Capa da publicação Por que estender a concessão da gratuidade de Justiça enquanto perdurarem os efeitos da pandemia do coronavírus

Coronavírus: por que estender a gratuidade de Justiça?

06/04/2020 às 20:12
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A pandemia do coronavírus alterou o panorama de negócios do país, o que afetou a capacidade financeira de um sem número de empresas, não se podendo negar gratuidade da Justiça a elas.

Eis aí mais um breve comentário que faço em relação às minhas análises do dia a dia dos operadores do direito por conta da pandemia do coronavirus, e agora analiso a questão sob a perspectiva da concessão da gratuidade de Justiça.

A norma contida no artigo 5º inciso LXXIV CF garante a concessão da assistência judiciária integral a quem comprovar insuficiência de recursos, e, como apontam Mauro Cappeletti e Bryant Garth em sua conhecida obra Acesso à Justiça a concessão da gratuidade deve ser a regra e não a exceção (tais autores apontam ponderações impagáveis como a separação entre dois sistemas mundiais de concessão de assistência judiciária, o sistema Judicare e dos Economic Oppotunity Offices, um mais preocupado com a concessão formal do acesso à Justiça outro mais preocupado com questões coletivas de garantia de acesso à Justiça).

Ora, de fato, não se excluirá de apreciação pelo Poder Judiciário, lesão ou ameaça de lesão a direito, como bem assentado, também como direito fundamental do indivíduo, nos termos do artigo 5º, inciso XXXV da Carta Política. O acesso do indivíduo à tutela estatal na solução pacífica dos seus problemas deve ser estimulado (Francesco Carnelutti apontava que a jurisdição se prestava especificamente à pacificação social).

Mais ainda, embora tenhamos sido, durante muitas décadas, influenciados pelos cânones da Lei nº 1.060/50 (e vários juízes ainda nela se amparam o que é preocupante), o fato é que a mesma foi praticamente revogada pelo CPC atual (artigo 1.072 -restam apenas dois artigos dela ainda em vigor).

Mesmo assim muitos magistrados ainda amparam indeferimentos com fincas nesta lei, de modo, no mínimo, exótico ou pouco ortodoxo. E o grande problema é que a Lei de 1050 parecia querer confundir necessidade (critério constitucional) com algo radicalmente diferente que seriam a miséria e a pobreza.

De fato, parece não haver dúvidas no sentido de que a miséria e a pobreza amparavam a concessão da gratuidade de Justiça, mas não só os minus habendi se encontram em situação de obter suas benesses. O escopo do constituinte parece ter sido no sentido de garantir que todos que precisem do benefício o consigam.

Pelo óbvio que não se pode impunemente deferir gratuidade a qualquer pessoa, em qualquer situação (embora na Suécia a carga tributária seja semelhante à nossa, como lá não há desvios o dinheiro permite que não se pague nada ao Estado no acionamento de causas de valor de até um milhão de coroas - como apontam os mesmos Mauro Cappeletti e Bryant Garth mencionados acima) porque a questão envolve discussões acerca de valores devidos ao Erário Público (custas tem natureza tributária e despesas processuais tem natureza de preço público), o que poderia acarretar, mesmo, a discussão em sede de incidência da Lei de Responsabilidade Fiscal e até da Lei de Improbidade (pelo descumprimento da legalidade ou mesmo da impessoalidade ou da moralidade em alguns casos).

Mas não se pode deixar de considerar que, na via inversa, muitas pessoas pagam uma carga tributária muito elevada (muitos trabalham cerca de quatro ou cinco meses ao ano apenas para pagar os impostos - isso sem computar as espertezas do Estado quando ele nos lesa pondo radares em velocidades absurdamente baixas em locais escondidos como modo de aumentar a arrecadação por via transversa) e que, realmente, embora tenham conseguido, com muito esforço, auferir algum patrimônio, mas que não podem ser obrigadas a vendê-lo apenas para saciar a leviatânica fúria estatal pelas titânicas custas exigidas em muitos casos.

Não se cumpririam prelados mínimos de razoabilidade ou proporcionalidade em juízos nesse sentido. O fato de uma pessoa ter um carro de luxo com dez anos de uso, não a torna mais rica ou menos necessitada do que aquele que tem um carro popular zero quilômetro. Matematicamente valem praticamente a mesma coisa, mas há acórdãos insistindo em que um veículo Pajero ou uma SW4 são sinais externos de riqueza incompatíveis com o benefício.

Ledo engano. O que a pessoa precisa demonstrar, a priori, apenas é que não tem como pagar as custas e despesas processuais, sem prejuízo de seu próprio sustento, nada mais.

E isso ganha enorme relevância em tempos de coronavírus - pandemia que, como público e notório, provocou verdadeiro tsunami na economia nacional abalando as atividades econômicas de um sem número de empreendedores no país.

Ora, o empreendedor que tem um estabelecimento que, normalmente auferiria vinte ou trinta mil reais mensais, ficou neste vinte ou trinta dias, restrito a não vender nada, tendo que pagar empregados, tributos, contas de água, aluguel etc.

Pelo óbvio que tal pessoa terá que renegociar contratos, eis que, por fato de príncipe, por políticas governamentais acertadas ou não, essa pessoa ficou sem renda e precisará mover demandas, mas o Estado certamente, pretenderá barrar o acesso dessas pessoas ao Poder Judiciário sob o argumento de que devam juntar extratos bancários ou declarações de imposto de renda.

Vai aí a confusão que esses magistrados precisam entender, necessidade do benefício não exige miséria, nem estado de miserabilidade (alguns chegam a aduzir que pelos parâmetros da Defensoria Pública somente defeririam, no Estado de São Paulo, gratuidade a quem ganhar até três salários-mínimos - confusão como se só aqueles que têm advogados públicos fizessem jus ao benefício, o que é equívoco nos termos da lei - veja-se a previsão do artigo 99 CPC no sentido de que o fato de se ter advogado privado não impede a concessão).

O fato em debate em tempos de coronavírus será a falta de liquidez do negócio e todas as previsões no sentido de que o negócio não chegará novamente no mesmo nível anterior porque as condições de crescimento se inverteram por conta da política de terra arrasada empregada na condução da economia de alguns Estados muito importantes.

Os extratos bancários dos meses anteriores não se prestarão a retratar a realidade do momento posterior à crise da pandemia, as declarações de imposto de renda - idem - e não parece adequado ou razoável que, quem pague carga tributária sueca e já receba serviços de nível venezuelano (em que pese o esforço de magistrados e serventuários que lutam arduamente para prestar serviços em condições inadequadas o que tem ocorrido é isso - decisões judiciais pessimamente motivadas - o Ministro Fux fala em estado de coisas inconstitucional na motivação das decisões judiciais, decisões judiciais motivadas em uma lauda, em dois parágrafos para causas de grande complexidade e por aí vai) ainda tenha que se desfazer do patrimônio de uma vida toda (as vezes um carro com oito ou dez anos de uso, um terreno para os tempos da velhice já que a Previdência não ampara ninguém e irá amparar menos ainda e por aí vai) para pagar custas e despesas processuais.

O que precisa ficar claro na mente dos julgadores é que o empresário, sobretudo o pequeno e o médio, não foram os causadores da pandemia ou de seus efeitos, não se deve deles exigir que paguem custas titanicas para rever contratos bancários (com a inadimplência atingirão valores astronômicos). O extrato do mês anterior será prova imprestável para negar o benefício, o mesmo se diga da declaração de imposto de renda, melhor que cada pedido seja apresentado, já com essas ponderações, dizendo que tais documentos seriam provas irrelevantes e desnecessárias (realmente inúteis, burocracias sem sentido) apresentando-se descritivos detalhados de como a crise do coronavirus impactou o negócio e, como, momentaneamente, haverá necessidade de concessão do benefício.

Outro detalhe pouco explorado pelos advogados, em muitos casos, tal como na previsão do artigo 98 CPC e em leis estaduais de custas, existem situações de diferimento do pagamento das custas ao final pelo perdedor, o que pode ser pedido em caráter alternativo, e, ainda mais, o atual CPC possibilita que se peça o parcelamento das custas, embora a lei não discipline o número de parcelas, convém que se pleiteie pelo número máximo de vezes possível - em um processo de minha esposa, em outro Estado da Federação ela pleiteou, e modo motivado, e obteve o parcelamento das custas em dez vezes, como pleito alternativo, mediante comprovação documental de que aquilo seria o cabível na realidade do cliente.

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Não se pode negar o acesso à jurisdição, isso é coisa muito séria. Ademais, não se pode esquecer de que a própria Constituição Federal impacta o direito privado prevendo a dignidade da pessoa humana como valor central (não seria digno exigir-se que a pessoa venda o que tem para saciar a sucia estatal) bem como a solidariedade social (artigo 3º CF) proibindo-se o desencadeamento de processos de marginalização e exclusão social - exigir-se que alguém venda um carro para pagar oito, dez mil reais de custas em momento de grave crise não gerada pelo necessitado é medida extremamente draconiana a demandar que se questione a própria constitucionalidade do expediente a luz do controle difuso de constitucionalidade.

Da mesma forma, fala-se hoje em princípio da concretude. Ora o juiz, ao aplicar a lei, deve fazê-lo de acordo com as exigências do bem comum e dos fins sociais a que a lei se destina (a questão da socialidade tão cara a doutrinadores como Miguel Reale e Roberto Senise Lisboa e que se encontra descrita no artigo 5º LINDB), sendo certo que, sob tal ética, deve o juiz igualmente impelido pela concretude, buscar harmonizar suas decisões com o espírito da lei - l´spirit de la loi - preconizado como Montesquieu - não se pode sair a cata de interpretações exóticas para que, de modo transverso, se esvazie a garantia legal, ou sua concretude, com fórmulas vazias.

Recentemente minha esposa descreveu em um processo, um caso de uma viúva de pedreiro que pagava aluguel do cômodo em que morava, aluguel este que era pago, não em pecúnia, mas com bicos de pedreiro efetuados pelo seu recém falecido esposo - a esposa era aposentada - certos fatos valem mais do que mil palavras - veio a decisão padrão, certamente lançada pelo escrevente ou estagiário, mas assinada por sua Exa. determinando a exibição de não sei quantos documentos da viúva E DE SEU CÔNJUGE, além de documentos fiscais.

Interpostos embargos de declaração de um modo até deselegante veio a informação de que viúvas não tem privilégios sobre ninguém, não são cidadãos melhores ou piores que outras pessoas e que devem comprovar que precisam da gratuidade, e, ainda mais, apontou-se que o STJ autorizaria o juízo a desconfiar da declaração de hipossuficiência quando houvesse indícios de potencialidade econômica.

Para esses casos vale a máxima latina quosque tandem abutere patientia nostra, ó Catilina. Como daria mais trabalho agravar, minha esposa foi até a pobre viúva e obteve o calvário burocrático para sustentar o gólgota imposto ilegalmente pelo Juízo. O cidadão, no entanto, não pode mais ficar exposto a esse tipo de situação - o acesso à Justiça pressupõe desburocratização e exigir o mínimo documental possível - notadamente porque juízes tem acesso a um sem número de senhas que lhes permite acessar sites e conferir o teor das informações sem que ter atribuir esse ônus ao advogado ou às partes.

Muitos falam em colaboração com o juízo, mas se esquecem de que a colaboração visada pelo Ministro Fux ao redigir o CPC atual com a Comissão de Notáveis foi no sentido de conferir eficiência ao processo, no cumprimento dos Transnational principles rules - propostos pela ALI e pela Unidroit, esta última capitaneada por ninguém menos que Michele Taruffo - ou seja, a colaboração é uma via de mão dupla, os juízes devem colaborar com as partes (não parece lícito que a parte pague custas, mas mesmo assim se terceirize para o advogado o custo de sair a cata de um sem número de documentos, de modo desnecessário e improdutivo, por jogos semânticos de control c e control v dados pela serventia - o custo da hora trabalhada do advogado ninguém pensa em pagar, com a maior vênia possível).

E a hora trabalhada se torna irrepetível - ninguém a devolverá ao patrono (numa Comarca da região de Campinas um juiz determina que em casos de réu em lugar incerto os advogados tenham que trazer aos autos comprovante de que o réu não tenha conta nas casas Bahia, nas Lojas Pernambucanas e etc - isso vai muito além da colaboração isso beira as raias do abuso - sou professor de curso de pós graduação com acesso privilegiado a esse tipo de informação trazida por meus alunos)

Lanço isso como sugestão: a Ordem dos Advogados do Brasil deveria enviar um ofício aos Tribunais do país dando conta do problema solicitando a uniformização do tratamento nesses casos, sobretudo agora na crise do coronavirus, lembrando aos magistrados cautelarmente que fazer exigência não expressa de modo previsto em lei pode tipificar crime de abuso de autoridade.

Não se quer criar atrito ou animosidade com quem quer que seja. Mas tenho dito isso em meus artigos às escâncaras: o tempo se tornou nossa commodity mais valiosa e, infelizmente, temos visto que a máquina judiciária, por vezes, de modo injusto, nos toma muito tempo indevidamente, em desvios improdutivos que poderiam ser evitados com uma melhor gestão. Daí minha sugestão para que a OAB entabule uma cartilha com sugestões deste tipo e faça ingerências lícitas junto aos órgãos de comando do Poder Judiciário.

Do contrário, somente em agravos de questão de coronavírus ou de concessão de gratuidade neste período, perder-se-ão horas, horas e horas em milhares de recursos, com custo extremamente pesado para a sociedade. Será mais barato deferir desde logo que levar tudo às últimas raias. É como penso.

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Sobre o autor
Julio César Ballerini Silva

Advogado. Magistrado aposentado. Professor da FAJ do Grupo Unieduk de Unitá Gaculdade. Coordenador nacional dos cursos de Pós-Graduação em Direito Civil e Processo Civil, Direito Imobiliário e Direito Contratual da Escola Superior de Direito – ESD Proordem Campinas e da pós-graduação em Direito Médico da Vida Marketing Formação em Saúde. Embaixador do Direito à Saúde da AGETS – LIDE.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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