O incidente de desconsideração da personalidade jurídica

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A desconsideração da personalidade jurídica é um incidente processual requerido quando há abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, em que o Juiz pode desconsiderar a empresa para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.

A despersonalização da pessoa jurídica, também denominada de teoria da desconsideração ou penetração, tem por finalidade impedir que os sócios, administradores, gerentes e/ou representantes legais, acobertados pela independência pessoal e patrimonial entre pessoa jurídica e os entes que a compunham, pratiquem abusos, atividades escusas e fraudulentas. Assim, o instituto está previsto nos arts. 50 do CC e 28 da lei 8.078/90, facultando ao juiz desconsiderar a autonomia jurídica da sociedade para adentrar o patrimônio dos sócios em casos comprovados de fraude que causem prejuízos ou danos a terceiros1.

A legislação é rigorosa quanto aos casos em que é possível a desconsideração da personalidade jurídica.

Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.

Entende-se como desvio de finalidade a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.

Todavia, com os crescentes abusos praticados por sócios sem escrúpulos, que utilizavam a estrutura autônoma e independente da pessoa jurídica para a prática de negócios fraudulentos e desvinculados da finalidade desta, afastando-se da responsabilidade, a jurisprudência e a doutrina começaram a perceber a necessidade de buscar mecanismos ágeis de atingir o patrimônio do sócio, em favor dos prejudicados de boa-fé, inibindo a utilização da pessoa jurídica como escudo para a prática de atos ilícitos ou abusos2.

O incidente é um debate sobre um tema paralelo ao objeto principal do processo que provoca uma suspensão momentânea no objeto principal da lide, que pode ser instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo atuando como fiscal da lei.

O pedido de desconsideração da personalidade jurídica pode ser requerido a qualquer momento do processo como forma de incidente processual, sendo cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial. Há a possibilidade de a petição inicial já prever o pedido, sendo que nessa hipótese dispensa-se a instauração do incidente e será citado o sócio ou a pessoa jurídica para compor desde logo a lide processual.

A instauração do incidente suspenderá o processo, salvo na hipótese em que o pedido é feito já na petição inicial.

O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica. Trata-se de uma referência a uma dose mínima de “aparência de bom direito”, de plausibilidade da alegação, sem o que o incidente pode e deve ser liminarmente indeferido3.

Convencido o Juiz e instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias.

Há possibilidade de produção probatória e, concluída a instrução, o incidente será resolvido por decisão interlocutória recorrível por meio de agravo de instrumento.

Se acolhido o pedido, os bens pessoais dos sócios respondem pela dívida. O principal efeito da decisão que desconsidera a personalidade jurídica da sociedade para atingir o patrimônio dos sócios (ou, ao contrário, no caso da teoria da desconsideração inversa que desconsidera a personalidade da pessoa física, para atingir a sociedade), é o de tornar possível que os atos da execução atinjam o patrimônio dos sócios (ou da empresa) estendendo a responsabilidade patrimonial a um terceiro, que passa a ser réu4.

É certo que a desconsideração da personalidade jurídica é medida excepcional que somente poderá ser deferida quando presentes e devidamente comprovados os requisitos previstos em lei, ou seja, desvio de finalidade ou confusão patrimonial, não bastando apenas a não localização de bens em nome da pessoa jurídica (ou pessoa física) executada. Portanto, somente é cabível nos casos em que a pessoa jurídica tenha sido instrumento para fins fraudulentos, configurado mediante o desvio da finalidade institucional ou a confusão patrimonial.

E quando há a confusão patrimonial, mas a pessoa jurídica é composta por mais de um sócio e não só aquele que é réu no processo? O pedido de desconsideração vai comunicar para todos os sócios, mesmo para aquele que está alheio ao processo? O assunto foi tratado no Agravo Interno no Resp 1924918SP onde foi determinado que “a desconsideração em regra deve atingir somente os sócios administradores ou quem comprovadamente contribuiu para a prática dos atos caracterizadores do abuso de personalidade jurídica (...) O STJ tem entendimento pacífico no sentido de que a desconsideração da personalidade jurídica é medida excepcional, por meio do qual se levanta o véu da sociedade empresária, qualquer que seja seu tipo societário, para alcançar o sócio ou administrador que efetivamente atuou de forma ilícita, por meio de desvio de finalidade ou confusão patrimonial. (AgInt no REsp n. 1.924.918/SP, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 12/12/2022, DJe de 14/12/2022.)”.

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Também a desconsideração da personalidade jurídica está prevista no Código de Defesa do Consumidor no artigo 28, que prevê que “o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração” e “também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.”

Vale salientar, ainda, que, quando a pessoa jurídica encerra as suas atividades de maneira informal, ou seja, sem a devida baixa nos seus registros comerciais, caracteriza-se a dissolução irregular da pessoa jurídica, o que permite, automaticamente, a desconsideração da personalidade jurídica. Neste sentido, já se decidiu: "a dissolução irregular da sociedade mediante mera paralisação de suas atividades, por si só, já constitui infração à lei" (AI n. 99.022627-1, Des. Luiz Cézar Medeiros). O Superior Tribunal de Justiça firmou entendimento nesse sentido editando a súmula nº 435: “presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente". Por fim, o assunto foi tratado pelo STJ no Tema Repetitivo 981, tendo como tese firmada “o redirecionamento da execução fiscal, quando fundado na dissolução irregular da pessoa jurídica executada ou na presunção de sua ocorrência, pode ser autorizado contra o sócio ou o terceiro não sócio, com poderes de administração na data em que configurada ou presumida a dissolução irregular, ainda que não tenha exercido poderes de gerência quando ocorrido o fato gerador do tributo não adimplido, conforme art. 135, III, do CTN”.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de direito processual civil. 2º ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil – Teoria Geral. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Lumun Juris, 2011.

Guilherme, Luiz Fernando do Vale de Almeida. Código Civil Comentado. Série Descomplicada. São Paulo: Rideel. 2013.

Primeiros comentários ao novo código de processo civil: artigo por artigo / coordenação Teresa Arruda Alvim Wambier – 1º ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

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  1. Guilherme, Luiz Fernando do Vale de Almeida. Código Civil Comentado. Série Descomplicada. São Paulo: Rideel. 2013. p. 71.

  2. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil – Teoria Geral. 9ª Ed. Rio de Janeiro: Lumun Juris, 2011. Pág. 485

  3. Primeiros comentários ao novo código de processo civil: artigo por artigo / coordenação Teresa Arruda Alvim Wambier – 1º ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, pg. 135.

  4. Primeiros comentários ao novo código de processo civil: artigo por artigo / coordenação Teresa Arruda Alvim Wambier – 1º ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, pg. 137.

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