A dúvida jurídica razoável e o afastamento dos danos morais

30/09/2019 às 21:30
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O direito é imprevisível. Mesmo havendo lei, há várias interpretações possíveis e aplicações de princípios jurídicos. Isto pode gerar em um caso couma dúvida jurídica razoável. Este artigo pretende explicar brevemente como o direito trata tal dúvida.

O direito é, por natureza, imprevisível. Mesmo havendo texto expresso de lei, há várias interpretações possíveis dos preceitos, e, ainda aplicações de princípios jurídicos. Em razão disto, há diversos embates hermenêuticos para cada norma, em busca da prevalência de uma interpretação. Ocorre que a primazia de uma interpretação não deve prejudicar em excesso quem agiu de acordo com uma outra interpretação também possível.

Recásens Siches defendia que a lógica do direito não é a do racional, e sim a do razoável.  Portanto, quando há uma interpretação de uma norma por parte de algum tribunal em um caso concreto, deve ser considerado não só a interpretação mais racional que o Tribunal possa ter, mas também a razoabilidade da aplicação que as partes poderiam ter no caso concreto.

A essa razoabilidade na aplicação da regra que se observa na atuação de uma das partes no caso concreto pode se dar o nome de dúvida jurídica razoável. Ou seja, quando ocorre no caso concreto uma atitude que pode ser considerada apropriada, aceitável ou legítima, ocorre a dúvida jurídica razoável.

Havendo uma dúvida jurídica razoável, a ilegalidade é designada de legítima e, nessa condição, não insinua má-fé, pois apenas corresponde a uma intepretação razoável que foi derrotada perante o órgão competente para dar a palavra final.

Quando há dúvida jurídica razoável, então, o juiz deve se servir de um juízo de razoabilidade para afastar efeitos jurídicos desproporcionais. Neste ponto, leva-se em conta o grau de dúvida jurídica que há.

O fundamento deste raciocínio pode ser dividido em dois pontos principais:

Primeiramente o princípio da legalidade, pois é preciso haver lei prévia, anterioridade da lei. Quando há dúvida jurídica razoável, não há regra prévia (a regra de interpretação específica).

O segundo fundamento é a possibilidade da modulação de efeitos. A lei da Ação Direta de Inconstitucionalidade fala de modulação dos efeitos do controle de constitucionalidade, e embora não se use esta expressão, pode-se também modular os efeitos na dúvida jurídica razoável.

O Código de Processo Civil de 2015 trouxe previsão textual, permitindo a aplicação de eficácia ex nunc para nova jurisprudência (pelo art. 927, §3º).

“§ 3o Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.”

É de se ressaltar que a dúvida jurídica razoável pode ser aplicada a qualquer caso, ainda que não tenha fundamento expresso, pois faz parte da teoria geral do direito.

Um exemplo da utilização do referido instituto foi no julgamento do Resp. 1645762/BA, julgado pela Terceira Turma do STJ, em 2017. A referida decisão trata de negatória de cobertura por parte do plano de saúde de tratamento para obesidade mórbida.

O Tribunal Superior decidiu que é devida a cobertura do tratamento em clínica de emagrecimento, pois é o tratamento adequado para a doença que o paciente possui e a doença é coberta pelo plano de saúde, portanto, o tratamento também deve ser.

O Tribunal, porém, decidiu que não haveria condenação em danos morais, apesar de em regra ser cabível a condenação em danos morais para negativa de tratamento a doenças cobertas pelo plano.

A regra de que a recusa indevida pela operadora de plano de saúde gera dano moral é em razão do agravamento do sofrimento psíquico do paciente, não constituindo, portanto, mero dissabor. A recusa indevida configura, portanto, hipótese de inadimplemento contratual.

No caso em análise, porém, não se aplica a regra acima apresentada, pois decidiu-se que foi desconfigurada a quebra dos deveres anexos do contrato em razão da dúvida jurídica razoável.

Ora, se a boa-fé objetiva, principal dever anexo dos contratos, se refere ao que pode ser esperado do homem médio na situação em concreto, e há uma dúvida jurídica razoável, não pode ser imputada a má-fé e as consequências jurídicas da quebra da boa-fé. Isto porque a dúvida jurídica razoável traz à boa-fé objetiva, ou seja, à conduta esperada.

Portanto, não configurada a quebra dos deveres anexos em razão da dúvida jurídica razoável, afasta-se a obrigação de indenizar.

A dúvida jurídica razoável foi configurada no caso, pois, é razoável para o plano de saúde considerar internação na clínica de emagrecimento como meramente estética, pois, não é comumente o tratamento indicada pelos médicos para o tratamento da doença que possuía o beneficiário do plano.

Portanto, a decisão foi bem ponderada, na medida em que reconhece o direito, mas considera a dúvida jurídica razoável do plano de saúde para a não condenação ao pagamento de danos morais. Não impondo, portanto, uma regra que possui interpretação não anteriormente firmada em prejudicialidade do plano.

Sobre a autora
Laísa Brito de Sousa

Sócia no Escritório HENRIQUE DE SOUSA & ADVOGADOS. Bacharel em Direito pelo UniCeub. Pós-graduanda em Advocacia Empresarial, Contratos, Responsabilidade Civil e Família.

Informações sobre o texto

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