A emendatio libelli in pejus de ofício na Justiça Militar

06/10/2022 às 14:45
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RESUMO: No processo penal comum, o juízo pode realizar a emendatio libelli de ofício, inclusive sem necessidade de nova manifestação das partes. No processo penal militar, exige-se a provocação do MPM em suas alegações escritas, assim como a oportunidade de manifestação da defesa sobre a alteração. A correlação abarcaria também questões de direito, privilegiando a ampla defesa, o contraditório e o princípio da não surpresa, mas mitigando o princípio iuria novit curia. Há flexibilização jurisprudencial, mas apenas em realção à emendatio in mellius. Entretanto, a vedação à emendatio in pejus possibilita a absolvição mesmo quando a acusação e o julgador estejam convictos de que houve crime punível, consagrando a impunidade, violando as obrigações processuais penais positivas do Estado brasileiro e configurando inconstitucionalidade circunstancial. Afastadas as pretensas soluções que violam a independência funcional do membro do MPM ou do magistrado, analisa-se a aplicação subsidiária do art. 383 do CPP, assim como a utilização dos arts. 430, 296 e 378, §1º, do CPPM e do art. 493 do CPC para fundamentar a provocação das partes, pelo juízo e de ofício, a respeito da nova qualificação jurídica, conciliando independência funcional, contraditório, ampla defesa, correlação, não surpresa e a vedação à proteção deficiente (garantismo integral). Discute-se ainda a aplicação desta proposta apenas na sessão de julgamento, analisando-se suas vantagens e desvantagens, mas sempre buscando o equilíbrio entre os direitos fundamentais do acusado e a adequada proteção dos bens jurídicos tutelados pelo sistema repressivo militar.

PALAVRAS-CHAVES: Emendario libelli de ofício. Emendatio libelli in pejus. Processo penal militar. Obrigações processuais penais positivas. Garantismo integral.

ENGLISH

TITLE: The emendatio in pejus ex officio in the Military Justice.

ABSTRACT: In common criminal procedure, the court may carry out the emendatio libelli ex officio, even without the need for a new manifestation of the parties. In military criminal procedure, the accusation must provoke it in its written arguments, and the defense must have the opportunity to express its opinion on the change. The correlation would also encompass questions of law, privileging the broad defense, the contradictory and the principle of no surprise, but mitigating the iuria novit curia principle. There is jurisprudential flexibility, but only in relation to the emendatio in mellius. However, the prohibition of the emendatio in pejus allows the acquittal even when the prosecutor and the judge are convinced that there was a punishable crime, consecrating impunity, violating the positive criminal procedural obligations of the Brazilian State and constituting circumstantial unconstitutionality. Discarding the alleged solutions that violate the functional independence of the public prosecutor or the functional independence of the magistrate, the subsidiary application of art. 383 of the Criminal Procedure Code is analyzed, as well as the use of arts. 430, 296 and 378, §1, of the Military Criminal Procedure Code and art. 493 of the Civil Procedure Code to substantiate the parties' provocation, by the judge and ex officio, regarding the new legal qualification, reconciling functional independence, contradictory, broad defense, correlation, non-surprise and the prohibition of deficient protection (whole guaranteeism). It is also discussed the application of this proposal only in the trial session, analyzing its advantages and disadvantages, but always seeking the balance between the fundamental rights of the accused and the adequate protection of the legal interests protected by the repressive military system.

KEYWORDS: Emendario libelli ex officio. Emendatio libelli in pejus. Military criminal procedure. Positive criminal procedural obligations. Whole guaranteeism.

SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Principais distinções entre o regramento da emendatio libelli no processo penal comum e no processo penal militar 3. Inconstitucionalidade circunstancial da não admissão de emendatio libelli de ofício no processo penal militar 3.1. A inconstitucionalidade circunstancial 3.2. Garantismo integral e obrigações processuais penais positivas 3.3. Delimitação do problema 4. Propostas de solução 5. Conclusão.

1. INTRODUÇÃO

O processo penal comum e o processo penal militar apresentam significativas diferenças quanto ao regramento da emendatio libelli, a qual permite a alteração da qualificação jurídica atribuída aos fatos expostos na denúncia.

Em princípio, o Código de Processo Penal Militar veda que a emendatio libelli seja feita de ofício. Não obstante, a aplicação da literalidade de suas normas, somada ao atual entendimento do Superior Tribunal Militar sobre o assunto, pode consagrar a impunidade, violando as obrigações processuais penais positivas do Estado brasileiro e subvertendo os elevados propósitos do direito penal militar e do direito processual penal militar, no que se refere à proteção de bens jurídicos essenciais.

Nessa toada, serão formuladas propostas para solucionar o problema gerado pela inconstitucionalidade circunstancial verificada, a partir das possibilidades dogmáticas do processo penal militar.

2. PRINCIPAIS DISTINÇÕES ENTRE O REGRAMENTO DA EMENDATIO LIBELLI NO PROCESSO PENAL COMUM E NO PROCESSO PENAL MILITAR

No processo penal comum, a emendatio libelli vem disciplinada no art. 383 do Código de Processo Penal:

Art. 383. O juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave. (Redação dada pela Lei nº 11.719, de 2008).

§ 1º Se, em conseqüência de definição jurídica diversa, houver possibilidade de proposta de suspensão condicional do processo, o juiz procederá de acordo com o disposto na lei. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

§ 2º Tratando-se de infração da competência de outro juízo, a este serão encaminhados os autos. (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).

O art. 418 do CPP trata da emendatio libelli no procedimento do tribunal do júri.

Na emendatio libelli, o quadro fático delineado na peça acusatória permanece o mesmo, estando autorizado o magistrado, inclusive de ofício, a dar-lhe nova qualificação jurídica. Esta nova qualificação jurídica poderá ser menos grave (emendatio libelli in mellius) ou mais grave (emendatio libelli in pejus) que a inserida na denúncia. O momento apropriado para a realização da emendatio libelli será, em regra, a fase de sentença, após a instrução.

Renato Brasileiro afirma que o emprego da técnica não causa violação ao princípio da correlação entre acusação e sentença, haja vista que, no processo penal, o acusado defende-se dos fatos que lhe são imputados. Assim, entende-se que não haverá qualquer ofensa à ampla defesa ou ao contraditório.

A autoridade judiciária, ao sentenciar o feito, não está vinculada à classificação formulada pela acusação. Vigora o princípio iuria novit curia, ou seja, o juiz ou tribunal conhece o direito. Portanto, independentemente do aditamento da peça acusatória e da adoção de quaisquer providências instrutórias, é plenamente possível que o juiz profira a sentença condenatória com a capitulação jurídica que lhe parecer mais adequada, ainda que dessa nova definição jurídica resulte pena mais grave[1].

Predomina o entendimento de que, feita a emendatio libelli de ofício pelo magistrado, não há necessidade de se abrir vista às partes para que possam se manifestar acerca da nova classificação do fato. Retoma-se a justificativa de que, em sede processual penal, o acusado defende-se dos fatos que lhe são imputados, e não da capitulação (princípio da consubstanciação)[2]. Gustavo Badaró critica essa ideia, ao afirmar que o contraditório não se aplica apenas à matéria fática, mas também às questões de direito[3]. Em contrapartida, Guilherme de Souza Nucci sustenta que a abertura de vista às partes para se manifestarem sobre a possibilidade de adoção de nova capitulação jurídica pelo juízo não teria utilidade prática, pois as partes certamente iriam renovar suas alegações finais, produzindo um procedimento emperrado e burocrático[4].

No processo penal militar, a utilização da emendatio libelli apresenta restrições significativas. O tema é regido pelo art. 437, a, do Código de Processo Penal Militar:

Definição do fato pelo Conselho

Art. 437. O Conselho de Justiça upoderá:

a) dar ao fato definição jurídica diversa da que constar na denúncia, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave, desde que aquela definição haja sido formulada pelo Ministério Público em alegações escritas e a outra parte tenha tido a oportunidade de respondê-la;

Condenação e reconhecimento de agravante não argüida

b) proferir sentença condenatória por fato articulado na denúncia, não obstante haver o Ministério Público opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravante objetiva, ainda que nenhuma tenha sido argüída.

Como se vê, a realização emendatio libelli pelo órgão julgador, no momento do proferimento da sentença é condicionada à atuação do Ministério Público Militar, que deverá formular a nova definição jurídica quando da apresentação de suas alegações escritas, exigindo-se ainda que a defesa tenha a oportunidade de se manifestar sobre a alteração.

Trata-se de disciplina mais garantista que o CPP, privilegiando-se a ampla defesa, o contraditório, o princípio da congruência/correlação (que abarcaria não só as questões de fato, mas também as questões de direito), e o princípio da não surpresa. Por sua vez, mitiga-se o princípio do iuria novit curia.

Segundo Loureiro Neto, se a denúncia classifica o fato como homicídio culposo, e o Conselho de Justiça entende que se trata de homicídio doloso, estará impossibilitado de condenar o réu segundo esta última capitulação, pois o réu terá se defendido do homicídio na sua forma culposa[5].

Sendo assim, a literalidade do CPPM não prevê a possibilidade de emendatio libelli de ofício (salvo pelo reconhecimento de ofício de agravantes objetiva, na forma do art. 437, b, do CPPM); não vigora integralmente o princípio iuria novit curia; o princípio da congruência parece abranger também as questões de direito, não se restringindo às questões de fato; e exige-se a posterior manifestação da defesa sobre a alteração do enquadramento jurídico dos fatos.

A jurisprudência do Superior Tribunal Militar atenuou a vedação à emendatio libelli de ofício, permitindo a sua realização em benefício do acusado (emendatio libelli in mellius), conforme o enunciado sumular de nº 5: "A desclassificação de crime capitulado na denúncia pode ser operada pelo Tribunal ou pelos Conselhos de Justiça, mesmo sem manifestação neste sentido do Ministério Público Militar nas alegações finais, desde quando importe em benefício para o réu e conste da matéria fática".

Frisa-se que, embora o STM afirme em alguns jugados que o réu se defende dos fatos a ele imputados e não da tipificação legal, não se trata de referência ao entendimento consagrado no processo penal comum, em que é permitida a emendatio libelli in pejus de ofício. Essa expressão é utilizada apenas com o fim de fundamentar a aplicação da súmula nº 5. Se a denúncia expôs devidamente os fatos e apresentou capitulação jurídica considerada equivocada pelo juízo (ou que não veio a se confirmar durante a instrução), tal circunstância não teria prejudicado a oportunidade de o réu se defender daqueles fatos, em observância ao contraditório e à ampla defesa.

Embora a fundamentação acima exposta seja praticamente idêntica à utilizada no processo penal comum para justificar a realização de ofício da emendatio libelli, de forma genérica (in mellius e in pejus) e sem violação ao princípio da congruência, o STM a utiliza apenas para embasar a aplicação de ofício da emendatio in mellius[6].

3. INCONSTITUCIONALIDADE CIRCUNSTANCIAL DA NÃO ADMISSÃO DE EMENDATIO LIBELLI DE OFÍCIO NO PROCESSO PENAL MILITAR

3.1. A inconstitucionalidade circunstancial

Ana Paula de Barcellos pontua que, em função da complexidade dos efeitos que pretendam produzir, ou mesmo da multiplicidade de circunstâncias de fato sobre as quais incidem, os enunciados normativos podem dar origem a normas de conteúdos diversos, ao serem confrontados com outras incidências normativas específicas. Cada uma dessas normas opera em um ambiente fático próprio.

Por isso, é possível cogitar de situações nas quais um enunciado normativo, válido em tese e na maior parte de suas incidências, ao ser confrontado com determinadas circunstâncias concretas, produz uma norma inconstitucional.

Trata-se da inconstitucionalidade da norma produzida pela incidência da regra sobre uma determinada situação específica[7].

Pedro Lenza, ao citar a autora, utiliza a expressão "inconstitucionalidade circunstancial"[8].

Barcellos ilustra o conceito a partir da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADI n° 223, na qual se discutia a validade de disposições que proibiam a concessão de medidas liminares e antecipações de tutela em face da Fazenda Pública.

A ação foi julgada improcedente, devido à constitucionalidade, em tese, da restrição à concessão de providências de urgência. Todavia, o Supremo admitiu que, em circunstâncias específicas, a incidência daqueles dispositivos poderia gerar normas inconstitucionais.

Isso se deve ao fato de que, a depender do contexto fático, o enunciado poderá ser confrontado por enunciados diferentes e produzir normas diversas.

Na aplicação da proibição ao caso do reenquadramento de servidores públicos, o direito patrimonial poderá em geral ser satisfeito adequadamente ao fim da demanda. Portanto, a norma produzida pelo enunciado apenas veda que valores pretendidos pelo autor sejam antecipados pela Fazenda Pública antes de proferida a decisão final. Essa norma é constitucional.

Por sua vez, quando em discussão o custeio de cirurgia urgente e indispensável à manutenção da vida do particular, que deveria ter sido realizada pela rede pública de saúde, mas, por qualquer razão, não o foi, entram em jogo os enunciados relacionados com o direito à vida e à saúde (impertinentes no caso do reenquadramento) e o grave risco de perecimento do direito. Nesse contexto, a norma que se extrai do mesmo enunciado é diversa: ela veda que o juiz autorize a realização de cirurgia sem a qual o autor poderá vir a falecer. Essa segunda norma afeta muito mais intensamente o núcleo do direito de acesso ao Judiciário do que a primeira, devendo ser reputada inconstitucional.

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3.2. Garantismo integral e obrigações processuais penais positivas

A expressão "garantismo hiperbólico monocular" foi cunhada por Douglas Fischer[9].

A tese central do garantismo está em que sejam observados rigidamente os direitos fundamentais estampados na Constituição, aos quais devem se submeter todas as normas e atos de hierarquia inferior no ordenamento jurídico.

Não há dúvidas de que a Constituição Federal de 1988 seja garantista.

A Carta Maior prevê, explícita ou implicitamente, a necessidade de proteção de determinados bens jurídicos e de proteção ativa dos interesses da sociedade e dos investigados e/ou processados.

Nessa toada, é certo que o direito penal deve ser utilizado como "ultima ratio" e que sua aplicação deve observar os direitos e garantias fundamentais do cidadão investigado ou processado criminalmente. Não obstante, a compreensão e defesa dos ordenamentos penal e processual penal reclamam uma interpretação sistemática dos princípios, regras e valores constitucionais.

O garantismo pretende estabelecer a imunidade dos cidadãos contra a arbitrariedade das proibições e das punições, a defesa dos fracos mediante regras do jogo iguais para todos, a dignidade da pessoa do imputado, e também a proteção dos interesses coletivos, os quais igualmente integram o conjunto dos direitos fundamentais.

Não há qualquer suporte à impunidade.

No Brasil, é frequente a distorção dos reais pilares fundantes da doutrina de Luigi Ferrajoli, ícone do garantismo. Esta visão distorcida destaca apenas, e de forma isolada, a necessidade de proteção dos direitos dos cidadãos que se veem processados ou condenados. Daí que se fala em um garantismo penal monocular e hiperbólico. Monocular por ter foco apenas nos direitos individuais dos investigados e acusados, omitindo-se quanto à necessária tutela de outros direitos fundamentais; e hiperbólico por interpretar aqueles direitos individuais de forma desproporcional e contrária ao sistema constitucional como um todo.

O art. 5º da Constituição, frequentemente lembrado como sede de diversos direitos individuais, inclusive relacionados à esfera criminal, está inserto no capítulo intitulado dos direitos e deveres individuais e coletivos. Ressalta-se a menção a "deveres" individuais e coletivos, os quais também são dotados de fundamentalidade.

A respeito dos deveres fundamentais, Fischer[10] invoca ainda as lições de Casalta Nabais, asseverando que os deveres fundamentais se caracterizam como deveres jurídicos do homem e do cidadão, com especial significado para a comunidade, podendo por esta ser exigidos.

Tais como os direitos, os deveres fundamentais encontram seus suportes e suas justificativas nos princípios norteadores dos sistemas vigentes, notadamente o constitucional. Outrossim, não há direitos sem deveres, porque não há garantia jurídica ou fática dos direitos fundamentais sem o cumprimento dos deveres do homem e do cidadão indispensáveis à existência e funcionamento da comunidade estadual, sem a qual os direitos fundamentais não podem ser assegurados nem exercidos. E não há deveres sem direitos, porque é de inconcebível um estado de direito democrático assente num regime unilateral de deveres.

Em suma, os direitos e deveres fundamentais não constituem categorias totalmente separadas nem domínios sobrepostos, encontrando-se antes numa relação de "conexão funcional", que impede o exclusivismo ou a unilateralidade dos direitos fundamentais, como em larga medida aconteceu durante o estado de direito liberal.

A violação dos deveres fundamentais, ou das disposições que venham a afastar ou prejudicar a realização deles (e dos correlatos direitos fundamentais, direta ou indiretamente), tem como consequência a mesma dimensão daquela decorrente de violação dos direitos fundamentais.

Paralelamente[11], ressalta-se que o princípio da proporcionalidade na criação e aplicação das regras impõe a vedação de excessos (übermaβverbot) e também a vedação de deficiências (untermaβverbot) do Estado na proteção dos interesses individuais e coletivos, conforme as preciosas lições extraídas da jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão.

A obediência à proporcionalidade deve ser integral.

Nessa toada, os pilares do garantismo não se reduzem ao garantismo negativo, destinado a afastar os excessos injustificados do Estado à luz da Constituição (proteção do mais fraco). Abrangem também a proibição de omissão, correspondente ao "garantismo positivo", que impõe ao Estado o dever de proteger o indivíduo contra ataques de terceiros, mediante adoção de medidas diversas, dentre elas a devida implementação do direito penal e do direito processual penal.

O princípio da proporcionalidade (em suas duas acepções, negativa e positiva) e a teoria do garantismo penal expressam a mesma preocupação: o equilíbrio na proteção de todos (individuais ou coletivos) direitos e deveres fundamentais expressos na Carta Maior.

Chega-se então ao "garantismo integral", que parte da compreensão integral dos postulados garantistas, alinhada à interpretação sistêmica dos comandos da Carta Maior. Defende-se a proteção dos direitos fundamentais individuais, coletivos e sociais, além da efetiva exigência dos deveres fundamentais do Estado e dos cidadãos. Este é o resultado, em verdade, da leitura mais racional da tese central do garantismo[12].

Sobreleva-se o dever do Estado de garantir a segurança, consubstanciado como imperativo constitucional (art. 144 da CF/88). Este dever se desdobra em direitos subjetivos individuais e coletivos e não se resume a evitar condutas criminosas que atinjam direitos fundamentais de terceiros. Exige-se ainda a devida apuração (com respeito aos direitos dos investigados ou processados) do ato ilícito e, em sendo o caso, a punição do responsável, evitando-se a impunidade.

O processo criminal e a respectiva imposição de pena aos infratores é uma forma de, mediante as irradiações dos efeitos da prevenção geral positiva, garantir a segurança e a convivência entre os pares que não infringiram o ordenamento jurídico[13].

O garantismo positivo refere-se ao dever de proteção, no qual se inclui a segurança dos cidadãos, e implica a obrigação de o Estado, nos casos em que for necessário, adequado e proporcional em sentido estrito, restringir direitos fundamentais individuais dos cidadãos[14].

Intimamente relacionadas ao garantismo integral, as obrigações processuais penais positivas podem ser caracterizadas como um dever imposto aos Estados Partes de conduzir procedimento investigativo eficiente e processo penal apto a assegurar o acertamento dos fatos ilícitos e a punição dos eventuais autores, sob pena de violação concreta dos dispositivos das convenções regionais de direitos humanos que estipulam a salvaguarda dos direitos fundamentais envolvidos nas práticas ilícitas[15].

As cláusulas convencionais protetivas dos direitos fundamentais exigem dos sistemas jurídicos domésticos a condução de investigações aprofundadas, céleres e diligentes, tendo como finalidade a tentativa de esclarecer os fatos e punir os responsáveis ao final do processo (identificando-se nítida hipótese de prevenção geral). Portanto, fica muito claro que os deveres processuais positivos decorrem diretamente, como implicações imediatas, dos direitos humanos protegidos também nas Convenções.

Conquanto as Convenções europeia e interamericana de direitos humanos não mencionem explicitamente a vítima dos crimes, na jurisprudência das respectivas cortes supranacionais, sobretudo no âmbito do Tribunal de Estrasburgo, a tutela da vítima é tema recorrente e digno da máxima atenção. Em particular, o reconhecimento das obrigações processuais penais positivas relacionadas à tutela das pessoas ofendidas é cada vez mais frequente.

O processo deve ser adequado, idôneo na busca do esclarecimento de crimes. Porém, não há como se visualizar um processo penal sem levar em consideração os direitos e os deveres fundamentais de todos os envolvidos na esfera de responsabilização criminal. Mais objetivamente: o processo penal deve ser compreendimento sempre como um instrumento de garantia dos imputados e também de busca da realização das consequências previstas na lei penal, ressaltando-se a compreensão integral do sistema[16].

3.3. Delimitação do problema

O regramento da emendatio libelli no processo penal militar tutela com maior intensidade os direitos fundamentais do acusado. A ausência de previsão legal autorizadora da realização da emendatio de ofício, pelo julgador, exigindo-se que o Ministério Público aponte expressamente o enquadramento legal dos fatos, seja na denúncia, seja quando da apresentação das alegações escritas, privilegia a ampla defesa, o contraditório, o princípio da congruência/correlação e o princípio da não surpresa.

Não obstante, é possível a existência de casos em que, após toda a instrução, tanto o Ministério Público quanto o juízo firmem suas respectivas convicções no sentido da existência de crime punível, mas divirjam a respeito do enquadramento legal do delito. Tal situação é plenamente possível, considerando que ambos são dotados de independência funcional, tendo liberdade para dirigir sua atuação finalística, vinculados apenas à lei (em sentido amplo) e à sua consciência, sem necessidade de se submeter à opinião de quem quer que seja.

A jurisprudência do Superior Tribunal Militar criou uma solução para esse impasse, mas restrita à hipótese de o enquadramento legal formulado pelo juízo resultar em infração menos grave que aquela apontada pela acusação. Esta saída está cristalizada no enunciado sumular de nº 5, já comentada em tópico anterior.

Todavia, o problema persiste quando o julgador entende que os fatos provados no curso do processo correspondem a infração penal mais grave, e o Ministério Público Militar não realiza a alteração da capitulação jurídica ao apresentar suas alegações escritas. Neste caso, o STM entende que a sentença deve ser absolutória.

Veja-se a magnitude do imbróglio: a acusação está convicta de que houve crime punível; o julgador está convicto de que houve crime punível; mas o resultado do julgamento será a absolvição, desprezando-se tanto o entendimento do Ministério Público quanto o do Poder Judiciário. Coroa-se a impunidade.

Como exemplo, cita-se decisão do Superior Tribunal Militar, nos autos da Apelação nº 7000999-11.2018.7.00.0000, proferida em 17/09/2019[17].

O membro do Ministério Público Militar havia denunciado uma civil pelo fato de esta, após a morte de sua genitora que era pensionista perante a Administração Militar , de posse do cartão e da respectiva senha da conta bancária da falecida, ter continuado a sacar valores provenientes de pensão militar, deixando de informar a Administração militar acerca do óbito.

Trata-se de caso recorrente no âmbito da Justiça Militar da União, tendo a jurisprudência do STM se firmado no sentido de que haveria um "silêncio malicioso", caracterizador do meio fraudulento apto a ensejar a configuração do crime de estelionato (art. 251 do Código Penal Militar)[18].

Porém, em sua denúncia, o MPM havia enquadrado os fatos como apropriação indébita simples (art. 248 do CPM), mantendo o mesmo entendimento quando da apresentação das alegações escritas.

A sentença do Conselho de Justiça julgou procedente o pedido acusatório, condenando a acusada pelo crime de apropriação indébita.

Frisa-se que não se está aqui a discutir a correção ou não do entendimento do membro do Ministério Público, mas apenas a expor as consequências nefastas de uma deficiência normativa do processo penal militar.

Continuando o relato do caso, a defesa apelou requerendo, no mérito, a desclassificação da conduta para enquadrá-la sob o espectro do art. 249 do CPM (apropriação de coisa havida acidentalmente, por erro). Em contrarrazões, o MPM pugnou pela manutenção da sentença.

O Superior Tribunal Militar, ao analisar os fatos, concluiu se tratar de estelionato, e não de apropriação indébita ou de apropriação de coisa havida acidentalmente. A seguir, trechos do voto do relator:

"Embora a definição jurídica constante da Denúncia e das Alegações do Órgão acusatório, ancorada no conjunto probatório, agasalhe os parâmetros correspondentes à ocorrência de estelionato, em nenhum momento foi requerida tal imputação.

À evidência, operou-se substancial prejuízo à persecução penal, atingindo irremediavelmente o "jus puniendi" estatal. Ademais, torna-se insustentável a manutenção da condenação da acusada atribuindo-lhe crime que estampa desajuste entre os fatos apurados e o núcleo típico.

Sob este panorama, inexistindo a "Emendatio libelli", é vedada a aplicação do art. 437, alínea "a", do CPPM, bem como é contraindicada a incidência do enunciado nº 5 da Súmula do STM, as quais seriam instrumentos aptos a proporcionar a eventual modificação do enquadramento legal da imputação penal. A situação tornou-se inflexível. O eventual reposicionamento corretivo dos parâmetros punitivos traria prejuízo à ré. Nessa toada, a sugestiva hipótese colidiria com a intransponível vedação do "ne reformatio in pejus". A única solução vislumbrada é a absolvição. Todavia, sob parâmetros diversos daqueles apresentados nas Razões Recursais.

(...)

Dessa maneira, a condenação, na forma como exarada, é insustentável. A Sentença fere os sólidos cânones sobre os quais se fundam os parâmetros de efetivação da Justiça. A condenação nunca pode estar dissociada da adequada subsunção ao tipo penal relativo à imputação. A rigor, salvo as possibilidades de desclassificação delitiva, previstas na sistemática processual, o enquadramento legal da conduta segue a estipulação apresentada na pretensão acusatória.

Portanto, no caso, há autêntico desalinho entre os fatos e a imputação penal. Esse aspecto é fator suficiente para a absolvição calcada na circunstância de "não constituir o fato infração penal" (art. 439, alínea "b", do CPPM), no contexto deste processo, nos moldes da imputação formalizada".

O resultado foi a absolvição e a impunidade.

A situação é agravada pela circunstância de o Ministério Público Militar ter um quadro de membros em número não tão expressivo, de sorte que cada membro, individualmente, torna-se responsável por significativo percentual dos casos perante a Justiça Militar da União.

Usualmente, a estrutura das Procuradorias de Justiça Militar conta com apenas três membros. Imagine-se que um deles está afastado para o exercício de função institucional na Procuradoria-Geral de Justiça Militar. O segundo está afastado por motivos de saúde. E o membro que continua em exercício entende que o "silêncio malicioso" não é apto a configurar estelionato.

O resultado prático será um só: na circunscrição judiciária militar em que se situa aquela Procuradoria de Justiça Militar a qual pode ser bastante extensa estará "permitido" realizar saques indevidos das contas bancárias de beneficiários de pensão militar que venham a óbito, sem que este falecimento seja devidamente comunicado à Administração Militar.

Impunidade, pura e simples, com o beneplácito do sistema judiciário militar federal.

Na doutrina, Célio Lobão ratifica o entendimento do Superior Tribunal Militar:

"Não sendo formulada nova definição pelo MP nas alegações escritas, vedado ao julgador dar ao fato nova definição, com a justificativa de que a sanção imposta é idêntica. A solução é absolver o réu, embora esteja o juiz, convicto de sua culpabilidade[19].

Não podemos concordar com essa conclusão.

Ainda que, em tese, o regramento do CPPM respeite a independência funcional do membro do Ministério Público e do julgador, além de privilegiar a ampla defesa e o contraditório, o caso é de inconstitucionalidade circunstancial, por resultar em impunidade e subverter o propósito do sistema de justiça, configurando proteção insuficiente dos bens jurídicos tutelados pelo direito penal militar e violação da proporcionalidade, em seu aspecto positivo (garantismo positivo).

Ao Estado deve interessar tanto a absolvição do inocente quanto a condenação do culpado, de sorte que a emendatio libelli é a expressão mais eloquente do compromisso com a preservação da ordem jurídica[20].

Relembra-se aqui, tudo que foi dito sobre o garantismo hiperbólico monocular e sobre a necessidade de empreender uma leitura integral dos postulados garantistas, os quais inclusive se alinham às obrigações processuais penais positivos a que se submete o Estado brasileiro.

4. PROPOSTAS DE SOLUÇÃO DO PROBLEMA

Abordaremos agora seis propostas de solução para o problema, apontando suas vantagens e desvantagens.

A primeira e a segunda focam em evitar a configuração da referida inconstitucionalidade. Seria necessário, para isso, obrigar o Ministério Público Militar a formular uma denúncia com capitulação jurídica concordante com aquela comumente enxergada pelo Poder Judiciário, ou então obrigar o Poder Judiciário a condenar um cidadão por um crime que ele entende não ter se concretizado, aceitando a capitulação jurídica apontada pela acusação.

Ambas as pretensas soluções violam a independência funcional dos membros do Ministério Público e do Poder Judiciário, mostrando-se igualmente inconstitucionais.

A terceira proposta consiste em que o Ministério Público Militar faça pedidos subsidiários feitos na denúncia, abrangendo uma capitulação jurídica mais grave e dando margem ao juízo para realizar a emendatio in mellius de ofício, nos termos da súmula nº 5 do STM. Todavia, resta presente o mesmo vício das primeiras propostas, qual seja, a violação à independência funcional do membro do Ministério Público, o qual seria obrigado a inserir uma capitulação jurídica contrária à sua convicção.

Todavia, registramos que não haveria comportamento contraditório na formulação de pedidos subsidiários pela acusação. Esta espécie de pedidos é amplamente utilizada no processo civil, tanto pelo autor quanto pelo réu, sem que se cogite de violação à boa-fé, à cooperação, de comportamento contraditório ou de inépcia da petição inicial. No processo penal comum, são amplamente utilizados pelo réu, e cremos que apenas não o são pela acusação justamente por causa da possibilidade de emendatio libelli de ofício.

A quarta proposta parte da constatação de que não há solução que possa ser oferecida pela legislação processual penal militar. Assim, surgiria uma lacuna, a ensejar a aplicação do art. 3º do Código de Processo Penal Militar, o qual, em sua alínea "a", possibilita o emprego subsidiário da legislação processual penal comum, quando aplicável ao caso concreto e sem prejuízo da índole do processo penal militar. Essa alternativa permitiria a utilização do art. 383 do CPP, autorizando a realização da emendatio libelli in pejus de ofício.

Em que pese seja possível alegar que o referido dispositivo viola a ampla defesa e o contraditório, por não permitir ao acusado defender-se de modo adequado no que toca à capitulação jurídica utilizada pelo juízo para a condenação, violando ainda o princípio da não surpresa e o princípio da congruência, entendemos que essa objeção não se sustenta, pois o Supremo Tribunal Federal órgão com competência constitucional e específica para realizar a guarda da Constituição entende que o art. 383 do CPP é constitucional, validando amplamente sua aplicação.

Ainda assim, poder-se-ia argumentar que esta operação consiste em analogia prejudicial ao réu, ou que viola a índole do processo penal militar, o qual teria garantido maior amplitude à ampla defesa e ao contraditório.

A quinta e a sexta propostas são as de nossa preferência, pela conciliação entre independência funcional, contraditório, ampla defesa e o efetivo cumprimento das obrigações processuais penais positivas do Estado brasileiro, na linha do que prescreve o garantismo integral.

Vejamos.

Inicialmente, segue-se o sistema original: o Ministério Público deverá expor todos os fatos que compõem a suposta conduta delituosa, além de indicar a capitulação jurídica que entende adequada, no exercício de sua independência funcional. Na fase das alegações escritas, trará ou não, conforme seu próprio entendimento, novo enquadramento jurídico para os fatos.

Até este momento, terá sido oportunizado à defesa manifestar-se integralmente sobre os fatos, assim como sobre a sua qualificação jurídica, conforme formulada pela acusação.

A particularidade da quinta proposta reside na utilização dos arts. 430 e 296 do CPPM. O art. 430 determina que, findo o prazo para as alegações escritas, o magistrado togado poderá ordenar diligência para sanar qualquer nulidade ou suprir falta prejudicial ao esclarecimento da verdade. O art. 296, por sua vez, autoriza o juiz a, antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.

Se o juiz entender que os fatos configuram delito de maior gravidade que o apontado pelo MPM, considerando que a possibilidade de futura absolvição configura "nulidade ou falta prejudicial ao esclarecimento da verdade", poderá ordenar "diligência". Esta diligência, consistirá no emprego subsidiário do art. 383 do CPP neste caso, autorizado pelo art. 3º, a, do CPPM, como se demonstrará adiante tão somente com o intuito de suprir a falta de formulação de nova qualificação jurídica para os fatos nas alegações escritas do Ministério Público Militar.

Nesse particular, a indicação da nova qualificação jurídica dos fatos, de ofício, é suportada ainda pela aplicação analógica do art. 378, §1º, do CPPM e do art. 493 do CPC (ambas autorizadas pelo art. 3º, e, do CPPM):

CPPM:

Art. 378. (...)

§ 1º Se o juiz tiver notícia da existência de documento relativo a ponto relevante da acusação ou da defesa, providenciará, independentemente de requerimento das partes, para a sua juntada aos autos, se possível.

CPC:

Art. 493. Se, depois da propositura da ação, algum fato constitutivo, modificativo ou extintivo do direito influir no julgamento do mérito, caberá ao juiz tomá-lo em consideração, de ofício ou a requerimento da parte, no momento de proferir a decisão.

Parágrafo único. Se constatar de ofício o fato novo, o juiz ouvirá as partes sobre ele antes de decidir.

Nos termos do art. 296 do CPPM, realizada a diligência, sobre ela serão ouvidas as partes, na mesma linha do art. 493, p. ún., do CPC. Concretiza-se o princípio da cooperação e da boa-fé no âmbito processual (arts. 5º e 6º do CPC).

Ademais, se na sistemática original do CPPM a defesa tem a oportunidade de se manifestar sobre o novo enquadramento jurídico dos fatos, esta oportunidade não deverá ser afetada, preservando-se na íntegra a ampla defesa e o contraditório tal qual concebidos pelo legislador especial. Dessarte, não haveria qualquer prejuízo ao réu, resguardando-se igualmente a índole do processo penal militar. Restam atendidas, por conseguinte, as condições do art. 3º, a, do CPPM.

Ressalta-se que também ao Ministério Público Militar deverá ser garantida oportunidade de se manifestar sobre a qualificação jurídica formulada pelo juízo, devido ao comando do art. 296 e também ao seu papel de fiscal da ordem jurídica. Será provável, inclusive, que o membro do MPM discorde do entendimento do julgador, manifestando-se, neste particular, em benefício da defesa.

Após a oitiva das partes, o julgador poderá exercer integralmente a sua independência funcional, adotando qualquer das capitulações jurídicas discutidas no decorrer do processo, sem que se cogite de prejuízo aos direitos da acusação e da defesa.

Desde já afastamos a possível alegação de que esta sistemática poderia gerar prejuízo ao réu, dado que, no entendimento do STM, a solução seria a absolvição e, pela nossa proposta, poderia sobrevir condenação. Neste caso, a absolvição seria um benefício inconstitucional e ilícito, concretização de odiosa impunidade, contra a qual devem se erguer todos os operadores do direito. A perda de um benefício ilícito não pode ser interpretada como prejuízo, mas tão somente como a restauração da ordem jurídica aviltada pela ilicitude.

A quinta proposta poderia ser utilizada nos casos de competência do juízo monocrático ou de atuação do Conselho de Justiça.

A sexta proposta, por sua vez, se refere apenas aos casos de atuação do Conselho de Justiça. Aqui, deixa-se de utilizar o art. 430 do CPPM, para se invocar somente o art. 296. Nas hipóteses de competência do Conselho, apenas após a colheita dos votos de todos os seus integrantes mas antes da efetiva prolação da sentença é que seria verificado o entendimento do juízo pelo enquadramento jurídico mais gravoso, ensejando a inconstitucionalidade circunstancial da futura sentença absolutória. A diligência do emprego do art. 383 do CPP seria realizada neste momento, com fundamento no art. 296 do CPPM.

Em se tratando de competência do Conselho de Justiça, a quinta proposta ganha em termos de economia processual e eficiência, pois sanaria o problema com maior antecedência, evitando transtornos procedimentais significativos. Ademais, é plausível sustentar que seria mais adequado utilizar a entendimento do magistrado togado (e não o dos juízes militares) como parâmetro para o confronto com o entendimento do membro do MPM, devido à formação jurídica e a independência funcional característica de ambos.

Já a sexta proposta torna o emprego do art. 383 ainda mais excepcional apenas quando indubitável a prolação da sentença absolutória inconstitucional. Entretanto, sua adoção geraria grandes transtornos ao andamento do processo, devido à necessidade de aguardar o momento imediatamente anterior à prolação da sentença para a adoção do procedimento aqui proposto. Nessa toada, a própria sessão de julgamento teria de ser renovada, na íntegra, para que os julgadores pudessem levar em consideração as manifestações das partes, evitando-se, assim, a causação de prejuízo às oportunidades de participação da acusação e da defesa no processo.

5. CONCLUSÃO

O entendimento atual do Superior Tribunal militar acerca da inexistência de autorização expressa para a realização da emendatio libelli de ofício no processo penal militar pode abrir livre caminho para a impunidade, violando os preceitos do garantismo integral e as obrigações processuais positivas a que se submete a República Federativa do Brasil.

Configurada a inconstitucionalidade circunstancial por indevida absolvição do acusado, deve ser empreendido um esforço hermenêutico para conciliar os bens jurídicos em colisão e evitar a subversão do direito penal militar e do processo penal militar.

Ante o exposto, espera-se que as propostas aqui formuladas para superar os óbices identificados possam fomentar o debate na comunidade jurídica e colaborar para o desenvolvimento do direito processual penal militar, sempre buscando o devido equilíbrio entre os direitos fundamentais do acusado e a adequada proteção dos bens jurídicos tutelados pelo sistema repressivo militar.

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Sobre o autor
Leonardo Jucá Pires de Sá

Analista do Ministério Público da União.

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