, que é segundado pela referência a qualquer outra forma de violação similar.

Não há dúvida de que há aqui um recurso legislativo à “interpretação analógica”, que consiste basicamente em desvelar o sentido da norma com os próprios elementos por ela dispostos. Na lição de Masson, isso é possível quando a norma é dotada de “uma fórmula casuística seguida de uma fórmula genérica”, [32] o que é exatamente o que ocorre neste caso em estudo, conforme foi demonstrado. Não se trata de analogia maléfica ao réu, mas daquilo que também se denomina de “interpretação intra legem”, já que a solução não é buscada por comparação externa à norma, mas em seu próprio bojo, de forma a não violar garantias individuais e o Princípio da Legalidade estrita.

Obviamente as mesmas condutas que poderiam configurar o crime de perseguição, quando praticadas por profissionais que atuam no cumprimento de suas funções legalmente permitidas e até mesmo impostas, não haverá incriminação, salvo em casos evidentes de abuso. Não é possível, por exemplo, pretender incriminar um Oficial de Justiça por perseguição quando este fica no encalço do citando que procura evadir-se à citação, pois age com sustento no Código de Processo Penal ou de Processo Civil. O mesmo se diga do Detetive Particular, que tem sua profissão regulamentada pela Lei 13.432/17. Diverso também não é o caso de Policiais Civis ou Militares que atuam com sustento nas leis penais e processuais penais vigentes. Finalmente, pode-se mencionar o caso de Operadores de Telemarketing, fotógrafos (“paparazzi”), jornalistas ou até mesmo meros “galanteadores” insistentes, salvo, como já dito, em casos de atitudes abusivas. [33]

Não restam dúvidas de que o exercício de atividades que poderiam, em tese, subsumir-se ao tipo penal de “Perseguição”, quando perpetradas por pessoas no exercício regular e legal, permitido ou até mesmo determinado pelo conjunto do ordenamento jurídico, configura o que Zaffaroni e Batista denominam de “atipicidade conglobante”.  Em suas palavras:

"A antinormatividade não se revela apenas na simples oposição entre a norma deduzida do tipo legal e a conduta, postulando também a consideração conglobada da norma deduzida do tipo com outras normas dedutíveis de outros tipos legais". [34]

Aspecto importante diz respeito à necessidade de que a conduta de perseguição de que alguém se diz vítima seja séria, a fim de que represente efetivo dano ou perigo de dano ao bem jurídico tutelado, satisfazendo, destarte, ao “Princípio da Lesividade” e afastando também a ocorrência de ilícito bagatelar. Não é possível que o Direito Penal se ocupe de casos como o vivenciado na prática por este subscritor, quando uma dada pessoa compareceu à Delegacia (ainda não havia sequer previsão do delito de “Perseguição”) e reclamou que seu vizinho olhava para ela “com a cara feia”! Ora, isso é, no máximo, uma questão de estética subjetiva, jamais um problema real a ser solvido no mundo jurídico – penal. Nessa mesma trilha afirma Moreira:

De toda maneira, resta induvidoso que, para a configuração do delito, é preciso que a perseguição seja efetivamente grave, crível, idônea, verossímil, concreta e séria, capaz de atingir a liberdade física ou psíquica da vítima, além de sua tranquilidade pessoal, podendo ser uma perseguição explícita (clara) ou às escondidas (implícita ou velada), contanto que a vítima tome conhecimento da conduta (...). Assim, simples e infundadas ilações ou mesmo manias de perseguição, não legitimam a intervenção do Direito Penal que, como se sabe, é regido pelo princípio da intervenção mínima. [35]

Enfim, a paranoia e o capricho não são e nunca foram bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal e nem mesmo por outros ramos jurídicos.

Nesses comentários acerca da necessária lesividade, tipicidade material e conglobante das condutas resta patente o fato de que o Direito Penal não se pode satisfazer simplesmente por meio do recurso silogístico lógico de mera adequação de premissas a uma conclusão pelo método dedutivo. Em suma, somente a subsunção da conduta ao tipo penal objetivo não é suficiente para a incriminação efetiva. Mister se faz um sucessivo esforço dialético no qual se confrontem discursos ou hipóteses contraditórias com o fim de obter uma espécie de percepção intuitiva (no sentido de evidência) de uma premissa que articule tais elementos contraditórios, ou reconhecendo um e afastando o outro ou concluindo que ambos são válidos, mas em circunstâncias ou planos diversos ou mesmo que são complementares entre si. Na verdade, a dialética opera exatamente ao reverso da lógica. Esta parte de premissas para obter conclusões, enquanto que a dialética parte de hipóteses contraditórias e remonta à premissa fundante que explique tais hipóteses de forma articulada. É somente para além do silogismo lógico (que é apenas uma fase inicial de raciocínio), adotando então o procedimento dialético, que se pode chegar a conclusões acerca da tipicidade conglobante, tipicidade material, lesividade, desvalor e significância de uma conduta formalmente típica.

O delito de “Perseguição” não se perfaz com uma simples perturbação ou incômodo. Sua configuração se dá quando o agente quer controlar, subjugar a vítima, causando-lhe medo, insegurança, ansiedade, angústia e temor. Conforme nos esclarecem Costa, Fontes e Hoffmann, em excelente pesquisa com exposição da normatização do crime de “Perseguição” no Direito Comparado (Austrália, Estados Unidos, Portugal, Irlanda, Holanda etc.), o assédio por intrusão limita a capacidade volitiva da vítima, condicionando intensamente suas “decisões e comportamentos”, ensejando alterações em seus “hábitos, horários, trajetos, número de telefone, email e até mesmo local de residência e trabalho”. Ocorre uma degradação considerável da qualidade de vida do sujeito passivo, ocasionada pela atuação perseguidora do criminoso. Os autores em destaque chamam a atenção para o fato de que legislações estrangeiras usam nos tipos penais respectivos expressões como “alterar seus hábitos de vida” (Itália) ou “prejudicar sua liberdade de determinação” (Portugal). [36] Esse instrutivo passeio pelo Direito Comparado e o destaque para o grau de intimidação intenso que deve caracterizar a conduta criminosa, reforça a ideia já exposta de que a perseguição deve ser séria e concreta, a fim de satisfazer a lesividade, o minimalismo jurídico – penal e não dar abrigo à punição ou persecução de condutas insignificantes (Princípio da Insignificância ou da Bagatela).

No exato mesmo sentido Callegari cita decisão jurisprudencial espanhola do Juizado de Instrução de Tudela (“Procedimiento, diligencias urgentes n. 0000260/2016 Juzgado de Instrucción n. 3 de Tudela, Navarra), com a seguinte dicção:

As condutas de stalking afetam o processo de formação de vontade da vítima no sentido de que a sensação de temor e intranquilidade ou angústia que produz o repetido ato de espreitar por parte do perseguidor e que lhe levam a mudar seus hábitos, seus horários, seus lugares de passagem, seus números de telefone, contas de correio eletrônico e inclusive de lugar de residência e trabalho. [37]

Sublinhe-se que quando a lei menciona a “restrição” da “capacidade de locomoção” da vítima, não há necessidade de que esta sofra uma “privação” do direito de ir e vir, tal como ocorre no crime de “Sequestro e Cárcere Privado” (artigo 148, CP). Tal distinção é relevante, pois até mesmo os verbos dos dois tipos penais divergem, no artigo 147 – A, CP o verbo é “restringir”, enquanto no artigo 148, CP o verbo é “privar”.

Releva ainda observar que o tipo penal faz referência à invasão ou perturbação da “privacidade”. Nesse passo é importante fazer a distinção entre “privacidade” e “intimidade”, bem como estabelecer se a segunda também conta com a tutela penal de acordo com o âmbito de incidência da norma em estudo.

Bulos bem expõe a distinção entre “vida privada” e “intimidade”:

A vida privada e a intimidade são os outros nomes do direito de estar só, porque salvaguardam a esfera de reserva do ser humano, insuscetível de intromissões externas (aquilo que os italianos chamam de rezervatezza e os americanos privacy). (...). Amiúde, a ideia de vida privada é mais ampla do que a de intimidade. Vida privada envolve todos os relacionamentos do indivíduo, tais como suas relações comerciais, de trabalho, de estudo, de convívio diário etc. Intimidade diz respeito às relações íntimas e pessoais do indivíduo, seus amigos, familiares, companheiros que participam de sua vida pessoal. [38]

No mesmo diapasão se manifesta didaticamente Nunes Júnior:

Dessa maneira, podemos afirmar que intimidade e vida privada são dois círculos concêntricos que dizem respeito ao mesmo direito: o direito à privacidade ou direito de estar só. A intimidade é um círculo menor, que se encontra no interior do direito à vida privada, correspondendo às relações mais íntimas da pessoa e até mesmo à integridade corporal, não se admitindo as “intervenções corporais” como em outros países. [39]

Sendo assim, no que tange à proteção penal há que reconhecer que a proteção dada à inviolabilidade da “privacidade”, necessariamente abarca a “intimidade”. Aqui se pode dizer que quem não pode o menos (violar a privacidade – círculo maior de abrangência), não pode consequentemente o mais (violar a intimidade – círculo mais restrito). Se a reserva é menor quanto à “privacidade” e esta é tutelada, não é possível que se possa chegar licitamente à violação da “intimidade”, cuja reserva é mais intensa, mantendo-se incólume à aplicação da lei penal.

Bernardes e Ferreira, no campo constitucional, lecionam exatamente essa continência da intimidade na privacidade. Em outras palavras, ensinam que a intimidade está contida, é abarcada ou abrangida pela privacidade, o que é muito bem representado graficamente pela figura dos círculos concêntricos já anteriormente referenciada:

O direito à vida privada se refere àquela parte mais destacada da intimidade, que é a já mencionada esfera do segredo. Mas tem a ver, ainda, com a ampla liberdade assegurada à pessoa para desenvolver sua vida interior, bem como o direito de estar só (“right to be alone”) e o direito de não ser importunado. Nessa última acepção, o direito à vida privada está interligado à liberdade de consciência e de autodeterminação individual, incluindo as íntimas motivações, opções e/ou preferências pessoais (religiosas, filosóficas, sexuais etc.), tanto as que impulsionam atos eminentemente privados, quanto aquelas relacionadas a outros direitos fundamentais importantes, tais como a liberdade de escolha profissional, a liberdade de aderir ou não a um culto religioso, de associar-se ou deixar de associar-se.

A rigor, portanto, a “vida privada” acaba por integrar o conceito de “intimidade”. Assim, a proteção à vida privada já se incluiria na proteção geral à intimidade em si (grifos no original no primeiro parágrafo e grifo nosso do segundo parágrafo). [40]

Finalizando importa acrescentar que o crime de “Perseguição”, também conhecido pela expressão em inglês “Stalking”, certamente abrange o que se convencionou denominar também por meio de uma expressão inglesa, de “Bullying”. Afinal, o “Bullying” “corresponde a um conjunto de atitudes de violência física e/ou psicológica, de caráter intencional e repetitivo, praticado por um ‘bully’ (agressor) contra uma ou mais vítimas que se encontram impossibilitadas de se defender”.  [41]

O “Bullying” normalmente evoca o ambiente escolar, mas é preciso ter em mente que as condutas que o caracterizam são múltiplas, abrangendo situações e ambientes os mais diversos, bem como relações variadas (v.g. escola, trabalho, lazer, convívio social em geral).

Como bem expõe Nahur:

De qualquer modo, também não se pode deixar de assinalar que, como fenômeno detectado na sociedade moderna, nos tempos atuais, bullying e cyberbullying envolvem múltiplas formas, por muitas vias e por intermédio de vários instrumentos de “vitimização” por parte de grupos ou indivíduos, direta ou indiretamente, contra inúmeras pessoas, em contextos socioculturais de relações de pares. Manifestam-se essas práticas “vitimizadoras” em diversos espaços coletivos de convivência constante e não se restringem apenas a aspectos de gênero, faixa etária e nível socioeconômico. Trata-se  de mais uma subcategoria da noção mais ampla da categoria violência que se exterioriza nas mais variadas, repetidas e sistemáticas práticas no mundo real e no virtual. [42]

Portanto, é induvidoso que, a depender da espécie de conduta caracterizadora do “Bullying”, conformar-se-á também o delito de “Perseguição”, “Stalking” ou “Assédio por Intrusão”, ora previsto no artigo 147 –A, CP.

Como afirma Calhau, “o ‘Bullying’ é um ato ilegal”, podendo caracterizar ilícitos civis, administrativos ou penais a depender das circunstâncias, [43] inclusive agora o artigo 147 –A, CP.

Vale ainda lembrar que a Lei 13.185/15, instituiu o “Programa de Combate à Intimidação Sistemática”. Tal legislação não criminaliza, mas define a prática de “Bullying” (artigo 1º., § 1º.), deixando bastante evidente que sua prática pode perfeitamente se subsumir ao tipo penal do artigo 147 – A, CP, senão vejamos:

No contexto e para os fins desta Lei, considera-se intimidação sistemática (bullying) todo ato de violência física ou psicológica, intencional e repetitivo que ocorre sem motivação evidente, praticado por indivíduo ou grupo, contra uma ou mais pessoas, com o objetivo de intimidá-la ou agredi-la, causando dor e angústia à vítima, em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas.

Há ainda que citar o denominado “Mobbing”, primeira forma identificada de “assédio moral”, advindo do verbo inglês “to mob”, significando “tumulto, turba, confusão”. A intimidação se processa neste caso por meio da ação de vários indivíduos contra um, são “perseguições coletivas” que podem “culminar em violência física”. [44] Relembre-se que embora o delito de “Perseguição” não seja de concurso necessário, nada impede haver o concurso acidental de agentes.

A bem da verdade, “Stalking”, “Bullying” e “Mobbing” são espécies do gênero “Assédio Moral”, os quais muitas vezes se misturam e completam, cuja criminalização pode variar de acordo com as condutas praticadas pelo infrator para intimidar a vítima. Dessas práticas podem emergir crimes contra a honra, lesões corporais, vias de fato, crimes patrimoniais e, agora, também o crime de “Perseguição”.  

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Perseguição, stalking ou assédio por intrusão – Lei 14.132/21. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6576, 3 jul. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/91385. Acesso em: 18 mai. 2024.

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