A gestão financeira das fundações privadas na contemporaneidade

04/10/2022 às 19:16
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As pessoas jurídicas de direito privado têm tido significativas mudanças no decorrer do tempo para adequar a legislação às novas formas de trabalho, que se inventam, reinventam e inovam cada dia com mais frequência.

Alguns dos exemplos dessas atualizações foram o Código Comercial brasileiro (Lei n.º 556/1850) e o Código Civil de 1916 (Lei n.º 3.071/1916), ambos derrogados pela novo Código Civil, que entrou em vigor em janeiro de 2003.

A Lei n.º 10.406/2002 instituiu o chamado direito de empresa. Além disso, novas leis posteriores, como a Lei n.º 12.441/2011, que trouxe a figura da EIRELI, e a mais recente Lei da sociedade limitada unipessoal, trazida pela MP da Liberdade Econômica, que foi convertida na Lei nº 13.874/19, reforçam a ideia de que o direito deve se adequar à sociedade.

Neste contexto, oportuno considerar uma pessoa jurídica de direito privado, a qual possui a natureza conservadora, pouco atualizada pela legislação e até pela doutrina, que é a fundação.

A figura da fundação é prevista no art. 44 do Código Civil[1] e conceituada pelo Professor Doutor Sabo[2] como:

um complexo de bens destinados à consecução de fins sociais e determinados e, como universitas bonorum, ostenta papel valoroso e de extremo relevo dentro das sociedades em que se insere, pois é instrumento efetivo para que os homens prestem serviços sociais e de utilidade pública diretamente a todos aqueles que necessitam, bem como possam transmitir às sucessivas gerações seus ideais e convicções, e seguir atuando.

O Código Civil vigente, no Título II, Capítulo III, regulamenta a criação, as finalidades, que foram inclusive alteradas pela Lei n.º 13.151/2015, a destinação dos bens em casos de insuficiência no ato de constituição e na extinção, a forma de constituição e alteração do estatuto social e o órgão velador das fundações privadas.

Noutra análise, a forma de funcionamento das fundações não possui vasta regulação ou normatização, como ocorre com as entidades cujas atividades são submetidas à fiscalização das Agências Reguladoras, por exemplo. A base do funcionamento das fundações privadas advém da doutrina e de algumas poucas normas esparsas, as quais variam de acordo com a atuação de cada Ministério Público Estadual, responsável pelo velamento[3].

Sinteticamente, podemos afirmar que as fundações privadas são formadas por atribuição de personalidade jurídica a um complexo de bens livres, que é o patrimônio, que será administrado por órgãos autônomos de conformidade com as previsões do estatuto[4].

É justamente sob o ponto de vista da administração que não devemos ignorar as mudanças e inovações do mercado em termos de gestão corporativa, principalmente na área financeira. Atualmente, há inúmeras possibilidades de conservar, ampliar e até utilizar o patrimônio financeiro que não existiam até pouco tempo atrás.

Nesse sentido, as criptomoedas, os investimentos em renda fixa, os fundos imobiliários, a aquisição de ações e constituição de empresas, a criação ou participação em startups são alguns dos exemplos de investimentos financeiros que normalmente todo empreendedor do mercado de trabalho conhece.

Mas, e as fundações?

Que as fundações privadas não têm caráter comercial, tampouco finalidade lucrativa, não se discute. O que se admite, que não caracteriza desvio de finalidade, é a existência do superávit[5] em seu resultado financeiro.

No entanto, não há dispositivo legal que vede o exercício de atividades industriais ou mercantis por parte de uma fundação de direito privado[6], desde que todo resultado, seja superavitário ou deficitário, seja incorporado ao patrimônio social.

Logo, ab initio, não há proibição legal ou normativa em investimentos não convencionais pelas fundações privadas. Portanto, sem transgredir a nenhuma regra, o que acontece se uma fundação privada assume os riscos de um investimento e venha a sofrer prejuízos financeiros relevantes em função dos riscos assumidos?

As deliberações sobre a gestão do patrimônio não imobiliário de uma fundação incumbem aos seus órgãos gestores, seja o Conselho Curador ou a Diretoria Executiva, ou os dois, já que ambos, em regra, possuem poderes decisórios. Necessário faz-se, no caso concreto, consultar a lei e o estatuto social da entidade para saber qual é o órgão competente para deliberar sobre o assunto, além da(s) ata(s) de reunião(ões) onde houve o deferimento para identificar o(s) responsável(is) pelo ato.

Identificados, os administradores podem vir a sofrer penalidades.

Novamente, qualquer ação que tenha o condão de caracterizar o desvio da finalidade da fundação privada pode vir a responsabilizar, sob o aspecto administrativo, civil e/ou penalmente, os dirigentes da entidade social, podendo alcançar, inclusive, o patrimônio pessoal.

Para exemplificar, considere uma situação na qual a Diretoria Executiva de uma fundação educacional leva ao Conselho Administrativo um estudo sobre a possibilidade de investimento em ações de uma empresa X, empresa esta que atua no ramo da mineração, recém lançada na bolsa de valores, com o crescimento acelerado, cujos acionistas majoritários garantem que o investimento é certo e rentável.

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Considerando a oportunidade de rendimentos vantajosos, o órgão deliberativo da fundação aprova e o investimento na aquisição das ações da empresa X é realizado.

Tempos depois, a empresa X encerra suas atividades em decorrência de fraudes fiscais e inflação artificial de lucros e decreta falência, deixando milhares de investidores no prejuízo, inclusive a fundação educacional.

Pode haver responsabilização dos dirigentes da fundação privada?

Em casos como este, há de se considerar que toda ação adotada pelos dirigentes deve traduzir a vontade do instituidor, deve ater-se à consecução dos fins especificados na escritura e no estatuto, de forma que, quando riscos altos são assumidos pela entidade, como investimento no mercado de ações, a responsabilização pessoal dos dirigentes no desvio de finalidade fica mais evidente.

É fato incontestável que as fundações privadas, apesar de terem natureza conservadora, precisam acompanhar o mercado quando se trata de gestão. A natureza jurídica da fundação em si já é bastante limitada e as ações da fundação devem ser pautadas sempre com o objetivo de atingir suas finalidades.

Ocorre que, no decorrer dessa jornada, há muitos desafios e formas de alcançar os objetivos.

Da mesma forma que ações de governança corporativa, ESG (Environmental, Social and Governance), anticorrupção, entre outras boas práticas merecem ser adotadas pelas fundações privadas. Além disso, há que lembrar que não é vedada a prática de investimentos financeiros em mercado de ações, empresas ou qualquer outra opção, desde que os rendimentos sejam integralmente revertidos nas finalidades da própria fundação.

Contudo, os riscos devem ser ponderados diante de qualquer possibilidade de investimento, pois a responsabilização pessoal dos dirigentes pode vir a comprometer seu patrimônio pessoal ao assumir riscos que caracterizem desvio de finalidade da fundação privada e, o pior, comprometer a segurança financeira da própria entidade, trazendo prejuízos consideráveis.

Na análise do perfil de investidor da fundação privada, no intuito de preservar o conservadorismo da instituição, a tolerância ao risco deve ser baixa, a finalidade do investimento deve coincidir com a finalidade da própria fundação, o percentual a ser investido não pode comprometer as atividades da fundação e é recomendável que a carteira de investimentos seja gerida por profissional ou órgão que tenha um bom nível de conhecimento do mercado financeiro e seus produtos, além de alto conhecimento da fundação privada e seus atos constitutivos e normas de funcionamento, para assim fortalecer os fins sociais da entidade e não os desviar.

Sobre a autora
Poliana Lobo

Gerente Jurídica em entidade com atuação nacional. Consultora Jurídica Empresarial. Especialista em Gestão Jurídica Empresarial MBA em Gestão, Inovação e Serviços em Saúde Mestranda em Direito da Saúde

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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