Peculiaridades do Juizado Especial da Fazenda Pública.

Regras distintas da Lei n.º 9.099/95

17/10/2018 às 10:10
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A Lei nº 12.153 de 2009 que regulamenta os Juizados Especiais da Fazenda Pública apresenta algumas regras distintas daquelas aplicáveis ao Juizados Especiais Cíveis, que embora sejam muito importantes, na prática nem sempre são lembradas.

A Lei nº 12.153 de 22 de dezembro de 2009 regulamenta os Juizados Especiais da Fazenda Pública no âmbito dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios; de modo que a Lei 9.099/95 e o Código de Processo Civil serão aplicáveis subsidiariamente, apenas na hipótese de inexistência de norma própria do Juizado Especial da Fazenda Púbica regulando o assunto.

Há, portanto, certas diferenças entre o Juizado Especial Cível e o Juizado Especial da Fazenda Pública (ao qual compete o julgamento de ações propostas em desfavor de entes públicos), e entre este e o Procedimento Comum, que não raras as vezes são ignoradas pelo representante da parte autora.

A primeira distinção que se destaca é a competência, que no Juizado Especial da Fazenda Pública é absoluta (§4.º do art. 2.º), de modo que será reconhecida e declarada de ofício, caso a parte demandada não a suscite. Desta forma, se a parte, por equívoco, ajuizar ação contra qualquer legitimado passivo perante a Vara da Fazenda Pública, e, por exemplo, o valor da causa for de até sessenta salários mínimos, aquele juízo remeterá os autos para processamento e julgamento pelo Juizado Especial da Fazenda Pública. Nota-se, portanto, flagrante diferença do que ocorre no Juizado Especial Cível, em que vigora o caráter opcional, ou seja, à parte que demanda por pretensão de até quarenta salários mínimos pode escolher entre ingressar na Justiça Comum ou na Justiça Especializada.

O doutrinador Alexandre Freitas Câmara[1] considera inconstitucional a regra da competência absoluta, senão vejamos:

 

“Em primeiro lugar, a inconstitucionalidade decorre da possibilidade de o microssistema dos Juizados Especiais Cíveis Federais, assim como o dos Juizados Especiais da Fazenda Pública produzir resultados inaceitáveis: não são cabíveis todos os recursos existentes no sistema processual comum; não é cabível o ajuizamento de ação “rescisória”; é limitada a possibilidade de produção de provas. Em segundo lugar, a tutela jurisdicional que através dele se presta é diferenciada, mas esse sistema é estabelecido por opção do legislador e não pela natureza do direito material, o que faz com que tenha o mesmo de ser opcional para o demandante (...)”.

 

 

Quanto à competência material, enquanto a Lei n.º 9.099/95 estabelece o valor de quarenta salários mínimos como limite para processamento e julgamento do feito no processo no Juizado Especial Cível (art. 3º, I), a Lei nº 12.153/09 fixa o valor máximo da causa de até de sessenta salários mínimos (art. 2º). De acordo com o FONAJE – Fórum Nacional dos Juizados Especiais, para fins de fixação da competência no caso de litisconsórcio ativo, considerar-se-á individualmente o valor de até sessenta salários mínimos (Enunciado 02). E, consoante o FONAJEF, “na aferição do valor da causa, deve-se levar em conta o valor do salário mínimo em vigor na data da propositura de ação” (Enunciado 15). 

Ademais, Lei nº 12.153/09 estabeleceu, de maneira excludente, as causas que não serão processadas e julgadas perante o Juizado Especial da Fazenda Pública: as ações de mandado de segurança, de desapropriação, de divisão e demarcação, populares, por improbidade administrativa, execuções fiscais e as demandas sobre direitos ou interesses difusos e coletivos; as causas sobre bens imóveis dos Estados, Distrito Federal, Territórios e Municípios, autarquias e fundações públicas a eles vinculadas; e as causas que tenham como objeto a impugnação da pena de demissão imposta a servidores públicos civis ou sanções disciplinares aplicadas a militares (§1.º, art. 2.º).

Por outro lado, no tocante à competência territorial não há distinção entre as regras, já que, na ausência de disposição específica na Lei n.º 12.153/09, deverão ser aplicadas subsidiariamente outras normas, sendo primeiramente a Lei n.º 9.099/95 (art. 4.º), e, caso haja omissão, incidirá o CPC. Como a competência do Juizado da Fazenda Pública é absoluta, a competência territorial não se prorroga, devendo o processo ser extinto sem julgamento de mérito caso a ação tenha sido proposta em juízo incompetente, nos termos do art. 51, III da Lei n.º 9.099/95, aplicável subsidiariamente por força do art. 27 da Lei n.º 12.153/09. Tal regra fora confirmada pelo Enunciado 89 do FONAJE, que dispõe que A incompetência territorial pode ser reconhecida de ofício no sistema de juizados especiais cíveis”. Vê-se, portanto, que em sede de Juizados Especiais vigora uma exceção à relatividade da incompetência como regra geral do Código de Processo Civil.

Nas Comarcas onde não haja Juizado Especial da Fazenda Pública instalado, o FONAJE dispõe que as ações devem ser distribuídas junto às Varas Comuns que abarquem a competência para a Fazenda Pública, ou perante aquelas designadas pelo Tribunal de Justiça, respeitando-se o rito estabelecido na Lei n.º 12.153/09 (Enunciado 09).

A capacidade processual no Juizado Especial da Fazenda Pública também não se confunde com os legitimados a demandar no Juizado Especial Cível. A Lei n.º 9.099/95 dispôs expressamente sobre aqueles que podem e não podem demandar no Juizado Especial Cível (art. 8.º), contudo, a Lei n.º 12.153/09 não repetiu o rol de vedações estabelecido naquela lei, tendo apresentado sua própria relação pelos legitimados ativos (art. 5.º). Destarte, as vedações indicadas na Lei n.º 9.099/95 somente incidirão para os Juizados Especiais da Fazenda Pública caso não confrontem com a Lei específica n.º Lei 12.153/09. A respeito do assunto, a doutrina se posiciona[2]: “Nesse compasso, em regra, dever-se-á observar, quanto à capacidade processual perante os Juizados Especiais da Fazenda Pública, o art. 5.º da Lei n.º 12.153/09, aliadas às restrições que com o artigo 8.º da Lei n.º 9.099/95 não conflitar”.

Quanto ao incapaz, diversamente do que ocorreu com a Lei n.º 9.099/95 (art. 8.º), a Lei n.º 12.153/09 não vedou expressamente a possibilidade de ajuizamento de ações, o que, inclusive, causou grande celeuma a respeito. Diante disso, há quem defenda a legitimidade do incapaz (devidamente assistido ou representado) para demandar perante o Juizado Especial da Fazenda Pública. Nessa linha, o doutrinador Ricardo Cunha Chimenti[3] entende que deverá ser admitido como autor tanto a pessoa natural capaz quanto a incapaz perante o Juizado Especial da Fazenda Pública, citando-se o art. 6.º, I da Lei n.º 10.259/2001, bem como o Enunciado 5 das Turmas Recursais dos Juizados Especiais Federais do Rio de Janeiro e o Enunciado 27 da Turma Recursal do Juizado Especial Federal Previdenciário de São Paulo.

Por outro lado, há quem defenda a aplicação subsidiária da Lei n.º 9.099/95, prevista no art. 27 da Lei n.º 12.153/09, reconhecendo, portanto, que o incapaz não pode propor ação perante o Juizado Especial da Fazenda Pública. A propósito, no encontro dos Juízes dos Juizados Especiais do TJMG – ENJESP foi editado o Enunciado n.º 11, segundo o qual, “O incapaz não está legitimado a propor ação perante o Juizado Especial da Fazenda Pública, à luz do art. 8º da Lei nº 9.099/95 combinado com o art. 1º da Lei nº 12.153/09”.

Contudo, em 02.10.2017 o Superior Tribunal de Justiça confirmou a aceitação dos incapazes como autores perante os Juizados Especiais da Fazenda Pública, ao emitir a tese n.º 4, que definiu ser da competência dos Juizados Especiais da Fazenda Pública a defesa de direitos ou interesses difusos e coletivos exercida por meio de ações propostas em substituição processual[4].

Com relação à capacidade processual dos presos no Juizado Especial da Fazenda Pública, assim como no caso do incapaz, o art. 8.º da Lei n.º 9.099/95 veda expressamente a possibilidade de ajuizamento de ação no Juizado Especial Cível, contudo, a Lei n.º 12.153/09 não o fez. Portanto, igualmente há posicionamentos em ambos os sentidos, a diferença é que o Superior Tribunal de Justiça ainda não se manifestou a respeito do tema.

As pessoas jurídicas foram autorizadas a figurarem como autoras nos Juizados Especiais, com ressalvas. A OSCIP - Organização da Sociedade Civil de Interesse Pública e as Sociedades de Crédito ao Microempreendedor foram expressamente autorizadas pelo art. 8.º, §1.º, III e IV da Lei n.º 9.099/95, a demandarem perante o Juizado Especial Cível. No entanto, a Lei n.º 12.153/09, ao prever o rol taxativo dos legitimados ativos e passivos perante os Juizados da Fazenda Pública, não inseriu as referidas entidades, o que leva a crer que elas não estão autorizadas a demandar na dita Justiça Especializada. Essa é a conclusão das doutrinadoras Karina Veloso Gangana Tanure e Lívia Teixeira de Paula[5].

Quanto à massa falida e o insolvente civil, tendo em vista que a Lei n.º 12.153/09 nada dispõe a respeito, entende-se que é aplicável ao Juizado Especial da Fazenda Pública, a vedação contida na Lei n.º 9.099/95 de serem partes no rito sumaríssimo dos Juizados Especiais, senão vejamos o disposto na doutrina de Karina Veloso Gangana Tanure e Lívia Teixeira De Paula [6]:

 

“Nos Juizados da Fazenda Pública, além de não estar elencada taxativamente pelo artigo 5.º, I e II da Lei n.º 12.153/2009, não sendo considerada pessoa natural ou jurídica, possui particularidades que vão de encontro à sistemática célere e simples dos Juizados Especiais, tais como: a complexidade do processo de falência, que inclui arrecadação de bens e créditos do falido; a competência do juízo da falência como universal (artigo 76 da Lei n.º 11.101/2005), com vis atrativa.

(...)

O artigo proibitivo reconhece a complexidade do processo de insolvência, a necessidade de se aferir os efeitos da sentença declaratória proferida, as dificuldades no tocante à arrecadação de bens do devedor insolvente e o juízo universal, o que coloca em evidente descompasso com o rito célere, simples e informal que permeia os Juizados Especiais”.

 

Diversamente da Lei n.º 9.099/95, que não previu hipótese de pedido liminar, nem tampouco de qualquer recurso em face de eventual decisão interlocutória a respeito; o art. 3.º da Lei n.º 12.153/09 dispôs que O juiz poderá, de ofício ou a requerimento das partes, deferir quaisquer providências cautelares e antecipatórias no curso do processo, para evitar dano de difícil ou de incerta reparação”. Conclui-se, portanto, que a aludida lei limitou o cabimento das tutelas provisórias de urgência incidentais cautelares ou antecipadas perante o Juizado Especial da Fazenda Pública, não sendo cabíveis, pois, as tutelas antecipadas e cautelares antecedentes, já que não abrangidas pela legislação especial - Lei n.º 12.153/09.

A Lei n.º 12.153/09, em observância ao critério da celeridade que rege os processos em sede de Juizados Especiais, inovou quanto aos prazos concedidos à Fazenda Pública, de modo que, diversamente do que ocorre no Procedimento Comum (art. 183 do CPC), nos Juizados Especiais da Fazenda Pública não haverá prazo diferenciado para a prática de qualquer ato pelas pessoas jurídicas de direito público demandadas (art. 7.º). Além de a regra ser expressa, ela não dá margem a dúvidas, haja vista o disposto no §2.º do art. 182 do CPC, de que Não se aplica o benefício da contagem em dobro quando a lei estabelecer, de forma expressa, prazo próprio para o ente público”.

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Da mesma forma, em que pese o benefício do prazo em dobro concedido à Defensoria Pública no Procedimento Comum (art. 186 do CPC), o FONAJE dispôs expressamente que nos Juizados Especiais da Fazenda Pública não haverá prazo diferenciado para a Defensoria Pública (Enunciado 03).

Ainda no tocante aos prazos, após a entrada em vigor do CPC/2015, mais especificamente quanto à inovação trazida pelo art. 219, muito se falou acerca da possibilidade de aplicação da contagem do prazo em dias úteis nos Juizados Especiais, incluindo no da Fazenda Pública. Para sanar qualquer dúvida, portanto, o FONAJE editou o Enunciado 13, segundo o qual, “A contagem dos prazos processuais nos Juizados da Fazenda Pública será feita de forma contínua, observando-se, inclusive, a regra especial de que não há prazo diferenciado para a Fazenda Pública - art. 7º da Lei 12.153/09”.

Diferentemente do que ocorre no Procedimento Comum, portanto, nos Juizados Especiais da Fazenda Pública os prazos serão contados de forma contínua. Nos Juizados Especiais Cíveis aplica-se a mesma regra, conforme disposto no Enunciado 165 do FONAJE.

Cumpre destacar que malgrado alguns Tribunais tenham se posicionado a respeito de adotarem a contagem dos prazos em dias úteis nos Juizados Especiais, a grande maioria dos Estados observa a orientação do Fórum Nacional dos Juizados Especiais, e, portanto, a contagem contínua. As partes e seus advogados, portanto, deverão se atentar para o critério adotado pelo respectivo Tribunal onde tramita sua ação, a fim de evitar incorrer em preclusão.     

No presente trabalho pretendeu-se, destarte, demonstrar algumas das diferenças entre as regras do Juizado Especial Cível e as do Juizado da Fazenda Pública, bem como entre as regras deste e do Procedimento Comum; bem como que, em que pese a aplicação da Lei n.º 9.099/95 e do CPC ao Juizado Especial da Fazenda Pública, esta se dá de forma subsidiária, apenas quando a Lei n.º 12.153/09 for omissa, e quando as regras não forem incompatíveis, devendo a Lei especial prevalecer sobre a geral, em atenção às regras de antinomia das leis.

A observância das regras específicas é de extrema importância, sob pena de eventual equívoco resultar, por exemplo, na intempestividade de algum ato e consequente preclusão.


[1] CÂMARA, Alexandre Freitas. Juizados Especiais Cíveis Estaduais, Federais e da Fazenda Pública – Uma Abordagem Crítica – 7ª Edição, Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2012, pág. 203.

[2] TANURE, Karina Veloso Gangana e DE PAULA, Lívia Teixeira. Juizados Especiais da Fazenda Pública – Particularidades em uma visão prática e integrada. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2018 - pág. 53.

[3] CHIMENTI, Ricardo Cunha – Juizados Especiais da Fazenda Pública – Comentada artigo por artigo – São Paulo: Saraiva, 2010 – pp. 64/66.

[4] http://www.stj.jus.br/SCON/jt/toc.jsp

[5] TANURE, Karina Veloso Gangana e DE PAULA, Lívia Teixeira. Juizados Especiais da Fazenda Pública – Particularidades em uma visão prática e integrada. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2018 - pág. 69.

[6] Op. cit. pág. 83.

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Sobre a autora
Daliane Magali Zanco Bressan

Advogada. Especialista em Direito e Processo do Trabalho. Juíza Leiga no Juizado Especial Cível e da Fazenda Pública da Comarca de Três Lagoas, Estado de Mato Grosso do Sul.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Eu sou advogada e atuo como juíza leiga no Juizado Especial Cível e da Fazenda Pública do TJMS, e percebi que muitos advogados confundem os procedimentos comum e especial, e sobretudo quando se trata de Juizado da Fazenda Pública. Muitos desconhecem a existência da Lei nº 12.153/09, e, inclusive, a regra da competência absoluta do Juizado da FP nas causas até 60 salários mínimos, e acabam por ajuizar as ações na Vara da Fazenda.

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