A Partilha em Vida e o Planejamento Sucessório

29/01/2024 às 18:44
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O Instrumento da Partilha em Vida no Planejamento Sucessório

Ainda que a morte e os impostos sejam a nossa única certeza, se mantem com muita força a ideia da nossa imortalidade por parte de muitas pessoas.

O resultado é quase sempre disputas homéricas nos inventários com processos morosos que já levaram a quebra muitos negócios no Brasil. Curiosamente a pandemia contribuiu para mudança desse quadro, além é claro dos milhares de especialistas em planejamento sucessório que anunciam nas redes sociais, transformando um assunto sério e delicado em receita de bolo, pare por alguns instantes e tente se lembrar de quantos conhecidos e amigos passaram a ser especialistas nas “famigeradas holdings familiares”, de advogado a caixa de banco aposentado sobram “autoridades” no assunto, sem falar é claro nos coachings.

O fato é que grandes tragédias servem para modificar hábitos econômicos e sociais, e esse parece ser o caso do uso do Testamento após o advento da Covid-19, onde número de testamentos realizados aumentou em 41% de 2021 quando comparado ao ano de 2020, as milhares de vidas abreviadas pela pandemia levaram milhares de brasileiros aos cartórios. Segundo uma pesquisa realizada pela Seção do Estado de São Paulo do Colégio Notarial do Brasil, e divulgada pela Anoreg (Associação dos Notários e Registradores do Brasil) o aumento no número de testamentos no Brasil apenas no primeiro semestre de 2021 foi de 41%. Logo é evidente que os números da pandemia catalisaram o interesse no assunto, mas é preciso levar em conta outros fatores, como a transformação digital que derrete empregos e empresas, e a elevação do custo do dinheiro que impulsiona um planejamento a cada dia mais afinado com a dinâmica econômica. Em outras palavras o planejamento sucessório não serve apenas para empresários, mas para todos que querem aproveitar uma vida com menos solavancos e disputas.

O panorama contemporâneo, marcado por rápidas transformações sociais, impõe um olhar atento aos regramentos jurídicos incidentes sobre a família, sobretudo no que tange ao Direito Sucessório. As mudanças nos arranjos familiares, a diversificação de modelos de convivência e as evoluções nas percepções sociais demandam um olhar cuidadoso sobre as normas que regem a transmissão patrimonial. O direito sucessório, intrinsecamente ligado à estrutura familiar, precisa acompanhar e refletir as nuances da sociedade contemporânea, garantindo a efetiva proteção dos direitos dos herdeiros e a adequada distribuição do patrimônio, adaptando-se de maneira sensível e ponderada às novas realidades que caracterizam as relações familiares nos últimos tempos.

Logo o planejamento sucessório com toda a complexidade que dele se depreende tornou-se imperativo como estratégia para evira novos conflitos.

Ao antecipar a organização e distribuição dos bens ainda em vida, essa abordagem não apenas proporciona maior agilidade no processo sucessório, mas também confere ao indivíduo a autonomia necessária para moldar a destinação de seu patrimônio de acordo com seus valores e objetivos.

Aqui abordamos uma das diversas possibilidades de planejamento, fora das propaladas “Holdings” ou do tradicional “Testamento”.

A partilha em vida, prevista no artigo 2018 do Código Civil, surge como uma alternativa, atual e capaz de mitigar as deficiências observadas nos métodos tradicionais. Nossa abordagem propõe uma antecipação da partilha de bens ainda em vida, conferindo ao dono do patrimônio um maior controle sobre a destinação dos seus bens e direitos e ainda reduzindo a carga burocrática inerente ao processo post mortem.

Reforçamos que o direito de herança está garantido pela Constituição da Republica, em seu artigo 5º, inciso XXX, do título II, como direito e garantia fundamental, assegurando a transmissão dos bens deixados em razão da morte de alguém aos seus sucessores, não havendo a apropriação pelo Estado (BRASIL, 1988).

Contudo, ainda que seja um direito fundamental garantido, é importante ressaltar que a herança não pode ser objeto de sucessão intervivos, ou seja, não há que falar de herança antes do falecimento da pessoa, existindo proibição do pacta corvina, no artigo 426 do Código Civil, que é claro ao expor que “não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva” (BRASIL, 2002).

Lembro ainda, que como fator de análise de risco, a simples existência de testamento deixado pelo titular do patrimônio não afasta a sucessão legítima, uma vez que, ainda sendo válido e eficaz, ela se dará na existência de herdeiros obrigatórios ou havendo bens excedentes nas disposições.

Primeiramente aos descendentes em concorrência com o cônjuge sobrevivente; na falta deles, aos ascendentes em concorrência com o cônjuge sobrevivente; na falta deles, ao cônjuge sobrevivente; e por último aos colaterais até o quarto grau (BRASIL, 2002). Importante mencionar que o citado dispositivo deve ser lido com a inclusão do companheiro, equiparado ao cônjuge, conforme decisão do STF.

Nos últimos anos o Direito Sucessório buscou desafogar o judiciário dos longos processos de inventários, criando diversas espécies para o procedimento, como por exemplo o citado arrolamento, contudo, tal medida não obteve o êxito esperado, tendo em vista o grande volume de processos judiciais ainda existentes. O que faz com que os diversos instrumentos de planejamento possam ser aplicados de acordo com as características, tais como: a) escolha do regime de bens; b) holding familiar para administração e partilha dos bens no futuro; c) formação de negócios jurídicos especiais; d) atos de disposição em vida; e) partilha em vida; dentre outros métodos.

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O art. 2.018 do Código Civil apresenta a chamada partilha em vida, e dispõe que “é validade a partilha feita por ascendente, por ato entre vivos ou de última vontade, contanto que não prejudique a legítima dos herdeiros necessários” (BRASIL, 2002).

Pode-se entender que partilha em vida é uma forma de antecipar a divisão do patrimônio com a intenção de prevenir conflitos e litígios entre os futuros herdeiros, de modo que seja dispensada a futura abertura de inventário.

De maneira clara, a ideia da partilha em vida é bem distinta de uma negociação de herança de pessoa viva, uma vez que o disposto no artigo 2.018 do Código Civil trata a transferência do patrimônio de forma antecipada. Portanto, produz efeitos de forma imediata.

A partilha em vida pode ser feita por meio da doação dos bens do ascendente, por ato entre vivos, desde que a legítima dos herdeiros necessários não seja prejudicada. Também pode ser realizada por testamento, no entanto, essa forma não constitui partilha em vida na sua essência, uma vez que seus efeitos não são imediatos, e enquanto o testador viver nada será transferido.

Logo, a partilha em vida pressupõe a transferência da totalidade dos bens do ascendente aos descendentes, por meio de escritura pública lavrada em tabelionato de notas, reservando para si somente o usufruto referente a determinados bens, que deverão ser suficientes para a sua subsistência. Para mais, a partilha em vida antecipa questionamentos futuros, adianta os efeitos e consentimentos da família e antecipa os efeitos sucessórios, de forma que viabiliza o planejamento patrimonial familiar, possibilitando, decerta forma, a previsibilidade do futuro.

Dessa maneira, uma vez feita a partilha em vida, os bens são transferidos de forma imediata e irrevogável aos beneficiados, que assumem a titularidade desde já. No entanto, embora consumada e irrevogável, o instituto da partilha em vida não está imune a ser declarado inválido se conter vícios ou defeitos que afetem sua validade.

Ao mesmo tempo a partilha em vida não pode ser confundida com a doação, visto que a mesma realizada por ascendente configura-se assim, como um instituto jurídico independente, especial, distinto da doação que é revogável, enquanto a partilha não é, nem pode ser. Em outros termos, “[...] a partilha feita em vida pelo ascendente, quando não seja testamento, é um instituto especial, que não se pode reger pelas regras da doação.

Na partilha não há uma liberalidade, característica da doação, mas uma renúncia ao domínio dos bens (demission debiens). O ascendente ao dividir os bens opera sua transmissão definitiva (posse e propriedade) aos beneficiários. Nesses termos, a partilha não pode ser condicional, nem onerosa, diversamente das doações que admitem condições de vários tipos. Aquele que partilha em vida não tem intuito de fazer uma liberalidade, substrato da doação, mas pode demitir de si a posse e o domínio dos bens, de renunciar a esses bens, ao seu gozo”.

O Supremo Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 730.483/MG, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, definiu que “o negócio jurídico da partilha em vida envolve cumprimento de formalidades, inclusive aceitação expressa de todos os herdeiros que não se compatibiliza com o dever de colacionar”. Ainda, a Ministra conclui que “a partilha em vida é como um inventário em vida, dispensando, até o inventário post mortem”. Em complemento, a Ministra relembrou o julgamento do STJ no REsp 6.528/RJ, de relatoria do Ministro Nilson Naves, onde foi examinada a questão e diferenciados os institutos da partilha em vida e da doação.

Nessas linhas introdutórias podemos realizar um avanço preliminar desse instituto, cabendo ainda muito por tratar dele.

 

 

Sobre o autor
Charles M. Machado

Charles M. Machado é advogado formado pela UFSC, Universidade Federal de Santa Catarina, consultor jurídico no Brasil e no Exterior, nas áreas de Direito Tributário e Mercado de Capitais. Foi professor nos Cursos de Pós Graduação e Extensão no IBET, nas disciplinas de Tributação Internacional e Imposto de Renda. Pós Graduado em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Salamanca na Espanha. Membro da Academia Brasileira de Direito Tributário e Membro da Associação Paulista de Estudos Tributários, onde também é palestrante. Autor de Diversas Obras de Direito.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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