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Privacidade na sociedade da informação e o direito à invisibilidade nos espaços públicos

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3. ESPAÇOS PÚBLICOS E ESPAÇOS PRIVADOS

A vivência na sociedade moderna perpassa, diuturnamente, pela oscilação da presença do ser humano entre espaços públicos e privados. A cisão entre recônditos privados e aberturas de espaços públicos é fruto da modernidade, numa clara associação ao reconhecimento do direito de propriedade, e daquilo se possa garantir de exclusivo aos indivíduos, pressuposto para em contraponto se poder falar em espaços não-privados, isto é, públicos e compartilháveis com uma coletividade.

Rousseau (2006, p. 23) apresenta uma relação de integração do indivíduo que, pelo contrato social, submete-se reciprocamente a espaços públicos e privados, ressaltando que “cada indivíduo, contratando, por assim dizer, consigo mesmo, acha-se comprometido numa dupla relação, a saber: como membro do Estado em face dos particulares e como membro do Estado em face do soberano”. Na visão rousseauniana, a vontade geral reflete-se na coletividade, o espaço público, sobrepondo-se ao privado.

Habermas (2003, p. 92), porém, ao investigar a modernidade, à luz da burguesia, identifica uma vital conformação do espaço público, chamado de esfera pública, em cotejo com o espaço privado, tomando-o como um fenômeno social de interação e diálogo, expondo o jusfilósofo que:

A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomada de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos.

Essa concepção permite inferir que na sociedade existem os espaços privados (íntimos), notadamente representados pela família e sociedade civil, ao passo que também existem os espaços públicos (esfera públicas) nos quais, por meio do agir comunicativo, se propiciaria a intermediação entres sociedade e Estado. Entremeando esta inter-relação atuariam os direitos fundamentais, para de um lado assegurar o princípio da autonomia privada e propriedade, e de outro o exercício das liberdades públicas. Entretanto, a participação ou mesmo a simples estada da pessoa em espaço público é apreendida com Arendt (2007, p. 59-60), que vislumbra um locus temporal-espacial de aparecimento e visibilidade, quando assim descreve:

a aparência — aquilo que é visto e ouvido pelos outros e por nós mesmos constitui a realidade. Em comparação com a realidade que decorre do fato de que algo é visto e escutado, até mesmo as maiores forças da vida íntima ... vivem uma espécie de vida incerta e obscura, a não ser que, e até que, sejam transformadas, desprivatizadas e desindividualizadas, por assim dizer, de modo a tornar-se adequadas à aparição pública.

(...)

A realidade da esfera pública conta com a presença simultânea de inúmeros aspectos e perspectivas nos quais o mundo comum se apresenta e para os quais nenhuma medida ou denominador comum pode jamais ser inventado.

Martins (2005, p. 157), por sua vez, pressupõe um aspecto diferenciado dos espaços públicos, altercando que “em termos sociais, todavia, o espaço público designa a constituição de uma intersubjectividade prática, do reconhecimento recíproco como sujeitos, da ligação das pessoas e do encadeamento das suas acções na cooperação social”. E nesse propósito, Habermas (2003, p. 93), prospecta que

(...) as esferas públicas ainda estão muito ligadas aos espaços concretos de um público presente. Quanto mais elas se desligam de sua presença física, integrando também, por exemplo, a presença virtual dos leitores situados em lugares distantes, de ouvintes ou espectadores, o que é possível através da mídia, tanto mais clara se torna a abstração que acompanha a passagem da estrutura espacial das interações simples para a generalização da esfera pública.

A par dos espaços públicos, os espaços privados apresentam-se como aqueles destinados ao exercício das faculdades privativas do ser humano que se quer deixar a salvo do conhecimento alheio, sobremodo entrelaçados com os ideais de privacidade, intimidade e sigilo. Nesse aspecto, Arendt (2007, p. 61) pondera que a “esfera pública só tolera o que é tido como relevante, digno de ser visto ou ouvido, de sorte que o irrelevante torna-se automaticamente assunto privado”.

A toda evidência, a dicotomia entre espaços públicos e privados identifica-se, num primeiro momento, sob o aspecto físico e espacial, tomando por base espaços físicos. Não se pode olvidar que o reconhecimento de um ambiente ser espaço privado ou público também está condicionado a um determinado momento histórico, e até mesmo no contingente cultural de determinada comunidade, pois quanto mais individualista for o pensamento cultural, mais espaços privados existirão, e do contrário, quando mais coletivo e transcendente ao indivíduo for determinada cultura, avolumar-se-ão os espaços públicos.

Ao presente estudo importa, pois, a qualificação dos espaços públicos e privados por seu cunho institucional e jurídico, na linha prelecionada por Martins (2005, p. 158):

Por sua vez, pelo critério institucional ou jurídico, são qualificados como públicos os lugares ou os problemas que relevam de uma instituição pública. Neste caso, o privado opõe-se ao público e o segredo ou a inacessibilidade constituem a condição da sua protecção. Podemos falar então do domicílio ou da empresa, que relevam de uma autoridade privada, e das ruas ou das praças, que relevam da ordem pública. Dada esta incerteza, fica claro que não existe um espaço público natural e que a nossa atenção deve recair não apenas na evolução e na porosidade da fronteira entre público e privado, mas também na evolução das significações que estas noções revestem, por exemplo, nas deslocações entre uma acepção física concreta e uma acepção imaterial do espaço público.

De toda forma, a fronteira entre espaços públicos e privados nem sempre é pressentida e facilmente identificada, dado que experimentam um latente processo de imbricação, pela própria dinâmica dos sujeitos neles insertos e por meio deles reciprocamente envolvidos. Nesse contexto, a mediação tecnológica, característica da Sociedade da Informação, que propicia o trânsito entre tais espaços e fomenta o esmaecimento de barreiras entre eles, merece urgente atenção.


4. DIREITO À “INVISIBILIDADE” NOS ESPAÇOS PÚBLICOS

Como alhures visto, entre direitos fundamentais essenciais do ser humano está a privacidade, um verdadeiro direito proprietário de se ver a salvo de toda e qualquer intromissão alheia, nos moldes tencionados por Doneda (2000, p. 113):

O surgimento da doutrina do right to privacy, em matiz fortemente identificado com o direito ao isolamento, corresponde justamente a um dos períodos de ouro da sociedade burguesa norte-americana, o final de século passado.

(...)

Tomado como garante do isolamento e da solidão, o direito à privacidade não se aprestava exatamente como uma realização de exigências naturais do homem, mas sim de uma classe.

Se a privacidade representa o direito de ser deixado em paz, traduzido da célebre fórmula do direito de estar só construída pelo magistrado norte-americano Cooley (DONEDA, 2000, p. 113), instiga saber se há campo e possibilidade de sua incidência nos espaços públicos, onde pairam a visibilidade tratada por Arendt (2007, p. 59-60) e os processos comunicativos enfocados por Habermas (2003, p. 92-93).

O simples fato de o indivíduo apresentar-se em espaços públicos não permite concluir que se despiu de toda a proteção natural oriunda da privacidade. Ainda que fora de seu reduzido universo particular, é certo que conserva escudo contra a intromissão alheia. Tal concepção engloba todo o universo de pessoas da comunidade, tenha alguma delas ou não qualquer participação pública de maior expressão. Mesmo nestes casos, quando em mira pessoas públicas, a doutrina reconhece que não abandonam por completo os obstáculos da privacidade em face das investidas alheias. Mendes e Branco (2011, p. 321-322) dedilham a questão:

Por vezes, diz-se que o homem público, i. é, aquele que se pôs sob a luz da observação do público, abre mão da sua privacidade pelo só fato do seu modo de viver. Essa impressão é incorreta. O que ocorre é que, vivendo ele do crédito público, estando constantemente envolvido em negócios que afetam a coletividade, é natural que em torno dele se avolume um verdadeiro interesse público, que não existiria com reação ao pacato cidadão comum.

(...)

Fatos desvinculados do papel social da figura pública não podem ser considerados de interesse público, não ensejando que a imprensa invada a privacidade do indivíduo.

Como se nota, a doutrina supracitada admite um arrefecimento da proteção à privacidade da pessoa pública (políticos, artistas, celebridades em geral), tão-somente quanto a fatos relevantes ao papel social, que despertem a importância para o interesse público, sendo que os mesmos autores advertem que “decerto que interesse público não é conceito coincidente com o de interesse do público” (MENDES e BRANCO, 2011, p. 321) [grifou-se].

Logo, se nem mesmo a figura pública é desnudada de toda sua privacidade nos espaços públicos, menos ainda o será o cidadão comum, o homo medius, cuja existência e presença é desimportante para o interesse público. Porém, ainda que a assertiva afigure-se lógica e razoável, o Superior Tribunal de Justiça, em decisão datada do ano de 2004, externou posição em sentido diverso:

DIREITO CIVIL. DIREITO DE IMAGEM. TOPLESS PRATICADO EM CENÁRIO PÚBLICO. Não se pode cometer o delírio de, em nome do direito de privacidade, estabelecer-se uma redoma protetora em torno de uma pessoa para torná-la imune de qualquer veiculação atinente a sua imagem. Se a demandante expõe sua imagem em cenário público, não é ilícita ou indevida sua reprodução pela imprensa, uma vez que a proteção à privacidade encontra limite na própria exposição realizada. Recurso especial não conhecido. (STJ – 4ª Turma - REsp 595.600/SC - Rel. Min. Cesar Asfor Rocha – j. 18.03.2004 – DJ 13.09.2004. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 05.03.2013) [grifou-se].

Em que pese os argumentos do julgado acima, não se pode confiar numa suposta cláusula tácita de consentimento à exposição e apropriação da presença pessoal pelo simples fato de o indivíduo apresentar-se em determinado espaço público. Considerando que a privacidade visa à proteção de direitos de personalidades preciosos como à honra e imagem, indisponíveis que são (art. 11, Código Civil), não há como supor que ao adentrar a um espaço público a pessoa tacitamente aceita ser alvo de toda e qualquer espécie de intervenção alheia.

Na Sociedade da Informação a questão desponta mais espinhosa preocupação, uma vez que as tecnologias de comunicação, cada vez mais rápidas e vorazes, mais acessíveis e integralizadas aos afazeres cotidianos da vida comum, a exemplo de celulares, tablets, redes de comunicação de alta velocidade, transmissão eletrônica em tempo real, criam um ambiente em que cada indivíduo é ao mesmo tempo vigilante e vigiado de todos e por todos. Martins (2005, p. 158) expõe esta evidência:

Esta questão da fronteira entre espaço público e espaço privado abre caminho à reflexão sobre a mediação técnica, sobre o modo como as novas tecnologias da informação, que incluem os media, participam da redefinição da fronteira entre público e privado, ao misturarem em permanência lugares e actividades públicas e privadas. O exemplo-tipo desta realidade é a publicitação da intimidade nos media audiovisuais e na Internet, assim como, de um modo geral, a comunicação electrónica.

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Silva (2012, p. 209-210) também se debruça sobre a questão, analisando que:

O intenso desenvolvimento de complexa rede de fichários eletrônicos, especialmente sobre dados pessoais, constitui poderosa ameaça à privacidade das pessoas. O amplo sistema de informações computadorizadas gera um processo de esquadrinhamento das pessoas, que ficam com sua individualidade inteiramente devassada. O perigo é tão maior quanto mais a utilização da informática facilita a interconexão de fichários com a possibilidade de formar grandes bancos de dados que desvendem a vida dos indivíduos, sem sua autorização e até sem seu conhecimento.

A questão relevante é que nos espaços públicos da Sociedade da Informação cada sujeito que esteja dotado de um dispositivo tecnológico capaz de captar a presença de outros, pode registrar e reproduzi-la de forma instantânea, e para um contingente indeterminado de pessoas, sem qualquer autorização prévia de tal divulgação. Em outras palavras, em poucos comandos intuitivos de um dispositivo tecnológico (celular, smartphone, tablets.) registra-se uma pessoa lendo jornal em uma praça, e no instante seguinte este registro está disponível em alguma rede social para livre consulta uma infinidade indeterminável de pessoas.

Ocorrência desta natureza representa ofensa ao direito de privacidade, que no espaço público pode ser entendido como um possível direito à invisibilidade, um direito de não se notado e de não ter a presença registrada. A rigor, apenas o consentimento expresso, inadmitindo-se consentimento tácito pela simples exposição, pode afastar a ofensa à privacidade nos espaços públicos.  Neste sentido já decidiu o STJ - Superior Tribunal de Justiça em histórica construção juscultural no ano de 2011, in verbis:

DIREITO PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR UTILIZAÇÃO INDEVIDA DE IMAGEM EM SÍTIO ELETRÔNICO. PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PARA EMPRESA ESPANHOLA. CONTRATO COM CLÁUSULA DE ELEIÇÃO DE FORO NO EXTERIOR.

1. A evolução dos sistemas relacionados à informática proporciona a internacionalização das relações humanas, relativiza as distâncias geográficas e enseja múltiplas e instantâneas interações entre indivíduos.

2. Entretanto, a intangibilidade e mobilidade das informações armazenadas e transmitidas na rede mundial de computadores, a fugacidade e instantaneidade com que as conexões são estabelecidas e encerradas, a possibilidade de não exposição física do usuário, o alcance global da rede, constituem-se em algumas peculiaridades inerentes a esta nova tecnologia, abrindo ensejo à prática de possíveis condutas indevidas.

3. O caso em julgamento traz à baila a controvertida situação do impacto da internet sobre o direito e as relações jurídico-sociais, em um ambiente até o momento desprovido de regulamentação estatal. A origem da internet, além de seu posterior desenvolvimento, ocorre em um ambiente com características de auto-regulação, pois os padrões e as regras do sistema não emanam, necessariamente, de órgãos estatais, mas de entidades e usuários que assumem o desafio de expandir a rede globalmente.

 (...)

10. Com o desenvolvimento da tecnologia, passa a existir um novo conceito de privacidade, sendo o consentimento do interessado o ponto de referência de todo o sistema de tutela da privacidade, direito que toda pessoa tem de dispor com exclusividade sobre as próprias informações, nelas incluindo o direito à imagem.

(...). (STJ – 4ª Turma - REsp 1168547/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão  j. 11.05.2010 - DJe 07/02/2011. Disponível em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 04.03.2013) [grifou-se].

Emblemático nesse campo de discussão é o caso da modelo brasileira Daniella Cicarelli, que em 2006, numa praia de Ibiza, Espanha, foi flagrada em atos lascivos e sexuais com o namorado. Em instantes, o vídeo ali captado foi lançado na Internet, espalhando-se tal qual um vírus de alta capacidade de replicação. A modelo ingressou com pedido judicial pretendendo que fosse vetada a exibição e circulação nos meios midiáticos da Internet, obtendo êxito no intento por força da decisão proferida no recurso de Agravo de Instrumento n. 472.738-4, julgado pela 4ª Câmara de Direito Privado do Estado de São Paulo, sob relatoria do Desembargador Ênio Santarelli Zuliani.

A discussão empreendida centrou-se justamente da aferição da mantença ou não do direito a privacidade por atos – no caso eróticos – praticados em espaço público, prevalecendo a tese de que:

Não soa razoável supor que a divulgação cumpre funções de cidadania; ao contrário, satisfaz a curiosidade mórbida, fontes para mexericos e ‘desejo de conhecer o que é dos outros, sem conteúdo ou serventia socialmente justificáveis’(...).

Não há motivo público que justifique a continuidade do acesso.

(...)

Tendo em vista que o vídeo não contém matéria de interesse social ou público, há uma forte tendência de ser, no final, capitulada como grave a culpa daqueles que publicaram, sem consentimento dos retratados e filmados, as cenas íntimas e que são reservadas como patrimônio privado. Portanto e porque as pessoas envolvidas são conhecidas, a exploração da imagem poderá ter um sentido e uma conotação mercantilista, o que justifica mensurar a astreinte na mesma proporção das vantagens que as requeridas pretendem auferir com a divulgação, sob pena de se tornar inócua a providência judicial (TJSP – 4ª Câmara de Direito Privado – Agravo de Instrumento 472.738-4 – Rel. Des Ênio Santarelli Zuliani – j. 28.09.2006. Disponível em: <http://www.tjsp.jus.br>. Acesso em: 05.03.2013).

O pronunciamento judicial acima incorpora, em sua justificação, os postulados encetados por Mendes e Branco (2011, p. 320-321) no tocante às pessoas de fama expostas em espaços públicos, numa visível vinculação com a relevância pública da divulgação:

Verifica-se a tendência de tomar como justificável a intrusão sobre a vida privada de alguém quando houver relevância pública na notícia que expõe o indivíduo.

(...)

O conceito de notícias de relevância pública enfeixa as notícias relevantes para decisões importantes do indivíduo na sociedade. Em princípio, notícias necessárias para proteger a saúde ou a segurança pública, ou para prevenir que o público seja iludido por mensagens ou ações de indivíduos que postulam a confiança da sociedade têm, prima facie, peso apto para superar a garantia da privacidade.

Com efeito, o caso analisado continha dois fatores que o tornaram especial a ponto de suscitar elevada argúcia na busca da solução jurídica adequada. O primeiro por se tratar de pessoa famosa, e que assim naturalmente detém menor “pretensão de retraimento da mídia” (MENDES e BRANCO, 2011, p. 321). O segundo fator consistiu em que as cenas captadas envolviam a prática de atos eróticos em local público, cuja reprovabilidade da conduta despertou a ideia de que, diante da prática consciente de ato impróprio, estariam os indivíduos envolvidos impedidos de reclamar contra a divulgação e exposição do fato.

Destaque-se as razões do voto divergente e vencido, nas palavras do Desembargador Maia da Cunha, in verbis:

Pessoas públicas, cuja popularidade atrai normalmente turistas e profissionais da imprensa em geral, particularmente os conhecidíssimos “paparazzi” da Europa, não podem se dar ao desfrute de aparecer em lugares públicos expondo abertamente suas sensualidades sem ter a consciência plena de que estão sendo olhados, gravados e fotografados, até porque ninguém ignora, como não ignoravam os autores, que hoje qualquer celular grava um filme de vários minutos com razoável qualidade.

(...)

Quem age assim em local absolutamente público, sendo pessoa pública, não pode reclamar da exposição que a mídia em geral dá pela natural curiosidade do ser humano em relação aos artistas e modelos famosos. Exposição que não passa daquela exposta pelos protagonistas, que, embalados pelo sucesso e pela paixão do momento e do lugar, não se preocuparam com a própria privacidade e intimidade. A veiculação do filme verdadeiro nada mais é do que a realidade no limite que os próprios autores explicitamente consideraram razoável quanto às suas privacidades e intimidades (TJSP – 4ª Câmara de Direito Privado – Agravo de Instrumento 472.738-4 – Rel. Des Ênio Santarelli Zuliani – j. 28.09.2006. Disponível em: <http://www.tjsp.jus.br>. Acesso em: 05.03.2013).

Com efeito, o fato de tratar-se de pessoa de notoriedade e fama a reclamar a tutela da privacidade em espaços públicos induz tônica peculiar e agudizante ao tema. Nada obstante isso, mostra-se extremamente relevante contemplar o trato à privacidade do cidadão “comum”, cuja vida cotidiana, profissional e social, não é ordinariamente alvo dos holofotes, não desperta a curiosidade e a ânsia da expectação pelo público. Nesse contexto, duas ocorrências envolvendo pessoas comuns e os meios de captação da presença próprios da Sociedade da Informação servem de mote à discussão.

O primeiro, verificado em março/2009 na cidade de Londres, quando um homem fora flagrado pelo serviço Google Street View{C}[1] com carro estacionado em frente a uma loja Sex Shop. A esposa surpreendeu-se ao ver pela Internet a imagem de seu marido captada pelo serviço, pois imaginava que o cônjuge estava em outa cidade. Segundo relata a notícia publicada no Jornal The Sun{C}[2], o fato desaguou no divórcio do casal.

O segundo caso, similar ao primeiro, é de uma mulher russa que ao buscar em serviço parecido com o Goggle Street View informações sobre determinada rua de sua cidade, acabou visualizando imagem de seu namorado na companhia de outra mulher. O fato também levou ao fim do relacionamento[3].

Como se nota, nos dois casos acima as pessoas expostas não ostentavam caracteres de pessoa de notoriedade pública. Em comum apenas a presença em espaços públicos, captada por refinados mecanismos eletrônicos e reproduzidos na rede mundial de computadores. Tanto aqui, quando no anterior caso da modelo Daniela Cicarelli, detecta-se um ponto em comum: a disseminação na rede mundial de computadores (Internet) da imagem captada em espaço público, com os efeitos deletérios que então se viu.

Nesse contexto, a indagação que se deve fazer é se no espaço público a pessoa pode opor-se à captação de sua presença, a conservação desta sua representação e, num momento posterior, sua exibição a um auditório qualquer, que na era da Sociedade da Informação representa fortemente a disponibilização na Internet. O questionamento necessário consiste em desvelar se se pode reclamar um direito à “invisibilidade” nos espaços públicos, uma prerrogativa de não ser notado, de ter sua presença e passagem efêmera, vendando seu registro e o aprisionamento daquele passado de aparição nos meios eletrônicos e midiáticos. Trata-se aqui também do chamado direito ao esquecimento, que será objeto de discussão aprofundada num próximo estudo.

À circunstância, Diniz (2002, p. 101) discute que a restrição à tutela da privacidade em espaços públicos é válida sempre que a pessoa ali não é destacada com ênfase, na medida em que o objetivo da captura é de divulgar um determinado cenário no qual a pessoa afigura-se como mero elemento acidental, secundário e, assim, desimportante. Em outras palavras, a pessoa não é o foco daquela representação. Pensamento análogo é partilhado por Mendes e Branco (2011, p. 320), para quem:

Em princípio, se alguém se encontrar num lugar público está sujeito a ser visto e a aparecer em alguma foto ou filmagem do mesmo lugar. Haveria, aí, um consentimento tácito na exposição. A pessoa não poderá objetar a aparecer, sem proeminência, numa reportagem, se se encontra em lugar aberto ao público e é retratada como parte da cena como um todo.

Na Sociedade da Informação, porém, os mecanismos de captação e registro de informações conduzem a que a imagem pessoal possa ser aprisionada para a posteridade, aniquilando o direito ao esquecimento, uma vez que a divulgação pela Internet desconhece barreiras espaciais e temporais, sem se olvidar ainda da velocidade do fluxo das informações e da intercomunicação de equipamentos e dispositivos permite a qualquer pessoa armazenar e replicar cópia daquela representação pessoa captada. A toda evidência, é um cenário diferente daquele abrangido outrora por jornais, revistas, e mesmo pela televisão.

Nesse passo, a tese de consentimento tácito na exposição em espaços públicos merece temperamento, pois se deve rememorar que se está diante de direitos de personalidade cuja proteção à sua exposição injusta advém justamente da tutela da privacidade, pois como pontua Farias (2000, p. 152-153), “se o seu titular pode exercer atos de disposição sobre o direito à própria imagem livremente, não pode privar-se totalmente do mesmo, em razão de ser esse um direito da personalidade (e portanto, inalienável, irrenunciável, inexpropriável, intransmissível e imprescritível)”.

Por razões de legítimo interesse público, especialmente em casos de saúde e segurança pública, os espaços públicos poderão ser vigiados e funcionar como ambientes de recolhimento latente da presença das pessoas. Nesta perspectiva pode haver a instalação de equipamentos como câmeras de segurança em prédios públicos, nas ruas e nas praças, mas destaca-se que as imagens e cenas captadas serão mantidas em sigilo e contra terceiros, justamente porque falta interesse público na divulgação livre, aberta e incondicionada destes registros. Nessa perspectiva, a Diretiva 95/46 CE da Comunidade Europeia identifica:

Considerando que os dados susceptíveis, pela sua natureza, de pôr em causa as liberdades fundamentais ou o direito à vida privada só deverão ser tratados com o consentimento explícito da pessoa em causa; que, no entanto, devem ser expressamente previstas derrogações a esta proibição no que respeita a necessidades específicas, designadamente quando o tratamento desses dados for efectuado com certas finalidades ligadas à saúde por pessoas sujeitos por lei à obrigação de segredo profissional ou para as actividades legítimas de certas associações ou fundações que tenham por objectivo permitir o exercício das liberdades fundamentais;

Considerando que, sempre que um motivo de interesse público importante o justifique, os Estados-membros devem também ser autorizados a estabelecer derrogações à proibição de tratamento de categorias de dados sensíveis em domínios como a saúde pública e a segurança social - em especial para garantir a qualidade e a rentabilidade no que toca aos métodos utilizados para regularizar os pedidos de prestações e de serviços no regime de seguro de doença - e como a investigação científica e as estatísticas públicas; que lhes incumbe, todavia, estabelecer garantias adequadas e específicas para a protecção dos direitos fundamentais e da vida privada das pessoas;

Em outro plano, enfim, para os casos concretos acima analisados, nota-se que o direito à privacidade merece prestígio. Porém, no primeiro caso, porque a captação da imagem teve como foco justamente as pessoas incluídas no cenário, é possível objetar-se tanto à captação e registro da imagem quanto à sua posterior divulgação e exposição. No segundo, por ser parte do cenário, mas apenas como elemento acidental, quer parecer inviável opor-se à captura, porém válido combater a exposição, divulgação e o armazenamento da representação pessoal para a posteridade, porque o direito de não ser notado reflete-se aqui na garantia de não ter sua aparição levada livremente a conhecimento de terceiros, sobremodo no universo infindável e incontrolável da rede mundial de computadores e similares.

Infere-se que na Sociedade da Informação o direito à privacidade recebe nova roupagem, descrita por Doneda (2000, p. 120) como “uma transformação na definição do direito à privacidade, do ‘direito de ser deixado em paz’ para o ‘direito a controlar o uso que outros fazem das informações que me digam respeito’”. No todo contextualizado, nos espaços públicos da Sociedade da Informação precisa ser defendida à pessoa, famosa ou não, o direito a uma passagem efêmera e delével, sem resquícios à posteridade.

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Sobre os autores
Maria Cristina Cereser Pezzella

Professora do Programa de Pesquisa e Extensão e Pós-Graduação em Direito da Universidade do Oeste de Santa Catarina UNOESC. Coordenadora/Líder do Grupo de Pesquisas (CNPq) intitulado Direitos Fundamentais Civis: A Ampliação dos Direitos Subjetivos - sediado na UNOESC. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS (1988). Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS (1998). Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná UFPR (2002). Avaliadora do INEP/MEC e Supervisora do SESu/MEC

Silvano Ghisi

Mestre em Direitos Fundamentais pela Universidade do Oeste de Santa Catarina - UNOESC (2013-2014): linha de pesquisa em direitos fundamentais civis. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Francisco Beltrão (2005). Pós-Graduado em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade de Direito de Francisco Beltrão. Especialista em Direito pela Escola da Magistratura do Paraná (2008). Professor universitário da Faculdade de Direito de Francisco Beltrão (CESUL) e da Universidade Paranaense (UNIPAR). Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEZZELLA, Maria Cristina Cereser ; GHISI, Silvano. Privacidade na sociedade da informação e o direito à invisibilidade nos espaços públicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5476, 29 jun. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/65512. Acesso em: 12 mai. 2024.

Mais informações

Texto produzido no Mestrado Acadêmico em Direito na UNOESC - Universidade do Oeste de Santa Catarina. Texto anteriormente publicado no CONPEDI (2013)

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